Editado por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

© 2006 Susan Macias Redmond. Todos os direitos reservados.

BEIJOS IRRESISTÍVEIS, Nº 39 - Maio 2012

Título original: Irresistible

Publicada originalmente por HQN™ Books

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

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I.S.B.N.: 978-84-687-0292-6

Editor responsável: Luis Pugni

ePub: Publidisa

Um

Uma verdade grande e desagradável é que há momentos em que uma mulher precisa de um homem… ou, pelo menos, da força muscular de um peito bem desenvolvido. Infelizmente para Elissa Towers, este era um daqueles momentos.

– Algo me diz que não ficarás impressionado com a longa lista de coisas que tenho de fazer ou que Zoe tenha uma festa de aniversário ao meio-dia. As festas de aniversário são muito importantes para as crianças de cinco anos. Não quero que perca esta – resmungou Elissa.

Costumava lamentar-se dos cinco quilos que tinha a mais há três anos. Qualquer um teria pensado que naquele momento lhe serviriam, por exemplo, para fazer de alavanca. Nada mais errado.

– Vá lá! – gritou. Nada. Nem sequer se moveu. Deixou cair a chave de porcas no chão molhado e praguejou.

Era culpa dela, certamente. Da última vez que se apercebera de um problema, fora à Travões e Pneus Randy e pusera um remendo no buraco do prego. Ela esperara na sala de espera a ver revistas cor-de-rosa, um luxo que não costumava poder permitir-se, sem pensar que ele usaria uma máquina para apertar as porcas. Pedia-lhes sempre para as apertar à mão, de forma a poder desmontar o pneu sozinha em caso de necessidade.

– Precisas de ajuda?

A pergunta pareceu surgir do nada e ela assustou-se tanto que perdeu o equilíbrio e caiu numa poça. Sentiu como a humidade encharcava as calças de ganga e as cuecas. Fantástico. Quando se levantasse pareceria que urinara. Porque é que o seu sábado não podia ter começado com uma devolução imprevista das finanças e a entrega de uma caixa de bombons anónima?

Olhou de esguelha para o homem que estava junto dela. Não o ouvira a aproximar-se, mas quando deitou a cabeça para trás para olhar para ele, reconheceu o seu novo vizinho de cima. Era alguns anos mais velho do que ela, era moreno, bonito e, à primeira vista, fisicamente perfeito. Não condizia com o tipo de gente que costumava arrendar um apartamento naquela zona velha.

Levantou-se e sacudiu o rabo. Gemeu ao tocar na mancha húmida.

– Olá! – cumprimentou. Sorriu e deu um passo para trás. – És, ah…

Bolas! A senhora Ford, a sua outra vizinha, dissera-lhe o nome do tipo. E também que deixara o exército há pouco tempo, era reservado e não parecia ter trabalho. Não era uma combinação que fizesse com que Elissa se sentisse confortável.

– Walker Buchanan. Vivo no andar de cima.

Sozinho. Não recebia visitas e mal saía. Tudo isso inspirava qualquer coisa menos confiança, mas Elissa fora educada para ser cortês, portanto sorriu.

– Olá! Sou Elissa Towers.

Em qualquer outra circunstância, teria encontrado outra forma de solucionar o seu dilema, mas não conseguia desapertar os parafusos sozinha e não podia passar a manhã ali sentada, a rezar ao deus dos pneus.

– Se pudesses ajudar-me por um segundo – apontou para o pneu, – seria fabuloso.

– Ajudar? – a sua boca fez um gesto trocista.

– És um homem, isto é coisa de homens. É o mais natural.

– E onde ficaram as mulheres e o seu desejo de independência e igualdade no mundo? – cruzou os braços impressionantes sobre um peito também impressionante.

Pelos vistos, havia um cérebro e um possível sentido de humor por trás daqueles olhos escuros. Isso era bom. Os vizinhos dos assassinos em série diziam sempre que o tipo era muito agradável. Elissa não sabia se Walker podia definir-se como agradável e, num certo sentido retorcido, isso aliviava-a.

– Antes disso, devíamos desenvolver força da cintura para cima. Além disso, ofereceste-te.

– Sim, fi-lo.

Agarrou na chave, baixou-se e, com um movimento rápido, afrouxou a primeira porca, provocando nela uma sensação de incompetência e amargura. Demorou pouco tempo a desapertar as outras três.

– Obrigada – ela sorriu. – Posso continuar.

– Já que comecei, posso pôr o pneu novo em poucos segundos.

Isso era o que ele pensava.

– Sim, bom, seria bom – disse ela. – Mas não tenho nenhum pneu. É muito grande e pesa muito no carro.

– Precisas de ter um pneu de substituição – ele endireitou-se.

– Obrigada pelo conselho – replicou ela, irritada com o comentário, – mas como não tenho, não serve de muito.

– E o que vais fazer agora?

– Agradecer – olhou para as escadas que levavam ao apartamento dele. – Não quero fazer-te perder mais tempo – acrescentou, ao ver que ele não se mexia.

Ele olhou para o saco de náilon que havia no chão. Cerrou os dentes com reprovação.

– Não vou deixar-te carregar o pneu sozinha – afirmou. Ela decidiu que não era agradável.

– Não o carrego, arrasto-o. Já o fiz antes. A oficina fica a um quilómetro daqui. Vou a pé, Randy arranja o pneu e volto com ele. É fácil e um bom exercício. Portanto, obrigada pela tua ajuda, tem um bom dia.

Inclinou-se para o pneu. Ele interpôs-se.

– Eu levo – replicou.

– Não, obrigada. Não é preciso.

