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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

2003 Candace Camp. Todos direitos reservados.

O PODER DO AMOR, N.º 20 - Fevereiro 2013

Título original: Mesmerized

Publicada originalmente Mira Books, Ontario, Canadá

Publicada em português em 2010

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2555-0

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Um

 

1876

 

O candeeiro a óleo criava uma luz ténue e espectral sobre o círculo de rostos, sombreando olhos e cabelo e oscilando pelos contornos marcados da testa e maçãs do rosto. Todos os olhares se viraram para o volumoso armário de madeira situado a curta distância da mesa, sombrio e ameaçador.

De repente, o candeeiro apagou-se e uma das mulheres proferiu uma exclamação. O negrume envolveu-os. As mãos arrefeceram, as pulsações aceleraram. Todos aguardavam, expectantes. Ali, na quietude sombria, era fácil imaginar um dedo frio e fantasmagórico a deslizar pela pele e pensar, com uma combinação palpitante de medo e de curiosidade, que alguém podia falar do outro lado do negro vazio da morte.

Até Olivia Moreland, apesar de se encontrar ali por um propósito muito diferente, achou impossível evitar sentir um pequeno calafrio. Mesmo assim, não arredou pé. Devagar, com cuidado, usando os mesmos truques que aprendera dos farsantes que queria desmascarar, levantou-se da mesa e, ao amparo do negrume, distanciou-se do círculo de pessoas.

Parou por um instante para se habituar à escuridão e, depois, continuou a avançar, devagar. Via muito pouco, pois só contava com a escassa luz que, do corredor, se filtrava pelas frestas da porta. Não queria que ninguém percebesse que se levantara e que estava a andar. Queria surpreender todos quando chegasse ao armário da médium. Tremendo de expectativa, concentrou-se na caixa escura que se erguia à frente dela. Já quase tinha chegado...

Uma mão saiu disparada e fechou-se com força em torno do braço de Olivia. Olivia proferiu um grito de dor e assustou-se. Alguém com uma voz grave e masculina exclamou:

– Já a tenho!

As mulheres gritaram, várias cadeiras caíram ao chão e produziu-se uma agitação generalizada de vozes e movimento.

O receio instintivo e primitivo que invadira Olivia ao sentir que alguém lhe agarrava o braço remeteu ao ouvir aquela voz muito humana e real.

– Solte-me! – gritou, tentando fugir.

– Primeiro, terá de nos explicar o que estava a fazer.

Olivia continuou a lutar enquanto falava num tom baixo e enérgico.

– Solte-me! Está a deitar tudo a perder.

– É claro que sim – declarou o homem, com um leve regozijo. – Ninguém gosta que descubram a sua duplicidade.

– Duplicidade?

Enquanto falavam, ouviu-se um golpe seco, seguido de uma blasfémia entrecortada e, finalmente, alguém acendeu um fósforo. Um momento depois, o candeeiro a óleo voltou a encher a divisão de luz. A primeira coisa que Olivia viu foi os olhos cinzentos e serenos do seu captor.

Sentiu um leve choque, uma sensação quase de familiaridade, embora não conhecesse aquele homem. Se o tivesse visto alguma vez, sem dúvida, ter-se-ia lembrado dele.

Estava sentado à frente do velador, com a cadeira um pouco afastada das duas pessoas que o ladeavam, com o corpo meio virado e inclinado para trás para poder reter o braço de Olivia. Tinha os ombros largos e robustos e Olivia conseguia sentir a força das suas mãos e braços. O seu rosto, magro, era presidido por umas maçãs do rosto altas, amplas e tão afiadas que pareciam capazes de cortar o papel. Era um rosto duro e a intensidade fria do seu olhar reforçava essa dureza. Só a sua boca, ampla, com um lábio inferior generoso, teria suavizado o seu rosto, mas naquele momento cerrava os dentes com desaprovação. O cabelo, grosso e moreno, quase preto, tinha um aspecto descuidado, como se alguém o tivesse cortado com uma tesoura ou, talvez, com uma faca. O desalinho dos seus cabelos repetia-se nas suas roupas que, embora feitas de tecido fino, não tinham sido confeccionadas pelos alfaiates londrinos célebres e estavam um pouco passadas de moda. Olivia pensaria que era um estrangeiro se o seu sotaque não tivesse proclamado a sua condição de aristocrata inglês.

Produziu-se um momento de silêncio enquanto os outros presentes observavam a cena.

– Eu não tenho nada para explicar! – exclamou Olivia, enquanto procurava desesperadamente uma desculpa para justificar o facto de ter abandonado a mesa. Puxou das saias do seu vestido, que se tinha enrodilhado, deixando a descoberto os folhos das suas combinações. Fugira-lhe uma madeixa de cabelo do seu coque, sentia-o a frisar-se na cara. Para cúmulo, aquele olhar prateado e firme incomodava-a terrivelmente.

Mas Olivia recusava-se a deixar-se intimidar. Sabia que era pequena e pouco atraente, como um pardal, em comparação com outros membros da sua família, mais parecidos com perus reais. Mas tinha aprendido a afastar essa impressão com coragem e teimosia.

Lançou um olhar desdenhoso para a mão do desconhecido, ainda fechada em torno do seu braço.

– Exijo que me solte imediatamente.

– Antes, deve-nos uma explicação – replicou o homem, mas relaxou a pressão dos seus dedos o suficiente para que não fosse dolorosa. – O que fazia a andar furtivamente pela divisão? Estava prestes a manifestar-se como um «visitante do além»? – o seu tom estava cheio de cinismo.

