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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2004 Candace Camp. Todos direitos reservados.

UMA MULHER INALCANÇÁVEL, N.º 21 - Fevereiro 2013

Título original: Beyond Compae

Publicada originalmente Mira Books, Ontario, Canadá

Publicada em português em 2010

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2556-7

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Um

 

Kyria estava na grande sala de baile quando ouviu gritos, agudos e penetrantes. Pareciam proceder de certa distância, talvez até mesmo do andar de cima. Kyria, que estivera a falar com Smeggars, o mordomo, sobre a disposição dos arranjos florais do copo-d’água de Olivia, levantou a cabeça ao ouvir os gritos, aguçou o ouvido e, depois, pousou os seus olhos em Smeggars. O mordomo retribuiu o olhar e a forma como o seu semblante sereno se irritou durante uma fracção de segundo convenceu Kyria de que estava a pensar o mesmo que ela: os gémeos tinham voltado a fazer asneira.

Suspirando, Kyria deixou a sua tarefa e saiu para o corredor seguida por Smeggars. Encaminhou-se para a escada e acelerou quando os gritos e os gemidos se ouviram novamente. Subiu a escada, levantando as saias para não tropeçar e, ao chegar ao segundo andar, viu, ao fundo do corredor, uma das aias que, com as mãos na cabeça, parecia estar em pleno ataque de histerismo. Outra aia inclinava-se sobre ela, tentando alternadamente levantá-la e tranquilizá-la. Um lacaio e outra aia entraram a correr na enorme sala que, naquela semana, estava a usar-se com mais frequência devido ao grande número de convidados que tinham chegado para o casamento.

Os preparativos do casamento da sua irmã tinham recaído, como costumava acontecer com quase todos os acontecimentos sociais naquela família, sobre os ombros de Kyria. O seu pai, o duque, assustado com o sem-fim de pessoas que invadira os seus, regra geral, domínios aprazíveis, refugiara-se na sua oficina do jardim, onde podia estar à vontade. A duquesa, que achava que a maioria dos membros da sua própria classe social era frívola e ignorante, não tinha interesse algum em entreter os seus convidados e os afazeres domésticos aborreciam-na. Embora de vez em quando falasse com os empregados sobre os menus, o alojamento dos convidados ou outras coisas semelhantes, era mais propensa a entrar em discussões a respeito das condições de vida horríveis da classe servil em Inglaterra e dos esforços que os trabalhadores deviam fazer para se rebelarem contra a sua sorte. Ao acabar tais discursos, os empregados ficavam confusos e a duquesa, irritada.

Naturalmente, sendo Thisbe a mais velha das irmãs, era de esperar que fosse ela quem se encarregasse dos preparativos, porém, Thisbe estava muito mais interessada nas suas experiências científicas. E teria podido pensar-se com toda a justiça que, tratando-se de um casamento, era a noiva que mais intimamente devia comprometer-se na organização e execução dos preparativos. No entanto, Olivia reagira com maior horror do que o seu pai face à perspectiva daquela invasão de convidados. De modo que era com Kyria que a governanta e o mordomo falavam à procura de instruções e fora ela que passara a semana anterior a organizar o alojamento e as refeições de um grande número de convidados, muitos deles acompanhados por vários criados. Sobre ela pesava a tarefa de proporcionar entretenimento adequado aos convidados enquanto, ao mesmo tempo, se ocupava dos preparativos do casamento. Talvez outros se tivessem sentido incomodados com o esforço, porém, Kyria gostava de semelhantes desafios. Havia momentos, no entanto, em que desejava que os gémeos não se mostrassem tão dispostos a dificultar-lhe a tarefa.