Tinha pelo menos mais vinte centímetros e cerca de trinta quilos do que ela… todos de músculo. Quando franziu os olhos e olhou para ela fixamente, teve a impressão de que tentava intimidá-la. E estava a conseguir, mas não ia deixá-lo perceber. Era dura. Era determinada. Era…

– Mãe, posso comer uma torrada?

Virou-se para a filha, que estava à porta do seu apartamento.

– Claro, Zoe, mas eu ajudo. Vou já.

– Está bem, mãe – Zoe sorriu e fechou a porta.

Elissa olhou novamente para Walker e descobriu que aproveitara o momento de descuido para levar o pneu para o seu todo-o-terreno, um carro muito caro e deslocado naquela vizinhança.

– Não podes levar o pneu! – exclamou, correndo atrás dele. – É meu.

– Não estou a roubá-lo – disse ele, num tom aborrecido. – Vou levá-lo para ser arranjado. Onde costumas ir?

– Não vou dizer – replicou ela. Isso impedi-lo-ia.

– Bem, levo-o onde quiser – pôs o pneu no veículo e fechou a porta traseira.

– Espera! Para – ela perguntou-se quando perdera o controlo da situação.

– Tens mesmo medo de que desapareça com o teu pneu?

– Não. Claro que não. É só… eu não…

Ele esperou pacientemente.

– Não te conheço – replicou ela. – Eu resolvo os meus assuntos. Não quero ficar a dever-te nada.

– Compreendo – aceitou ele, surpreendendo-a. – Para onde queres que leve o pneu?

– Para a Travões e Pneus Randy – compreendendo que não ia render-se, indicou-lhe como chegar. – Mas tens de esperar um momento. Preciso que leves uns brincos.

– Para Randy? – ele elevou uma sobrancelha.

– Para a irmã. É o aniversário dela – respirou fundo, odiando ter de dar explicações. – É como lhe pago pelo seu trabalho.

Esperou que ele a julgasse ou, pelo menos, fizesse um comentário irónico. Walker encolheu os ombros.

– Vai buscá-los.

Demorou uns três minutos a chegar à Travões e Pneus Randy. Quando estacionou, um homem baixo e de barriga volumosa esperava.

Walker adivinhou que era Randy em pessoa.

– Traz o pneu de Elissa? – perguntou o homem.

– Está lá atrás.

Randy deu uma olhadela ao BMW X5 de Walker.

– Aposto que leva esse à oficina da marca.

– Ainda não tive de o fazer, mas vou fazê-lo.

– Bonito veículo – Randy dirigiu-se para a parte de trás e abriu a porta. Gemeu ao ver o pneu.

– Pobre Elissa! Estão em obras na zona onde trabalha. Juro que qualquer prego que cai na estrada vai ter com ela. E é sempre este pneu. Tem mais remendos do que uma borracha.

– Devia comprar outro – disse Walker.

– Acha? – Randy olhou para ele. – O problema é que não podemos tirar dinheiro de onde não há. Os tempos estão difíceis para todos. Tem os meus brincos?

Walker tirou um pequeno envelope do bolso da camisa e deu-lho. Randy olhou lá para dentro e assobiou.

– Muito bonitos. Janice vai adorar. Muito bem, dá-me uns minutos vou arranjar o pneu.

Walker não quisera ajudar a sua vizinha. Arrendara o apartamento temporariamente, para ter tempo para decidir o que queria fazer com o resto da sua vida, em paz e solidão. Não conhecia ninguém do bairro e não queria que ninguém o conhecesse.

Excetuando um interrogatório breve, mas efetivo da idosa que vivia por baixo, tinha conseguido manter a sua vida na mais completa reserva durante quase seis semanas. Até ver Elissa a lutar com os parafusos.

Desejara ignorá-la. Esse fora o seu plano. Mas não conseguira. Um defeito que tinha de corrigir. E nesse momento, olhando para o pneu estragado, que poderia rebentar assim que chegasse aos oitenta quilómetros por hora, sentiu-se incapaz de aceitar a situação.

– Dê-me um novo – resmungou.

– Vai comprar um pneu a Elissa? – Randy elevou as suas sobrancelhas espessas.

Walker assentiu. Se fosse por ele, substituiria os dois pneus traseiros. Mas só tinha um ali.

– De onde conhece Elissa e Zoe? – perguntou o homem, inchando o peito.

Zoe? Walker ficou em branco por um segundo, depois recordou-se da menina. A filha de Elissa. Não devia qualquer explicação àquele tipo. Mesmo assim, respondeu.

– Vivo no andar de cima.

– Elissa é minha amiga – Randy semicerrou os olhos. – É melhor não se meter com ela.

Walker sabia que mesmo depois de passar toda a noite fora, conseguiria derrubar aquele homem e ainda teria força para correr quilómetro e meio em quatro minutos. A atitude de Randy teria sido engraçada, mas era sincera. Importava-se com Elissa.

– Só estou a fazer-lhe um favor – replicou Walker, com calma. – Somos vizinhos, mais nada.

– Está bem, então. Porque Elissa passou por muito e não merece que a incomodem.

– Estou de acordo.

Walker não tinha ideia do que estavam a falar, mas não importava. Randy agarrou no pneu estragado e levou-o para a garagem.

– Tenho alguns pneus bons que serão muito mais seguros do que este. Como é para Elissa, farei um bom preço.

– Agradeço.

– Até vou sujá-lo um pouco e talvez não se aperceba da mudança – sugeriu Randy, olhando para ele.

– Certamente, é boa ideia – respondeu Walker, recordando que ela se pusera à defesa quando admitira não ter um pneu de substituição.

– Estás a fazer demasiada força, querida – disse a senhora Ford, com calma, bebendo o seu café. – Não é bom para a massa.