– É claro que não! – as faces de Olivia ardiam e sentia o olhar intenso dos presentes. – Como se atreve?

– Senhor, o seu comportamento dista de ser o de um cavalheiro – disse um dos presentes, um homem rechonchudo de bigode encaracolado, uma exuberância hirsuta com que tencionava compensar uma careca lustrosa.

O torturador de Olivia nem sequer virou a cabeça; continuava a estudá-la com o olhar.

– E então? Porque andava em bicos de pés pela divisão?

Outro convidado interveio.

– É estranho, menina... hum... Lamento, mas não recordo o seu nome.

Infelizmente, Olivia também não o recordava, pelo menos, o nome que tinha usado naquela noite, quando chegara. Sabia que o seu aspecto comum era uma bênção nesse sentido, já que conseguia passar despercebida naquelas reuniões usando um apelido falso. Infelizmente, com o sobressalto dos últimos minutos, esquecera-se dele.

– Comstock – resmungou finalmente, quando se lembrou, mas a sua hesitação tinha durado demasiado. A julgar pelos semblantes dos presentes, nenhum deles acreditava nela.

– Que convincente! – gozou o seu captor. – Agora, menina «Comstock», porque não confessa quais eram as suas intenções? Ia cobrir a cabeça com um lençol ou só queria proferir alguns gemidos?

– Valha-me Deus! – exclamou um dos homens num tom alto, ao mesmo tempo que se endireitava. – O que raios insinua? Nunca permitiria trapaceiros na minha própria casa!

– Saint Leger... – disse o homem que estava sentado junto do captor de Olivia, – pode saber-se o que está a fazer? – virou-se para o seu anfitrião. – Coronel, peço-lhe desculpas. Lorde Saint Leger não queria faltar-lhe ao respeito, tenho a certeza.

– É claro que não – disse lorde Saint Leger com aspereza, lançando um olhar para o coronel. – Não há dúvida de que também estava a defraudá-lo.

– Defraudar! – gritou a esposa do coronel, estupefacta.

Do interior da enorme caixa ouviu-se um gemido, que cresceu em intensidade quando ninguém respondeu. A esposa do coronel emitiu outro som e levantou-se.

– Senhora Terhune! Como pudemos esquecer-nos de si?

Um dos homens apressou-se a abrir a porta do armário da médium. Ali, sobre uma banqueta, estava sentada a grisalha senhora Terhune atada de pés e mãos, na mesma posição que estivera há alguns minutos, quando a tinham fechado dentro da caixa. A esposa do coronel e o homem que abrira o armário apressaram-se a soltá-la. Olivia reparou na facilidade com que caíam as cordas. Estava convencida de que a médium se soltara e que, depois, ao ouvir o alvoroço, atara outra vez as cordas. Mas, claro, já não podia prová-lo.

– Já está! Vê o que fez? – gritou Olivia para lorde Saint Leger. Ele virou-se para ela e arqueou as sobrancelhas preguiçosamente.

– O que é que fiz?

– Estragou tudo!

Saint Leger sorriu e a mudança que se operou no seu semblante foi espantosa. Ao olhar para ele, Olivia sentiu vertigens e respirou fundo de forma involuntária.

– Não duvido – corroborou Saint Leger. – Desculpo-me por a ter interrompido, menina... «Comstock». Devia tê-la deixado interpretar o seu papel antes de descobrir as suas intenções.

– Não descobriu nada, tolo! – gritou Olivia, demasiado decepcionada e furiosa para se preocupar com as maneiras. – Estava prestes a provar...

– Quem são estas pessoas? – perguntou a médium, num tom que atraiu a atenção de todos os presentes. – Sinto-me tão... estranha. Estava em transe e, de repente, umas vozes iradas devolveram-me à realidade. Estou cansada. Falei? Os espíritos vieram?

– Não – gritou o coronel e lançou um olhar fugaz para Olivia e lorde Saint Leger. – Não houve visitas, nem palavras do além. Nada, excepto estas duas pessoas a interromperem a sessão.

– A interromper... – Saint Leger estava boquiaberto. – Surpreendi estas duas mulheres a tentarem perpetrar uma fraude e a única coisa que sabe dizer é que «interrompi» esta pequena farsa?

– Farsa? – o rosto do coronel adquiriu um tom avermelhado alarmante.

– Céus! – o homem que estava junto de Saint Leger gemeu e apressou-se a interceder. – Coronel, por favor, perdoe-o. Lorde Saint Leger viveu muitos anos na América do Norte e receio que tenha esquecido as suas maneiras – o homem lançou um olhar significativo a Saint Leger. – Tenho a certeza de que não queria ofendê-lo.

– É claro que não – declarou Saint Leger. – Foi enganado por esta suposta médium e a sua sócia, a menina «Comstock».

– Eu não sou a sua sócia! – exclamou Olivia.

– Senhor, garanto-lhe que nunca tinha visto esta mulher na minha vida – disse a senhora Terhune, olhando para Olivia sem compreender.

– Então, o que fazia a passear pela sala durante a sessão? – inquiriu Saint Leger.

– Ignoro-o – declarou a senhora Terhune com calma e cravou o seu olhar severo em Olivia. – Menina, dei instruções a todos para não se levantarem da mesa. É muito importante. Os nossos amigos do outro lado são muito exigentes.