Entrou na sala a correr atrás da aia e do lacaio. Na divisão reinava o caos. Lady Marcross desmaiara numa das poltronas e a condessa Saint Leger, a mãe do noivo, inclinava-se sobre ela, abanando-a com um lenço. A menina Wilhelmina Hatcher, uma das muitas primas dos Moreland, e outra mulher que Kyria não conhecia, levantaram-se com um salto, deitando abaixo um banco e uma mesa, e abraçaram-se, balbuciando histericamente. Lorde Marcross abanava o punho em direcção ao tecto, enquanto a aia e o lacaio corriam à volta da divisão, com as mãos e as caras levantadas, gritando: «Anda cá, passarinho! Anda cá, Wellie!»

O velho lorde Penhurst, surdo como uma porta, aguçou o ouvido. A sua filha gritava para ele, tentando explicar o que se passara e, de vez em quando, a voz do idoso levantava-se sobre o alvoroço gritando: «O que foi? Fala mais alto, menina, bolas!» Atrás dele, lady Rochester, que quase igualava lorde Penhurst em idade, batia com a sua bengala com autoridade, exclamando: «Pára com essa gritaria imediatamente, Wilhelmina!»

Kyria encarregou-se da situação com uma só olhadela. Ao princípio, não compreendera o que causara tal alvoroço, porém, ao levantar o olhar, seguindo o exemplo dos criados e de lorde Marcross, viu o papagaio por cima de uma das janelas que davam para o oeste. O pássaro olhava com olhos brilhantes e a cabeça inclinada para a cena que se desenvolvia por baixo dele.

– Wellington! – exclamou Kyria e, levantando as mãos, indicou que se acalmassem. – Não faz mal, não têm de se assustar. Não é nada. Só o papagaio dos gémeos.

– Um animal de estimação bastante estúpido, para dizer a verdade – resmungou lorde Marcross.

– Bom, não fiques aí pasmada, menina – disse lady Rochester a Kyria, batendo novamente com a sua bengala para maior ênfase. – Faz alguma coisa!

Lady Rochester, a tia-avó de Kyria, era uma idosa enérgica que vestia de preto há trinta anos, nem tanto em sinal de luto pela morte do seu marido como por considerar que a cor preta favorecia a sua tez pálida. Kyria sabia por um retrato da dama na sua juventude que lady Rochester fora uma beleza, embora no seu rosto se visse pouco da sua antiga formosura. Lady Rochester tinha uma língua afiada que nunca hesitava em usar contra quem a rodeava e era uma das poucas pessoas capazes de fazer com que Kyria se sentisse trôpega.

– Sim, claro – virou-se novamente para os outros, dizendo: – Por favor, fiquem em silêncio – levantando a cabeça, acrescentou. – Anda cá, Wellie! – deu uma palmada no ombro como vira Alex e Con fazerem muitas vezes. – Anda cá e dar-te-ei uma guloseima.

O papagaio virou a cabeça e proferiu um grasnido agudo seguido das palavras:

– Guloseima! Wellie, guloseima!

– Exactamente. Wellie, guloseima – replicou Kyria, tocando no ombro novamente.

O pássaro deixou escapar outro barulho. Atirando-se a pique, cravou as garras no cabelo de lady Rochester e continuou a voar com a peruca preta nas patas. Lady Rochester gritou e levou as mãos à cabeça. A visão da cabeça nua de lady Rochester bastou para começar outro ataque de histeria, enquanto do outro lado da divisão o velho lorde Penhurst desatava a rir-se. Kyria tentou conter-se e correu atrás do pássaro, seguida pela aia e o lacaio. Wellington conduziu-os pelo corredor e para as escadas principais. Kyria desceu a correr enquanto o cortejo que a seguia crescia à medida que convidados e empregados se juntavam à perseguição. O primo Albert, que entrava pela porta principal naquele momento, ficou pasmado ao ver aquela multidão a descer as escadas.

– Fecha a porta! – gritou Kyria. – Fecha a...!

– O que...? – começou a dizer Albert, atordoado, e baixou a cabeça ao ver que o papagaio, vermelho como uma chama, se atirava para ele de cabeça.