Elissa bateu na massa com o rolo outra vez, consciente de que a sua vizinha tinha razão.

– Não consigo evitar. Estou incomodada. Pensa que sou suficientemente estúpida para não perceber que trocou o meu pneu velho por outro? É algo machista? Os homens pensam que as mulheres em geral são estúpidas a respeito dos pneus? Ou ele pensa, especificamente, que eu sou?

– Tenho a certeza de que pensou que estava a ajudar.

– Quem é ele para me ajudar? Não o conheço. Vive aqui há um mês ou mais, não é? Nunca falámos. E agora, de repente, compra-me um pneu. Eu não gosto disso.

– Parece-me romântico.

Elissa tentou não revirar os olhos. Adorava a senhora Ford mas, caramba, a idosa teria pensado que ver a relva crescer era romântico.

– Assumiu o controlo. Tomou decisões sem me consultar. Só Deus sabe o que espera em troca – Elissa pensou que, fosse o que fosse, não ia conse -gui-lo.

– Não é assim, Elissa – a senhora Ford abanou a cabeça. – Walker é um homem muito agradável. Um ex-marine. Viu que precisavas de ajuda e ajudou.

Isso era o que mais incomodava Elissa. Precisar de ajuda. Por uma vez, gostaria de ter algumas poupanças para um dia mau ou para mudar um pneu.

– Eu não gosto de ficar a dever nada.

– Nem a ninguém. És muito independente. Mas é um homem, querida. Os homens gostam de fazer coisas pelas mulheres.

A senhora Ford tinha mais de noventa anos, era diminuta e daquelas mulheres que ainda usavam lenços de renda. Tinha nascido numa época em que o homem provia e a tarefa da mulher era cozinhar bem e estar bonita enquanto o fazia. O facto de viver assim conduzira muitas mulheres à bebida ou à loucura, que era apenas uma consequência desafortunada que não se comentava em círculos educados.

– Telefonei a Randy – disse Elissa, pondo a massa no molde e ajustando-a. – Disse-me que o pneu custou quarenta dólares, mas não hesitaria em mentir se pensasse que estava a proteger-me, portanto suponho que deve ter rondado os cinquenta.

Tinha exatamente sessenta e dois dólares na carteira e precisava da maioria desse dinheiro para fazer as compras naquela tarde. A sua conta bancária estava a zeros, mas receberia dentro de dois dias, portanto podia arranjar-se.

– Se pudesse comprar um pneu novo, já o teria feito – balbuciou.

– É mais prático do que um ramo de flores – consolou a senhora Ford. – Ou bombons.

– Acredita em mim, Walker não está a corte -jar-me.

– Não sabes.

Elissa tinha a certeza. Tinha-a ajudado porque… Porque… franziu a testa. Não sabia. Certamente, porque lhe parecera patética enquanto lutava para trocar o pneu.

Começou a alisar o segundo lote de massa. Os mirtilos estavam muito baratos na frutaria Yakima. Passara por lá depois de deixar Zoe na sua festa. Tinha o tempo exato para fazer as bases para três bolos antes de ir buscar a sua filha.

– Acabarei os bolos quando voltar das compras – disse Elissa, mais para si do que para a sua vizinha. – Possivelmente, se lhe der uma…

– Uma excelente ideia – a senhora Ford sorriu. – Imagina o que pensará quando provar a tua comida.

– Tentas fazer-te de casamenteira? – Elissa gemeu.

– O que faz uma mulher da tua idade sozinha? É antinatural.

– Eu gosto de estar sozinha. Faz com que mantenha os pés firmes na terra.

A senhora Ford abanou a cabeça e acabou o café. Deixou a chávena na mesa e levantou-se devagar.

– Tenho de ir. Na televisão há um programa especial de promoção de cosméticos da marca Beauty by Tova. Estou a ficar sem perfume.

– Vai, vai – encorajou-a Elissa.

– Deixei-te a minha lista, não foi? – perguntou a senhora Ford, já junto da porta que ligava os dois apartamentos.

– Sim, tenho-a na mala – assentiu Elissa. – Levo-te tudo quando voltar.

– És uma boa rapariga, Elissa – a idosa sorriu. – Estaria perdida sem ti.

– Eu penso o mesmo.

A senhora Ford entrou na sua cozinha e fechou a porta atrás dela.

Quando Elissa se instalara lá, perturbara-a descobrir que o apartamento dela e o da sua vizinha se comunicavam pela cozinha, mas depressa isso se tornara numa alegria. A senhora Ford podia ser idosa e antiquada, mas era atenta, carinhosa e adorava Zoe. Tinham-se tornado amigas muito depressa e Elissa e a senhora Ford chegaram a um acordo que as beneficiava a ambas.

De manhã, a senhora Ford preparava Zoe para a escola e dava-lhe o pequeno-almoço. Elissa ocupava-se das compras da sua vizinha, levava-a às suas consultas e verificava o seu estado de saúde com regularidade. Embora a senhora Ford não passasse muito tempo em casa. Era um membro muito ativo do centro para a terceira idade e as suas múltiplas amizades costumavam ir chamá-la para jogar às cartas ou fazer uma visita ao casino.

– Quero ser como ela quando envelhecer – pensou Elissa, levando as três bases de bolo para o forno.

Mas até chegar esse momento, tinha de descobrir de onde tiraria o dinheiro para pagar o pneu e o que dizer ao seu vizinho para que entendesse que nunca, sob nenhuma circunstância, se interessaria por ele.

Nem por uma aposta. Nem que aparecesse nu.

Mas admitiu que, nesse caso, certamente olharia para ele atentamente, porque há anos que não via um homem nu. E ele era mais espetacular do que a maioria.