– Tenho a certeza – replicou Olivia com ironia e perguntou-se se ainda estaria a tempo de sair do apuro alegando que se levantara devido a uma emergência indigna de menção. Infelizmente, uma das mulheres da mesa escolheu aquele momento para exclamar:

– Espere, eu conheço-a. Não é a menina Comstock. É aquela mulher que persegue os médiuns. O meu irmão esteve a falar-me de um simpósio a que assistiu...

– Valha-me Deus! – gritou o coronel. – Ambos vieram com o propósito de causar um alvoroço. Como se atrevem a entrar na minha casa com um falso pretexto? Estou a pensar em expulsá-lo, senhor.

Saint Leger soltou o braço de Olivia e levantou-se. A sua altura e a amplitude dos seus ombros tiraram importância à ameaça do coronel.

– Não se incomode, senhor – disse, com calma. – Já me vou embora. É evidente que todos os presentes preferem continuar enganados.

Saiu com passo largo da divisão e, quando o coronel se virou para Olivia, ela optou por imitar Saint Leger em vez de se expor a uma humilhação maior. O anfitrião saiu atrás deles da sala e chamou os criados. Um lacaio de rosto pétreo passou-lhes os casacos e os chapéus e abriu a porta principal. Fechou-a com um estrondo assim que lorde Saint Leger e Olivia atravessaram a soleira.

Saint Leger parou bruscamente no degrau e Olivia chocou contra as suas costas com um gemido de irritação. Ele virou-se para olhar para ela com atenção. Olivia estava furiosa, mas sabia que a sua fúria era infrutífera porque estava a tentar vestir a capa e segurar o chapéu ao mesmo tempo.

Saint Leger reparou na resistência de Olivia e sorriu. Ele já pusera a cartola e a sua capa ligeira.

– Permita-me – disse e estendeu a mão para tirar a capa dos dedos de Olivia. Sacudiu-a e pô-la sobre os ombros dela. Olivia sentiu o toque dos seus dedos através do tecido e tremeu. Quando Saint Leger estendeu a mão para os laços da roupa, como se quisesse atá-la, Olivia adiantou-se e disse:

– Não se incomode. Já fez o suficiente.

Ele arqueou uma sobrancelha e disse:

– O que aquela mulher disse é verdade? É inimiga dos médiuns?

– Dedico-me a desmascarar os enganadores – replicou Olivia, com aspereza. – Estou disposta a acreditar em todos os que consigam demonstrar de forma confiável que contactaram com o além, mas como ainda não encontrei um único médium em Londres que possa fazê-lo, tenho de pensar que são farsantes.

– Então, não estava a ajudar a senhora Terhune?

– É claro que não!

– E o que fazia a andar furtivamente na escuridão?

– Não fazia nada «furtivo». Caminhava em silêncio para o armário para surpreender a senhora Terhune, que tinha desatado as cordas e estava prestes a mostrar um absurdo retrato por cima da porta para o fazer passar por um espírito. Eu tinha um fósforo preparado com enxofre.

Olivia suspirou ao recordar a oportunidade perdida e lorde Saint Leger mostrou-se ligeiramente envergonhado.

– Peço-lhe desculpas. Achava que tinha apanhado uma conspiradora.

– Sim, bom... – virou-se para o fundo da rua e fez um gesto. Uma carruagem começou a aproximar-se. Olivia desceu os degraus, seguida por Saint Leger.

– Diga-me, faz isto com frequência?

– Entrar em sessões de espiritismo e tentar demonstrar que são uma fraude? – Olivia voltou a suspirar. – Infelizmente, não. Quando um médium me reconhece, não me deixa assistir. A minha «falta de fé» perturba os espíritos. E poucas pessoas contratam os meus serviços – reconheceu, com ingenuidade. – A maioria prefere «continuar enganada», como o senhor indicou.

Saint Leger ficou a olhar para ela.

– Contratá-la? O que quer dizer?

– Tenho um negócio – respondeu Olivia, deslizou a mão dentro da sua mala e tirou um dos seus cartões. Estava muito orgulhosa deles, embora as pessoas costumassem recebê-los com desaprovação e surpresa, não com admiração.

Saint Leger aceitou o cartão e baixou o olhar para a letra.

– «Menina O. Q. Moreland, Investigadora de Fenómenos Psíquicos».

Saint Leger ficou a olhar para o cartão com perplexidade, enquanto centenas de perguntas passavam pelo seu cérebro. Mas a primeira que saiu foi:

– E a sua família não se importa que...?

– A minha família não é tão antiquada como as outras e não vê nada de mal em deixar que uma mulher exercite a sua inteligência para ganhar a vida – respondeu Olivia, com rigidez.

A carruagem parou à frente da casa do coronel e, fazendo um gesto ao motorista para que permanecesse sentado, Olivia avançou para o veículo. Saint Leger, que a seguira, fez menção de abrir a porta, mas Olivia chegou primeiro.

– E não se importam que ande por aí a perseguir fantasmas? – perguntou Saint Leger, com suavidade.

Olivia semicerrou os olhos e fez menção de responder, mas calou-se ao ver que Saint Leger reparava na insígnia ducal do seu pai, artisticamente pintada na porta da carruagem, e voltava a ler o cartão.

– Céus! – exclamou, com certa perplexidade. – Não será... um dos «loucos Moreland»?

Olivia abriu a porta com ímpeto e entrou na carruagem. Sentou-se e, inclinando-se para a frente, exclamou:

– Sim, sou um dos «loucos Moreland»! Certamente, a que está mais louca de todos. Se fosse a si, queimaria esse cartão, não vá contagiar-se...