– Não preciso de um homem – murmurou Elissa, iniciando o temporizador. – Estou bem. Tenho força. Só faltam treze anos para Zoe estar na universidade. Então, poderei voltar a ter sexo. Enquanto isso, terei pensamentos puros e serei uma boa mãe.

E, possivelmente, pensaria no seu novo vizinho nu. Porque se sentisse alguma tentação, não se importaria que ele se encarregasse de a solucionar.

Zoe deitou-se às oito e, meia hora depois, estava a dormir. Elissa, carregada com um dos seus bolos de mirtilos e os seus últimos cinco dólares, subiu as escadas para o apartamento de Walker.

Apesar do silêncio, o seu carro estava estacionado à frente da casa, portanto devia estar lá. Não vira ninguém a chegar para ir buscá-lo. Embora também não tivesse estado a vigiar. Claro que não! Tinha observado as idas e vindas da vizinhança para estar alerta para qualquer problema e ser uma boa cidadã. A sua confiança em que Walker estava sozinho era apenas um efeito secundário da sua atividade cívica altruísta.

Não se importava que saísse com alguém, certamente. Mas já era bastante incómodo aparecer em sua casa com um bolo e cinco dólares para ter de enfrentar uma pessoa adicional. Embora nenhuma mulher que saísse com Walker a considerasse uma ameaça. Elissa sabia exatamente que imagem dava: a rapariga saudável da porta do lado. Não se importava. A sua aparência fazia com que os seus clientes se sentissem protetores com ela, em vez de tentarem seduzi-la, e isso facilitava muito a sua vida.

Obrigou o seu cérebro a voltar à realidade. Estava na parte superior da escada, a centímetros da porta de Walker. Se ouvira que subia, estaria a observá-la, a perguntar-se porque não batia à porta.

Portanto, bateu e esperou que abrisse.

Tinha bom aspeto. A t-shirt estendia-se sobre os seus ombros largos e peito musculado. Sem dúvida, aqueles músculos eram a razão pela qual não tivera problemas a desapertar os parafusos. Tinha umas calças de ganga largas, gastas e descoloridas. Os seus olhos escuros pareciam inexpressivos, mas não assustavam, sugeriam que mantinha o mundo à distância.

– Olá – cumprimentou ela. – Fiz um bolo – ofereceu. – É de mirtilos – acrescentou.

– Fizeste-me um bolo? – perguntou ele, num tom grave. O tom da sua voz parecia sugerir que pensava que estava louca e isso incomodou-a. Não era ela que quebrava as regras.

– Sim, um bolo – pôs-lho na mão e depois ofereceu-lhe a nota gasta de cinco dólares.

– Vais pagar-me para comer o teu bolo?

– Claro que não. Pago-te para… – fez uma pausa e respirou fundo. Tinha passado de agradecida a enojada em dois segundos. – Compraste-me um pneu. Pensavas que não ia perceber que era um pneu novo? É algo que pensas de mim em concreto ou das mulheres em geral? Sei que se trata de algo masculino. Não o terias feito se eu fosse um homem.

– Não terias precisado da minha ajuda se fosses um homem.

– Talvez – era muito provável, mas não se tratava disso. – Puseste o pneu sem a minha autorização. Até o esfregaste com terra para que não parecesse tão novo. Na verdade, parece-me muito estranho.

Ele quase sorriu. Um sorriso leve, sem chegar a mostrar os dentes, mas pareceu mais acessível e aberto.

– Isso foi ideia de Randy.

– Parece típico dele.

– Queres entrar e falar disto ou preferes continuar aí? – ele deu um passo atrás.

– Estou bem aqui. Não é uma visita social.

– Elissa, entendo – o sorriso desapareceu. – Não gostaste que te tenha comprado um pneu. Mas tinha tantos remendos que era perigoso. Não vou pedir-te desculpa. Não tinha nenhuma intenção oculta. Não quero nada – levantou o bolo. – Exceto isto. Cheira muito bem.

Gostou que não usasse o pneu contra ela. Essas coisas não aconteciam com frequência.

– Sei que pensavas que estavas o que era correto – disse, lentamente. – Mas não tens o direito de interferir na minha vida. Telefonei a Randy para lhe perguntar quanto custou. Penso que me enganou nuns dez dólares, portanto vou pagar-te cinquenta. Demorarei algum tempo. Mas o bolo é para te demonstrar que falo a sério e este é o primeiro pagamento.

– Não quero o teu dinheiro – disse ele, olhando para a nota.

– Eu não quero ficar a dever-te nada – não tinha muito dinheiro, mas pagava as suas contas a tempo e nunca usava cartões de crédito, exceto em emergências.

– És teimosa.

– Obrigada. Custa-me muito sê-lo.

– E se te dissesse que o dinheiro não significa nada para mim?

Ela perguntou-se se isso significava que tinha a mais. Suspirou ao pensar assim. Na sua próxima vida ia ser rica, sem dúvida. Estava no topo da sua lista de desejos. Mas naquele momento…

– Para mim, sim – disse.

– Está bem. Mas não tens de me pagar com dinheiro. Podíamos fazer uma troca.

Ela sentiu um brilho de raiva. Ali estava a verdade. Por trás daquele rosto bonito havia um porco desagradável e malvado sem coração. Tal como a maioria do resto dos homens do planeta.

«É óbvio.» Nem sequer sabia porque se surpreendia. Sentira uma atração momentânea por Walker e, segundo o seu historial, isso significava que tinha de ter algo de mal. Tinha esperado alguma sentença terrível. Mas não em algo parecido.

– Nem que fosses o último homem vivo depois de uma bomba atómica – disse, cerrando os dentes. – Não posso acreditar que tenhas sugerido que seria capaz de… – desejou esbofeteá-lo. – É um pneu. Não é como se me tivesses doado um rim.

– Irias para a cama comigo se doasse um rim? – ele teve a falta de vergonha de sorrir.

– Tu entendes. Vou-me embora. Envio-te o resto do dinheiro por correio – virou-se para se ir embora, mas ele interpôs-se entre ela e a escada. Não sabia como conseguira mover-se tão depressa.

Olhava para ela com o rosto sombrio, sem rasto de humor.

– Jantares – disse, em voz baixa. – Falava de algumas refeições. Cozinhas todas as noites e consigo sentir o cheiro. Ando a viver de pratos congelados e à custa da comida da minha cunhada. Quando falei em troca, referia-me a isso. Era o que queria dizer.

Não estava a tocar nela, no entanto, sentia a sua proximidade. Ele era muito maior do que ela e devia ter sentido medo. Estava nervosa, mais nada.

Jantares. Isso fazia sentido. Quanto pensava nisso, mais sentido tinha. Porque, na verdade, quem esperaria sexo em troca de um pneu?

– Desculpa – disse, baixando o olhar. – Pensei que…

– Eu sei. Não era assim. Não faria isso.

Não faria? Procurar sexo com ela? Não era que ela procurasse sexo ultimamente nem quisesse fazê-lo, mas porque a descartava assim? Parecia caseira e saudável, mas era bonita. E inteligente. Ser inteligente também importava ou não?

Talvez tivesse namorada. Talvez fosse comprometido. Ou homossexual. A última ideia fê-la sorrir. Não tinha a impressão de que Walker fosse homossexual.

– Vamos recomeçar – disse ele. – Comprei o pneu porque pensei que o teu não suportava outro remendo. Randy cobrou-me quarenta e cinco dólares. Aceitarei o bolo e o dinheiro. Podes pagar-me como queiras. Esquece o que disse dos jantares, está bem? O dinheiro serve.

Ele estava a fazer o que era correto, no entanto, ela tinha vontade de discutir.

– Parece-me bem – aceitou.

– Então, combinado – passou o bolo para a mão esquerda e ofereceu-lhe a direita para selar o pacto.

– Está bem – assentiu ela. Ao sentir os seus dedos quentes e fortes, sentiu um formigueiro na barriga. A reação inesperada levou-a a dar um passo atrás.

O perigo tinha muitas formas. E aquele em concreto era grande, poderoso e muito sensual para a sua paz mental. Tinha treze anos de celibato pela frente e ver Walker não ia facilitar as coisas.

– Tenho de ir – murmurou, rodeando-o e começando a descer. – Desfruta do bolo.

– Certamente. Obrigado, Elissa.

Ela correu para casa, fechou a porta e apoiou-se até o seu coração recuperar a normalidade. Então, apercebeu-se de que continuava a ter a nota na mão. Mas não ia voltar a subir naquela noite. Pô-lo-ia na sua caixa do correio ou algo parecido.

Era óbvio que devia evitar Walker a todo o custo. Por muito agradável que parecesse, a sua premissa continuava a ser verdade. Se a atraísse, teria um problema grave. E não podia permitir-se ter outro desastre com um homem na sua vida. Ainda estava a pagar pelo desastre do último.

Literalmente.

Dois

Walker não teve oportunidade de bater à porta do seu irmão. Estava a alguns metros quando esta se abriu e uma mulher muito grávida se dirigiu para ele a correr, era Penny.

– Tens uma caixa de ferramentas – disse, abraçando-o o mais forte que a sua barriga volumosa permitia. – Diz-me que lá dentro há ferramentas. Reais, com partes de metal e múltiplos usos.

– Deixei as de brincar em casa – disse ele, rodeando-a com um braço e levantando a caixa com o outro. – Quando me pediste para trazer ferramentas, assumi que te referias às reais.

– Obrigada – replicou ela. – Amo Cal. É brilhante, encantador e outras coisas que não mencionarei por respeito, dado que é o teu irmão, mas não tem jeito para estas coisas.

– Eu ouvi isso – Cal gemeu da porta. – E tenho muito jeito.

– Claro, querido – disse Penny, entrando. – Não te importas de ajudar? – perguntou a Walker.

Ele inclinou-se, beijou a face e depois deu um murro amistoso ao irmão.

– Fico feliz por estar aqui. Estás grávida, continuas a trabalhar e Cal está ocupado a gerir um império. Eu tenho tempo.

Seguiu-os através de um salão cheio de caixas. Penny mudara-se para casa de Cal pouco depois do casamento, no princípio de julho. Embora tivessem passado quase seis semanas, não fizera muito quanto a desembalar.

– Estás a julgar-me – disse Penny, por cima do ombro. – Percebo. Sei que este desastre viola o teu código militar da honra, ou algo assim, mas aceita-o.

– Disse alguma coisa? – perguntou Walker, sorridente.

– Não é preciso.

– Talvez o resto da casa pareça um desastre, mas a cozinha está perfeita – disse ela, parando à frente da cozinha enquanto punha o cabelo atrás da orelha.

– Porque será que não me surpreende? – Walker olhou para o irmão. – Para quantas caixas tiveste de arranjar espaço?

– Perdi a conta – disse Cal, com ligeireza. – Na vigésima quinta decidi que não merecia a pena saber.

Penny era chef no The Waterfront, um dos quatro restaurantes pertencentes à Empresas Buchanan. Em teoria, era um negócio familiar, mas só um dos Buchanan trabalhava lá.

– Preciso do equipamento adequado – disse Penny, desviando-se para que Walker entrasse na cozinha. – Não pode fazer-se magia com porcaria.