Fechou a porta com força enquanto Saint Leger balbuciava:

– Não, espere! Não queria... Eu...

Olivia deu uns golpes bruscos no tecto da carruagem e o motorista começou a andar, interrompendo a frase de Saint Leger.

 

 

– Eu... sinto – concluiu Stephen Saint Leger, com torpor. Baixou o olhar para as suas botas lustrosas de couro e calças de seda elegantes, naquele momento salpicadas de água suja. Suspeitava que o motorista sabia o que estava a fazer.

Claro que, pensou Stephen com tristeza, não o culpava por isso. As suas palavras tinham sido trôpegas e indelicadas. O seu primo Capshaw tinha razão: tinha passado demasiado tempo nos Estados Unidos ou, mais concretamente, nas Montanhas Rochosas. Já não estava habituado a viver na alta sociedade... nem em nenhuma outra.

Não quisera ofender a jovem. Simplesmente, ficara atónito ao compreender que a menina que tinha achado surpreender a ajudar uma médium era a filha de um duque, uma jovem culta de linhagem nobre e fortuna abundante. E tinha resmungado a alcunha com que se conhecia a sua família nos círculos londrinos: os «loucos Moreland».

Os Moreland, embora não fossem loucos no sentido estrito da palavra, eram um pouco... enfim, «diferentes». O velho duque, o avô da menina Moreland, tornara-se famoso pelos seus «tratamentos de saúde» intensos e extravagantes, que incluíam desde banhos de lama até líquidos revitalizantes fedorentos, passando por lençóis molhados em torno do corpo... Essa fora precisamente a causa de ter sucumbido a um último ataque mortal de pneumonia. Passara grande parte da sua vida a viajar por Inglaterra e pelo continente, a conferenciar com curandeiros. Dizia-se que a sua esposa tinha o costume peculiar de falar dos seus antepassados como se conversasse com eles todos os dias. O irmão mais novo do duque, e tio do actual duque, tinha fama de dedicar grande parte do seu tempo a brincar com soldados de chumbo.

O actual duque de Broughton, pai da menina Moreland, estava obcecado com questões da antiguidade. Stephen não sabia com quais, embora recordasse vagamente que o homem coleccionava estátuas, pedaços partidos de vasos e objectos. E casara-se com uma mulher conhecida pelos seus pontos de vista peculiares sobre a reforma social, as mulheres, o casamento e os filhos. Mais deplorável ainda para a aristocracia londrina era que a actual duquesa não fosse filha de um nobre, mas de um homem do campo. O casal tinha vários descendentes, a maioria mais jovem do que Stephen. Ele não os conhecia, pois fora para a América do Norte antes de aparecerem na sociedade, mas, a julgar pelo que ouvira da sua mãe e dos seus amigos, eram pessoas peculiares.

O que descobrira sobre a menina O. Q. Moreland não servira para alterar essa impressão. Era decididamente diferente: saía sozinha de noite para assistir a falsas sessões de espiritismo, avançava às escondidas por divisões às escuras para desmascarar falsos médiuns e até tinha criado um negócio disso.

Stephen passou distraidamente o dedo polegar sobre as letras impressas no cartão. «Investigadora de Fenómenos Psíquicos». Não conseguiu evitar sorrir um pouco ao recordar a atitude desafiante da jovem e aqueles enormes olhos castanhos que, mesmo sendo suaves e quentes, se mostravam ferozes. Bela e delicada, mas disposta a enfrentar qualquer adversário.

Recordou a sensação estranha que tivera ao vê-la pela primeira vez, à luz do candeeiro. Tinha pensado que era uma trapaceira e, no entanto, sentira uma corrente de emoção e de atracção física perturbadora. Uma mistura de desejo e de algo mais, algo que não recordava ter sentido antes.

Com o sobrolho franzido, começou a afastar-se pela rua, mas o homem que estivera sentado ao seu lado durante a sessão de espiritismo saiu da casa do coronel naquele momento e desceu os degraus a correr.

– Saint Leger! – chamou-o. Stephen virou-se, surpreendido.

– Capshaw, pensava que tinhas decidido ficar.

O homem fez uma careta.

– Sinceramente, duvido que tivesse sido bem recebido, depois do espectáculo que deste. Mas tinha de acalmar o coronel Franklin. Disse-lhe que eras meu primo, um cavalheiro e que não propagarias nenhuma calúnia sobre ele.

– Não me importo com esse coronel pomposo – declarou Saint Leger.

– O que querias? – prosseguiu Capshaw, com curiosidade. – Querias participar na sessão de espiritismo para surpreender a médium in fraganti?

– Claro que não. Mas quando ouvi o barulho de saias na escuridão, não consegui resistir à oportunidade de surpreender a trapaceira – encolheu os ombros. – Na verdade, tinha vindo para... Não sei, para ver o que fazem. Para tentar compreender o poder que os médiuns exercem sobre pessoas normalmente racionais.

– Há muitos adeptos do espiritismo – comentou Capshaw. – Não achas possível que alguém possa comunicar com os mortos?

– Parece-me extremamente improvável – disse Stephen, com aspereza. – Se os espíritos falassem diriam algo mais importante do que os mexericos que esses médiuns balbuciam. E porque se dedicam a derrubar objectos? De certeza que têm coisas melhores para fazer do que truques desse tipo.

O primo de Stephen riu-se.