– Devias pôr isso no teu cartão de empresa – disse ele, olhando para as paredes amarelas e as chaleiras penduradas numa barra sobre a bancada central. A cozinha parecia maior desde que não era vermelha. A luz que entrava pelas janelas iluminava os azulejos da zona do fogão.

– Puseste azulejos, mas não desempacotaste nem preparaste os móveis do bebé? – perguntou, sem conseguir evitar.

– Tinhas de o dizer, não é? – Cal olhou para ele com pena.

– Desculpa – Penny aguçou o olhar. – Estavas a criticar-me? Querias comer aqui hoje?

– Não estava a falar a sério – disse Cal, parando entre eles. – Nem todos entendem como funciona a tua memória privilegiada – baixou o tom de voz. – Walker trouxe ferramentas, lembras-te?

– Eu sei – Penny riu-se. – Não importa. Mas que não me faça sentir-me culpado. Doem-me as costas.

– Desculpa – disse Walker, desfrutando do intercâmbio. Sempre gostara de Cal e Penny como casal e alegrara-se por voltarem a juntar-se. – Concentremo-nos no quarto do bebé.

– É por aqui – disse Penny, dirigindo-se para lá. – Acabámos de pintar na semana passada. Bom, Cal pintou eu só fiscalizei.

– À distância – recordou Cal.

– Certo – ela suspirou. – Não posso inalar o cheiro da tinta. Também pendurámos as cortinas. Agora só faltam os móveis. Temos tudo, cómoda, fraldário, berço… mas em caixas.

– Umas caixas muito bonitas – indicou Cal.

– Oh, sim. São fantásticas. Mas seria muito melhor ter onde guardar as coisas.

O quarto do bebé era ao fundo da casa, com vista para o jardim. Havia várias caixas grandes no centro do quarto. As paredes eram de um verde-claro, com rodapés em branco. Umas cortinas transparentes e um estore cobriam a janela.

– A cadeira de baloiço está no escritório – disse Penny. – Até limparmos isto, aqui não há espaço. Também tenho um tapete grande, mas Cal diz que devemos esperar para o pôr.

– Quando tudo estiver montado, limparemos e depois poremos o tapete.

– Vejamos o que compraste – afirmou Walker, pousando a caixa de ferramentas no chão de madeira.

– Eu vou começar a fazer o almoço – disse Penny, saindo para o corredor. – Comemos crepes de marisco com molho cremoso e massa, ainda não decidi de que tipo, e para sobremesa tenho bolo de chocolate com frutas do bosque.

– Parece muito bom – o estômago de Walker emitiu um rugido. Esperou que Penny se fosse embora e, depois, olhou para o irmão. – Comem sempre assim?

– Tive de me inscrever no ginásio – disse Cal.

– O preço da inscrição vale a pena.

– Por causa da comida de Penny? Não duvides.

Olharam para as caixas e decidiram começar pela cómoda.

– Obrigado por ajudares – agradeceu Cal, enquanto rasgava o cartão.

– É um prazer.

– Ainda estás a instalar-te?

Walker abanou com a cabeça.

– Demorei exatamente duas horas a mudar-me e desempacotar tudo.

– Mas tinhas as coisas num armazém, não?

– Não muitas – só algumas coisas pessoais das quais não queria livrar-se. Tivera de comprar um sofá, televisão e cama.

– Gostas do lugar? – perguntou Cal.

– Por enquanto, serve.

O seu irmão tirou a folha de instruções de montagem e atirou-a ao chão.

– Porquê um apartamento? Podias ter comprado uma casa.

– Ainda não sei onde quero viver – admitiu Walker.

Também não sabia o que queria fazer com o resto da sua vida. Pensara em continuar nos marine até se reformar. Mas um dia apercebeu-se de que era hora de parar. – Não fazia sentido comprar uma casa até decidir onde quero ficar.

– Mas vais ficar em Seattle, não é?

– Esse é o plano.

– Queres trabalhar para mim? – ofereceu Cal. – Sendo acionista maioritário, serias bem-vindo.

– Não, obrigado. O café é uma coisa tua.

Há vários anos, Cal e os seus sócios tinham montado o Daily Grind. Os três locais iniciais tinham-se transformado numa cadeia popular de cafetarias na Costa Oeste, que começava a espalhar-se por todo o país. Walker investira as suas poupanças no lançamento da empresa, em troca de ações que não deixaram de subir. Nunca se incomodara em calcular o que valiam, mas sabia que não precisava de trabalhar por dinheiro.

– Continuas à procura de Ashley? – perguntou Cal.

– Com regularidade – Walker encolheu os ombros. – Falei com outras três. Encontrá-la-ei.

– Não duvido. Na verdade, Penny diz que o novo gerente do The Waterfront se demitiu.

– Não é de estranhar – disse Walker. Os restaurantes familiares eram bons negócios, mas era impossível conservar o pessoal executivo. Glória Buchanan, matriarca da família e víbora sem limites, conseguia fazer com que os melhores fugissem. – Glória não está a tornar a vida impossível a Penny, pois não?

– Não – Cal sorriu. – Eu redigi o contrato. Glória não pode pôr um pé na cozinha sem a sua permissão.

– O casamento faz-te bem – disse Walker, pondo as peças da cómoda e abrindo a caixa das ferramentas.

– À segunda tentativa, acertámos. Há seis meses, ter-me-ia parecido impossível. E tu?

– Não me interessa uma segunda oportunidade com Penny. Nem uma primeira. É a tua rapariga.

– Sabes a que me refiro – Cal deu-lhe um murro no ombro. – Não podes ficar sozinho para sempre.

– Porquê? Não preciso de ninguém.

– Todos precisamos de alguém. A diferença é que alguns o admitem antes dos outros.