– Além disso, brincam com o sofrimento das pessoas – prosseguiu Saint Leger, num tom lúgubre. – Aproveitam-se da sua vulnerabilidade para lhes tirarem dinheiro.

Capshaw olhou para ele. Tinha ouvido dizer que lady Saint Leger, a mãe de Stephen, tinha estado a assistir às sessões de uma famosa médium russa e a irritação que detectava na voz do seu amigo confirmava as suas suspeitas. O irmão mais velho de Stephen tinha falecido há menos de um ano e a sua mãe ainda chorava amargamente a sua morte.

– Às vezes – disse Capshaw, com cautela, – achar que podem contactar com o seu ente querido ajuda-os a superar a perda.

– Só ajuda o maldito médium a encher os bolsos – resmungou Saint Leger. – Em vez de superarem a sua dor, mantêm-se ancorados na desgraça – interrompeu-se e olhou para o seu primo. – Pensava que a minha mãe estava melhor, menos perdida na tristeza do que quando voltei para casa. E quando decidiu trazer Belinda para Londres pareceu-me um bom sinal. Mas desde que conhece essa tal Valenskaya parece mais desconsolada do que nunca. Dizia-me o mesmo que tu, que não importava que não fosse real, que a ajudaria a suavizar a sua dor. O que importava se assistia a algumas sessões de espiritismo? Mas quando Belinda me escreveu a contar-me que a minha mãe tinha dado o seu anel de esmeralda a essa médium... O anel que o meu pai lhe ofereceu! Nunca o tinha tirado. É evidente que essa mulher exerce um grande poder sobre ela. Foi por isso que vim para Londres. A minha mãe não pára de repetir o que essa mulher diz e nada faz sentido. No entanto, acredita sem parar para pensar.

Capshaw lançou-lhe um olhar compreensivo mas, como Stephen sabia, pouco podia dizer para o ajudar.

– Se conseguisse provar que essa mulher é uma fraude! – prosseguiu Stephen. Lembrou-se da menina Moreland, dos seus olhos castanhos e do seu cartão, mas desprezou a ideia imediatamente. Um homem não podia pedir a uma mulher para resolver os seus problemas por ele e, além disso, não podia expor a sua mãe a semelhante humilhação. No caso de ser pouco, certamente, a jovem era tão peculiar como o resto da sua família.

Permaneceram um momento em silêncio e, depois, Stephen disse, com uma naturalidade estudada:

– O que sabes dos Moreland?

– Os Moreland? Ah, referes-te aos duques de Broughton e aos seus filhos? Os «loucos Moreland»?

– Sim.

Capshaw encolheu os ombros.

– Não conheço nenhum pessoalmente. As raparigas, segundo tenho entendido, são ratos de biblioteca. Não vão a festas... Bom, excepto a Deusa.

– A quê?

– Um poeta amador deu-lhe essa alcunha há anos, quando foi apresentada em sociedade, e ficou com ela. Lady Kyria Moreland: alta, escultural, de cabelo ruivo... Uma beleza. Mas é estranho, poderia ter-se casado com qualquer um, tinha pretendentes a torto e a direito, e ainda recebe muitos pedidos de casamento.

– Quer dizer que continua solteira? – inquiriu Saint Leger, surpreendido.

– Sim. Já te explico. Todas as mulheres garantem que é a mais louca da família. Poderia ter sido uma duquesa, uma condessa... Até um príncipe pediu a sua mão uma vez. Estrangeiro, é claro, portanto não me surpreende que ela não aceitasse. E, mesmo assim, rejeitou todos. Diz que desfruta da vida tal como é. Não tenciona casar-se.

– Certamente, é única na sua espécie – comentou Saint Leger.

– Ah, e outra das filhas faz saltar coisas pelos ares.

– Como?

– Provocou um fogo numa das edificações de Broughton Park, a residência campestre da família, há alguns anos. Armou muita confusão.

– Entendo. Por alguma razão em particular?

O seu primo franziu o sobrolho.

– Não tenho a certeza, na verdade. Ouvi-o comentar no clube e que não era a primeira vez que provocava uma explosão. Ah, e que Broughton ficou fora de si. Aparentemente, o barracão incendiado tinha louça antiga armazenada.

– Interessante – Saint Leger perguntou-se se a autora da pirotecnia seria outra filha ou a sua perseguidora de médiuns.

– Porque estás interessado nos...? Ah, espera – Capshaw parou de franzir o sobrolho. – Não me digas. Trata-se do teu «fantasma»? Era uma das filhas de Broughton?

– Parece que sim – assentiu Stephen.

– Oh! – exclamou Capshaw, bastante surpreendido com a revelação. – Bom, suponho que não devia estranhar.

– Não. Mas, sabes, não parecia assim tão peculiar – fez uma pausa e prosseguiu. – Bom, talvez um pouco, mas bastante sagaz ao mesmo tempo e... atraente precisamente por isso.

– Atraente? – o seu primo semicerrou os olhos.

– Sim. Num sentido geral, sabes?

– Sim...

Stephen fez uma careta.

– Não olhes assim para mim. Não tenho nenhum interesse na menina Moreland. Acredita em mim, a última coisa que procuro é uma mulher e, menos ainda, uma mulher peculiar. Já tenho muitos problemas a administrar as terras da família e a ver a minha mãe a cair nas garras de uma impostora.

Despediram-se pouco depois. Capshaw chamou um cabriolé para que o levasse aos seus aposentos e Saint Leger começou a percorrer a pé os dois quarteirões que o afastavam da sua residência familiar.