– Isto incomoda-me – disse Elissa, removendo a panela de chili que havia ao lume. – Incomoda-me sentir-me manipulada, embora seja por sentido de culpa.

Enquanto punha a massa do pão de milho numa bandeja de vidro, pensou que era tudo culpa de Walker. Não fora capaz de deixar de se sentir estúpida por o interpretar mal quando lhe oferecera uma «troca». O seu comentário sobre o cheiro da sua comida assentara na sua mente e estava a fazer chili com o propósito de lhe pedir desculpas. Além disso, ainda tinha de lhe dar os cinco dólares que ele evitara aceitar quando lhe dera o bolo.

Vinte minutos depois, bateu à porta que ligava a sua casa com a da senhora Ford.

– Cheira a chili – disse a idosa, risonha. – Há um momento, tomei um comprido contra a acidez, portanto estou pronta para provar e repetir.

– Está bem. Entra e senta-te. Vou subir para dizer a Walker que o jantar está pronto.

A senhora Ford elevou as sobrancelhas. Elissa suspirou.

– Não é o que pensas. Ainda tenho de lhe dar o primeiro pagamento e quero desculpar-me por… já sabes.

Contara à sua vizinha o mal-entendido desafortunado. A senhora Ford esforçara-se para deixar claro que uma senhora não dormia com um cavalheiro se não fosse por amor ou por uma atração sexual poderosa. Nem sequer a doação de um rim era aceitável. Como se Elissa não soubesse.

– O chili é uma escolha excelente – disse a senhora Ford. – Um prato muito masculino. Nada de verduras com salsichas. Boa estratégia!

– Não é uma estratégia.

– Devia ser. Elissa, é um homem muito bonito.

Elissa abriu a boca e voltou a fechá-la. Não fazia sentido tentar.

– Voltarei em breve. Zoe, o jantar está pronto! – gritou para a sala. – Vai lavar as mãos, por favor.

– Está bem, mãe.

Elissa subiu as escadas, atravessou o patamar diminuto e bateu à porta com determinação. Não ia admitir que se sentia envergonhada com a sua última conversa. Para além de cozinhar para ele, ia agir como se nunca tivesse acontecido.

– Olá, Elissa – cumprimentou ele.

Em algum momento dos últimos três ou quatro dias, esquecera o seu aspeto. É óbvio que o teria reconhecido, era o seu vizinho, mas esquecera as feições específicas.

Não recordava que os seus olhos escuros pareciam observar tudo sem revelar nada. O facto de as suas feições inspirarem confiança imediata e de a sua boca ser dura e intrigante ao mesmo tempo.

Parecia sólido, estável… fiável. Todas as características eram muito apetecíveis, dado o seu historial com o sexo oposto.

– Olá! No outro dia não aceitaste o dinheiro – deu-lhe a nota e manteve o braço firme até ele aceitar.

– Obrigado. Não tinhas de…

– Sim – interrompeu-o com um movimento de pulso. – Ajuda-me a dormir à noite. Também queria pedir-te desculpa pelo mal-entendido. Tirei conclusões pouco aduladoras e não devia tê-lo feito.

– Entendo porque aconteceu.

Ela perguntou-se se seria verdade ou se só tentava ser cortês. E depois perguntou-se como seria tocar na sua pele. Seria áspera ou suave? Cederiam os seus músculos ou seriam…?

Travou mentalmente aqueles pensamentos e sorriu para que ele não os adivinhasse. Não sabia o que estava a acontecer. Vira muitos homens bonitos. Até conhecia alguns pessoalmente. Mas nunca tinha reagido assim. Era pior do que sentir-se culpada, portanto decidiu ir direta à questão.

– Fiz chili – disse. – Mencionaste que gostavas do cheiro da minha comida e que querias que pagasse a minha dívida com comida. Parece-me bem. Portanto, fiz chili e pão de milho. Ainda há bolo, mas suponho que ainda tens, portanto penso que não te interessa. Mas tenho gelado. É de chocolate.

Quando compreendeu que estava a falar demasiado, cerrou os dentes e pigarreou.

– O que quero dizer é que és bem-vindo – pareceu-lhe que não soava muito bem. – A senhora Ford já está em casa. Isto é apenas uma retribuição. Não estou a convidar-te para sair nem nada disso. Não saio com ninguém. Nunca. Também não estou a tentar seduzir-te. Sei que muitos homens pensam que se uma mulher está sozinha, é um desafio. Eu não. Não me interesso por uma relação ou aventura. Não é bom momento para mim. Zoe é muito pequena e há outras complicações.

Pensou para si que as outras eram grandes. Neil media pelo menos um metro e oitenta e não ia desaparecer do mapa.

– Estás a dizer que não queres sair nem ter sexo comigo – clarificou ele.

– Correto – corroborou ela.

– É bom saber.

O seu olhar não fraquejou nem a sua expressão mudou. Ela desejou poder dizer o mesmo de si própria, mas não podia. Sentia como o rubor tingia as suas faces. Devia ter corado como um tomate. Certamente, porque o pobre homem nunca mostrara interesse por ela. Pedira comida, não uma noite de sexo.

– Ai, meu Deus! – ela ofegou. – Não é que tu tenhas sugerido alguma coisa. Só…

– Elissa – levantou uma mão para a fazer calar. – Para enquanto ainda tens vantagem.

– Boa ideia!

– Captei a mensagem.

– Fantástico!

– Entendo porque o disseste. Respeito a tua sinceridade. Dorme tranquila. Não tentarei seduzir-te.

Isso deveria tê-la feito feliz, mas não sabia se ele tentava ser agradável ou se estava a gozar com ela. Desejou poder começar do princípio.

– Queres chili e pão de milho?