Era uma mansão agradável de cidade, estreita e alta, de estilo georgiano, construída há um século por um antepassado de Saint Leger. Stephen parou no fundo dos degraus que conduziam à porta principal e permaneceu a observar a casa por um momento. Tinha vivido nela desde jovem, com a sua chegada a Londres, quando se apaixonara... para, depois, perder a sua amada.

Desprezou a lembrança, subiu com passo ligeiro os degraus e abriu a porta. Um lacaio aproximou-se para pegar na sua capa e no chapéu.

– Milorde, espero que tenha passado uma noite agradável.

– Não tão produtiva como tinha esperado.

Lady Saint Leger está na sala.

– Não saiu?

Milady, a menina Belinda e lady Pamela saíram, milorde, mas regressaram há alguns minutos. Lady Saint Leger queria vê-lo.

– Sim, é claro.

Stephen percorreu o corredor até à sala formal, uma divisão estreita e elegante decorada em branco e azul. Pamela tinha-a decorado, tal como o resto da casa, quando Roderick herdara o título. Stephen sentia a falta das cores originais, quentes e escuras.

A sua mãe estava sentada ao piano, a tocar uma melodia suave. Belinda, a sua alegre irmã mais nova, encontrava-se ao seu lado, a virar as páginas da partitura. Pamela, infelizmente, também estava presente e observava a cena com um semblante aborrecido de um sofá de veludo azul. No entanto, quando Stephen entrou na divisão, esboçou o sorriso lento e levemente misterioso pelo qual era famosa nos círculos londrinos, um sorriso que prometia uma abundância de prazeres secretos.

– Stephen – disse Pamela, na sua voz rouca. – Que surpresa agradável! – pousou a mão em jeito de convite junto dela, no sofá.

– Pamela – cumprimentou-a Stephen, com rigidez e uma leve inclinação de cabeça. Depois, aproximou-se do piano e beijou a sua mãe na face. – Mãe, surpreende-me encontrar-te em casa tão cedo.

Lady Saint Leger ofereceu-lhe um sorriso deslumbrante. Estava vestida, como sempre, de luto rigoroso, embora naquela noite uns brincos de diamantes cintilassem nas suas orelhas. O seu cabelo branco frisava-se com suavidade em torno do seu rosto, afável e ainda bonito, apesar dos anos e da dor vivida.

– Não havia nenhuma festa interessante – explicou a sua mãe. – A temporada de bailes já quase acabou e Belinda estava cansada, portanto visitámos uns amigos, mais nada.

Belinda levantou-se com energia, desmentindo qualquer indicação de cansaço, e rodeou a banqueta do piano para cumprimentar o seu irmão. Tinha o cabelo escuro, como ele, e os olhos também cinzentos, embora menos prateados e mais suaves do que os de Stephen. Era uma jovem bonita, com um brilho de inteligência e curiosidade nos seus olhos de sorriso e gargalhada fáceis.

– Stephen! – exclamou, enquanto o abraçava. – Acompanhas-me amanhã a dar um passeio pelo parque? Prometeste-me. A mãe não me deixa ir sem acompanhante – fez uma careta, com a irritação temperada pelo afecto.

– Amanhã de manhã?

– Claro. É quando todos vão.

– Com todos referes-te ao honrado Damian Hargrove? – perguntou Pamela, num tom de regozijo preguiçoso.

Belinda franziu o nariz e replicou:

– Não. O senhor Hargrove é apenas um amigo – olhou para o seu irmão com semblante suplicante. – Por favor, Stephen, diz que sim.

– É claro. Se conseguires madrugar, claro.

– Claro – Belinda pareceu ofender-se com a dúvida.

Lady Saint Leger levantou-se do piano, segurou na mão do seu filho e conduziu-o para o sofá situado ao lado do de Pamela. Sentou-se junto dele, sorrindo, sem lhe soltar a mão.

Stephen retribuiu o sorriso e disse num tom neutro e cauteloso:

– Quem visitaram? – albergava a suspeita de que se tratava da médium.

Madame Valenskaya. E a sua filha e o senhor Babington, é claro – Howard Babington era o cavalheiro que acolhera a médium russa e a sua filha na sua casa durante a sua estadia em Londres. – Foi uma noite muito agradável.

O sorriso de lady Saint Leger bastava para fazer Stephen achar que Capshaw tinha razão, apesar de tudo. Talvez não fosse tão terrível que a sua mãe acreditasse em todas aquelas patranhas se assim conseguisse ser feliz. Perdera-se na dor depois da morte de Roderick, o irmão mais velho de Stephen, há quase um ano. Stephen demorara vários meses a resolver os seus assuntos e a regressar a Inglaterra para aceitar o título e a herança e, quando chegara, encontrara a sua mãe igualmente desconsolada. Desejara muitas vezes poder aliviar a sua dor. Mesmo que fosse graças à farsa daquela vidente russa, talvez tivesse valido a pena. Afinal de contas, dentro de poucos dias regressariam à sua casa de campo e madame Valenskaya ficaria em Londres. Com sorte, no ano seguinte, quando se deslocassem novamente para a capital, a sua mãe já teria esquecido aquelas tolices.

– Aconteceu uma coisa maravilhosa – prosseguiu lady Saint Leger, num tom cheio de alegria. – A madame contactou com Roddy.

– O quê? – Stephen lançou um olhar para a viúva de Roderick, Pamela. Ela assentiu.

– O espírito soletrou «Roddy».