– Sim, vou descer e trago um prato. Não quero interferir nos teus planos de jantar.

– Queres dizer que queres comida, mas que não te juntas a nós?

– É um problema?

– Podes fazer o que preferires – era uma surpresa, não um problema.

– Está bem. Vou buscar um prato e já desço.

– Não é preciso. Tenho pratos.

– Assim não terei de descer para to devolver.

Ela fez uma careta. Pensou que, sem dúvida, estava a gozar com ela. Mas, para falar a verdade, merecia-o. Virou-se e desceu para o seu apartamento.

A solução mais simples seria deixar de falar com ele. Assim teria menos oportunidades de se comportar como uma parva. Essa era outra coisa que devia acrescentar à sua lista de desejos para «outra vida». Para além de dinheiro, tinha de ser um pouco menos direta ao falar.

O despertador tocou às quatro da manhã, como sempre durante a semana. Elissa levantou-se imediatamente. Aprendera que o seu corpo reagia melhor se se levantasse antes do amanhecer. Se ficasse mais alguns minutos deitada, corria o risco de não sair da cama.

Tomou banho e embrulhou o seu cabelo numa toalha enquanto punha a maquilhagem mínima. Creme hidratante com um toque de cor, rímel e batom. Depois de vestir o seu uniforme do Eggs ’n’ Stuff, secou o cabelo com o secador, penteou-se e prendeu-o num rabo-de-cavalo. Às quatro e meia, entrou na cozinha e inalou o cheiro do café acabado de fazer.

Quem inventara as cafeteiras com temporizador merecia um prémio ou, pelo menos, que pusessem o seu nome a uma estrela. Elissa ia servir-se de uma chávena quando ouviu um barulho no andar de cima.

Um ruído forte e deslocado. O gemido que o seguiu fez com que tremesse. Passava-se alguma coisa. Algo que deveria ignorar. Mas ouviu-se um segundo ruído e um gemido mais alto.

Walker poderia ter caído e ter-se magoado. Parecia em muito boa forma para isso, mas poderia ter escorregado se estivesse bêbado.

Hesitou entre o seu desejo de não querer envolver-se e saber que não poderia deixar Zoe sozinha sem verificar se estava tudo bem. Depois de deitar uma vista de olhos à sua filha, que continuava a dormir profundamente, Elissa tirou um taco de basebol do armário da entrada e subiu.

Bateu à porta e anunciou-se em voz alta, no caso de ele estar a sofrer alguma alucinação devido às suas lembranças de guerra. Não queria que lhe desse um tiro ou a magoasse num momento de confusão.

Como não respondeu, voltou a bater, dessa vez com mais força.

A porta abriu-se finalmente. Walker apareceu nu, exceto por umas calças de pijama. Precisava de se barbear, tinha o peito nu e, por uma vez, os seus olhos não escondiam os seus sentimentos. Parecia muito divertido.

– Mudaste de ideias sobre vir para a minha cama? – perguntou.

– Ouvi barulho e estavas a gemer – ela olhou para ele com frieza. – São quatro da manhã. O que querias que pensasse?

– A sério? – o seu bom humor desapareceu.

– Não invento esse tipo de coisas.

– Isso era para me tirar os sentidos ou para me proteger do que estava a acontecer? – perguntou ele, olhando para o taco de basebol.

– Não tinha decidido ainda.

– Há muito tempo que ninguém me salvava – os seus lábios tremeram, como se lutasse contra a vontade de rir.

– Estás bem – resmungou ela. – Perfeito. Não voltarei a incomodar-te – virou-se, mas ele agarrou-a pelo braço. Quando olhou para ele, viu que estava sério.

– Desculpa – disse, com sinceridade. – Estava a ter um pesadelo. Acordei no chão. Suponho que gesticulei e bati em alguma coisa quando caí. Foste muito amável por te preocupares comigo.

– Mas era desnecessário – ela suspirou.

– Penso que poderia defender-me de qualquer um que me atacasse.

– Suponho que sim.

– Agradeço-te por me ajudares.

– Agora estás a gozar comigo – disse ela, soltando o braço com um puxão.

– Um pouco.

Nesse momento, o sistema hormonal dela despertou e compreendeu que tinha um homem meio nu muito, muito perto. Sentiu uma descarga elétrica que percorria o seu corpo. O desejo explodiu no seu interior. E ainda não bebera um café.

– Preciso de cafeína – murmurou.

– Eu também.

– Tenho uma cafeteira pronta… – olhou para o seu relógio de pulso, – vinte minutos antes de sair. Podes beber uma chávena, se quiseres.

Esperava que a rejeitasse, mas surpreendeu-a ao aceitar.

– Isso seria muito bom – disse, seguindo-a para o andar de baixo.

Ela desejou indicar-lhe que estava descalço e não tinha camisa, mas disse a si mesma que se não se importava, limitar-se-ia a sorrir e a desfrutar do espetáculo.

Já na cozinha, deixou o taco de basebol, tirou outra chávena e deu-lha. Ambos se serviram.

– Imagino que tomas café simples – sussurrou ela, consciente de que Zoe dormia ao fundo do corredor.

– Era marine – disse ele. – Que outra coisa podias esperar?

– Tens muitos pesadelos? – perguntou ela, apoian -do-se na bancada.

– Vão e vêm – encolheu os ombros e bebeu um gole. – Algumas coisas não se esquecem.

– Foi por isso que o deixaste? Muitas coisas más?

– É possível.

– Não temos de falar disso – afirmou ela, com a sensação de que estava a ser inquisitiva.

– Não importa. Passei muito tempo à procura de franco-atiradores e a esquivar-me de bombas. Às vezes, essas lembranças voltam.