– O seu diminutivo! – acrescentou lady Saint Leger, com emoção. – Entendes? Não Saint Leger, nem sequer Roderick, como qualquer pessoa poderia chamá-lo, mas o nome carinhoso que eu usava desde que era um bebé. Isso significa que era realmente ele, não achas?

– Mas, mãe, tu própria deves ter dito «Roddy» à frente dessa mulher quando falavas dele – indicou Stephen, sem conseguir conter-se. Lady Saint Leger fez um barulho de desaprovação.

– Stephen, és tão céptico... O que importa que madame Valenskaya saiba que se chama Roddy? Foi o espírito que falou.

– Claro – não fazia sentido, pensou Stephen, raciocinar com ela. Tinha madame Valenskaya num pedestal.

– Foi a primeira vez que Roddy nos falou directamente, embora, é claro, o chefe índio Veado Veloz já nos tivesse dito que Roderick estava bem e feliz – os olhos de lady Saint Leger encheram-se de lágrimas ao recordá-lo. – Não imaginas como fiquei emocionada.

– Sim – disse Stephen.

– Mas não pude evitar entristecer-me um pouco, porque não demoraremos a sair de Londres. E é uma pena que Roddy tenha aparecido exactamente agora, quando estamos prestes a ir-nos embora... A madame está convencida de que o espírito de Roddy quer voltar a falar connosco. Diz que sente a sua impaciência. Mas diz que, quando estão há tão pouco tempo no outro lado, como ele, custa-lhes um pouco a comunicar. A madame está convencida de que voltará em breve.

Stephen deduziu que a médium detestava perder uma cliente tão generosa como lady Saint Leger e que, por isso, tinha feito aparecer o «espírito» de Roddy. Mas manteve a boca fechada. A sua mãe não acreditaria e só conseguiria zangá-la e ferir os seus sentimentos.

– A madame sugeriu que ficássemos em Londres, mas disse-lhe que não podíamos, que tu tinhas vindo para nos acompanhares a Blackhope e que não podia pedir-te para ficares aqui de braços cruzados quando tens tantas tarefas pendentes nas nossas terras. Além disso, a temporada de bailes acabou. Mas, no final, tudo se resolveu! Convidei madame Valenskaya para vir para Blackhope.

Lady Saint Leger sorria de orelha a orelha. Stephen ficou a olhar para ela.

– O quê? Convidaste-a para vir para casa connosco?

A sua mãe assentiu com alegria.

– Sim. E, é claro, a sua filha e o senhor Babington. Não podia deixar de o convidar, quando nos recebeu amavelmente na sua casa tantas vezes. Não posso acreditar que não me tenha ocorrido esta ideia antes.

Stephen cerrou os dentes, sem saber o que dizer. Suspeitava que a ideia da visita fora coisa da médium.

– Tenho a certeza de que madame Valenskaya poderá comunicar com os espíritos com a mesma facilidade em Blackhope do que aqui, em Londres – prosseguiu lady Saint Leger. – Na verdade, quando lhe falei da casa, ficou muito contente. Diz que um lugar tão antigo e cheio de história é ideal para contactar com os espíritos. Nunca tinha pensado nisso, mas faz sentido – ficou em silêncio por um momento e, depois, olhou para Stephen. – Sei que devia ter-te pedido permissão, querido. Afinal de contas, agora a casa é tua. Mas tinha a certeza de que me terias dito que podia convidar quem quisesse.

– É claro, mãe. A casa é tua, sempre o foi.

Aquele era o problema, é claro. Apesar de ser o novo senhor de Blackhope, Stephen nunca diria à sua mãe quem podia ou não convidar.

Lançou um olhar para Pamela, que o observava com um leve sorriso nos lábios. Havia vezes em que se perguntava se Pamela não estaria a encorajar aquele interesse absurdo da sua mãe pelo espiritismo só para o irritar. Ouvia-a tantas vezes a falar de Valenskaya e das suas sessões como lady Saint Leger, mas Stephen achava difícil acreditar que Pamela engolisse aquelas tolices. Era uma mulher que se regia pela cabeça, não pelo coração. Tinha-o demonstrado há anos, ao casar-se com Roderick. Talvez tivesse sentido afecto por Roddy, à sua maneira, mas Stephen não conseguia acreditar que estivesse apaixonada pelo seu irmão e, certamente, não se sentira embargada pela dor que embargara a sua mãe. Na verdade, Pamela estava mais magoada por só ter herdado uma pensão do que por ter perdido o seu marido. Stephen sabia por experiência que tinha um coração frio e calculista e custava-lhe acreditar que desejasse tanto comunicar com Roddy.

Lady Saint Leger deu uma palmadinha na mão de Stephen.

– Eu sei. És um filho muito bom, tal como Roddy. Sabia que não te importarias e, de qualquer forma, passas o dia fechado no teu escritório ou a cavalgar pelas nossas terras. Mal perceberás que temos convidados.

Stephen desejava-o sinceramente, mas limitou-se a dizer, num tom neutro:

– Quanto tempo tencionam ficar?

– Bom, não falámos de datas. Não sei o que acontecerá, sabes? Nem quanto tempo demoraremos a contactar com Roddy. Além disso, três convidados não diminuirão os recursos de Blackhope.

– Não, é claro que não – disse Stephen e ficou em silêncio. Não lhe ocorria nada para dizer que não entristecesse a sua mãe. A vida fora mais fácil, pensou, quando a sua única preocupação fora localizar uma jazida de prata e tirá-la da terra. Pigarreou. – Bom, então... Suponho que poderemos ir dentro de pouco tempo.

– Sim, é claro. Na verdade, quanto mais depressa, melhor. Tenho de me certificar de que a casa está preparada para receber convidados.

Stephen deixou a sua mãe a fazer planos para a visita e começou a subir para o seu quarto. Estava ao fundo da escada quando ouviu uns passos suaves atrás dele.

– Stephen! – reconheceu a voz de Pamela e virou-se com desinteresse.

– O que foi? – perguntou, num tom de voz educado e com o olhar isento de afecto.

Os anos tinham-na mudado um pouco. De cabelo loiro e olhos azuis, continuava a ser bonita, e os seus traços pálidos eram um modelo de perfeição. Avançava para ele no seu passo lento habitual, como se estivesse convencida de que qualquer homem estaria disposto a esperar por ela. Era assim que caminhava pela vida, com confiança e serenidade, convencida de que levaria sempre a sua avante. E, na verdade, tinha bons motivos para acreditar nisso. Os seus planos tinham-se frustrado poucas vezes.

– Porque vais tão depressa? – perguntou, baixando o tom de voz. – Queria falar contigo.

– Sobre o quê? Sobre essas tolices para as quais arrastas a minha mãe?

– Tolices? – Pamela arqueou uma sobrancelha. – Tenho a certeza de que lady Eleanor se horrorizaria se te ouvisse a dizer isso.

– Estou a ver que tu não – replicou Stephen. – Por que diabos vais a essas sessões?

– A tua incredulidade não me horroriza – explicou Pamela. – Todos percebem o teu cepticismo, até mesmo a tua mãe, embora não queira reconhecê-lo. Isso não significa que eu esteja de acordo contigo.

Stephen fez uma careta e começou a virar-se.

– Porque foges de mim? – perguntou Pamela. Sorriu, com olhos brilhantes de certeza. – Antes gostavas de estar comigo.

– Isso foi há muito tempo – replicou Stephen, com aspereza.

Pamela aproximou-se e subiu o degrau inferior. Inclinou-se para ele e pôs-lhe uma mão no peito. Os seus olhos azuis olhavam para ele com ardor.

– Detesto a tensão que há entre nós.

– Não pode haver outra coisa – Stephen fechou os dedos em torno do pulso de Pamela e afastou a mão da sua camisa. – Tu escolheste. És a esposa do meu irmão.

– Sou a viúva do teu irmão – corrigiu-o Pamela, num tom de voz rouco.

– É o mesmo.

Stephen virou-se e subiu as escadas sem olhar para trás.

 

 

Naquela noite, custou-lhe a adormecer, embora bebesse um copo de conhaque enquanto dava voltas pelo seu quarto. Tinha a cabeça cheia de ideias de médiuns e de farsas cruéis... e de uma mulher bela de figura sinuosa e compacta, de olhos castanhos enormes e abrasadores.

Foi uma longa espera na escuridão, não parava de dar voltas, de abrir e de fechar os olhos mas, finalmente, perdeu-se na escuridão...

 

 

«O ar cheirava a fumo e a sangue e, no castelo, ecoavam os golpes das espadas, realçados pelos gemidos dos feridos e moribundos. O cheiro fazia-o pestanejar, o suor escorria pelos seus olhos e ensopava a sua camisa. Só teve tempo para vestir a sua cota de malha e pegar na sua espada.

Estava na escada, na parte de baixo, a recuar devagar pelos degraus curvos de pedra que conduziam à divisão da torre. Sabia que era a sua única esperança de salvar a senhora do castelo. A sua amada.

Encontrava-se atrás dele e resguardava-a com o seu corpo. Como não era uma covarde, não tinha corrido para se refugiar na divisão da torre, com a sua porta pesada de madeira. Pelo contrário, continuava junto dele, virada para a escada, empunhando a sua adaga.

O seu coração estava cheio de amor por ela... e de medo.

– Vai-te embora! – gritou-lhe. – Sobe e fecha-te lá dentro.

– Não tenciono deixar-te – declarou ela, num tom de voz sereno.

Ele continuava a brandir a sua espada para conter o grupo de homens que subia pela escada. Tinha dois à sua frente e na escada que estava unida à parede não havia corrimão, só um espaço vazio que dava para o hall principal. Alguns soldados tentavam subir a escada por ali ou agarrar-lhe as pernas para o atirar ao chão. Um tinha conseguido acertar-lhe, mas, felizmente, fora a parte plana da lâmina que acertara na barriga da sua perna, magoando-o através do couro grosso das suas botas, mas sem chegar a feri-lo. Livrara-se de todos eles com um pontapé poderoso que partira o queixo de um homem e com uma estocada descendente que deixara o outro sem uma mão. Lady Alys, atrás dele, desembaraçara-se de outro soldado, atirando-lhe o atiçador que tinha na mão. O soldado caíra como um fardo, mas, infelizmente, tinham ficado sem atiçador.

Tinha o braço cansado, mas continuava a lutar. Sabia que lutaria até cair rendido e, até então, continuaria a lutar. Sabia que estavam perdidos, mas lutaria. Era a sua única esperança.»

 

 

Stephen esbugalhou os olhos e gritou ao mesmo tempo que se endireitava na cama. Estava encharcado em suor e ainda sentia a dor no braço, o ardor que o suor e o fumo lhe tinham causado nos olhos.

– Valha-me Deus! – exclamou. – O que raios foi isto?