O pássaro saiu a voar pela porta e Kyria deixou escapar um gemido de exasperação. Era impossível saber para onde iria o pássaro. Passou a correr junto de Albert, que se erguera e pestanejava rapidamente. Protegendo os olhos com a mão, olhou para cima e viu Wellington a abrir caminho entre os ramos de um carvalho, a oeste da casa. Desceu a escada que levava ao jardim, virou-se e seguiu o papagaio. Parou sob o carvalho e olhou para cima. Wellington estava num dos ramos mais altos a destruir a peruca de lady Rochester. Kyria gemeu.

– Malditos sejam Theo e os seus presentes! – a aia chegou junto dela e Kyria virou-se. – Temos de apanhar o pássaro. Traz-me nozes, pode ser? E corta uma maçã. Verei se consigo fazê-lo descer. E Cooper... – virou-se e disse ao lacaio, – procura Alex e Con e diz-lhes para virem agora mesmo se não quiserem perder Wellie.

Os criados assentiram com a cabeça e afastaram-se. O resto dos empregados e dos convidados continuava ao pé de Kyria, olhando para o papagaio na árvore. Kyria passeou o olhar por eles, desejando futilmente que houvesse alguém que pudesse ajudá-la. Reed, o mais responsável dos seus irmãos, saíra a cavalo naquela manhã com o capataz da propriedade para se ocupar de algum problema numa das outras quintas e Stephen e Olivia estavam na igreja a falar da cerimónia, juntamente com a mãe de Kyria. Thisbe e o seu marido estavam, naturalmente, no seu laboratório, perdidos numa experiência ou noutra. O laboratório fora construído há alguns anos para substituir o barracão de Thisbe, que voara pelos ares acidentalmente como consequência de uma experiência. A explosão pegara fogo à oficina do seu pai, causando um pânico generalizado entre os empregados. O novo laboratório era longe da casa principal e das dependências anexas.

Como era de esperar, pensou Kyria, estava sozinha.

– Vá lá, Wellington, desce – pediu, num tom sedutor. – Dar-te-ei guloseimas. Muito melhores do que essa peruca velha. Sê bom, Wellie. Anda cá – bateu no ombro energicamente.

O papagaio parou a destruição da peruca e inclinou a cabeça, olhando para ela. Kyria sorriu e continuou a chamá-lo. Lamentava não saber assobiar. Quando era criança sempre invejara aquele talento nos seus irmãos, porém, por mais que tentasse, nunca conseguira fazê-lo. Teria sido de grande ajuda naquele momento, pensou, pois Alex e Con costumavam chamá-lo com um assobio. Virou-se para a multidão que se reuniu atrás dela e olhou para ela pensativamente.

– Albert, tu sabes assobiar?

– Assobiar? – perguntou o seu primo, olhando para ela com surpresa.

– Sim, assobiar.

– Não sei. Não o faço desde que era criança – indicou, encolhendo os ombros.

– Tenta, pode ser?

Albert tentou, mas não teve sucesso.

– Olá! – gritou o papagaio. – Olá!

– Sim, olá, Wellie – respondeu Kyria, batendo no ombro outra vez. – Anda cá, Wellie. Sê bom, Wellie. Vem ter comigo.

O papagaio olhou para a multidão e voou até um ramo mais alto, deixando cair a peruca ao chão, onde ficou estendida como um animal sem vida. Kyria apressou-se a apanhá-la. Estava destruída, pensou, acovardando-se um pouco ao pensar no sermão que, sem dúvida, a sua tia-avó lhe daria. Ela encarregar-se-ia, pensou, de que Alex e Con também ouvissem a sua parte.

A aia que mandara à cozinha voltou com um punhado de pedaços de maçã e umas nozes.

– Aqui está, menina. Trouxe tudo o mais depressa possível.

– Obrigada, Jenny – respondeu Kyria, pegando num pedaço de maçã e levantando-o para que o papagaio o visse. – Olha, Wellie, uma guloseima!

O papagaio virou a cabeça, mas recusou-se a mexer-se do ramo.

– Não vi os gémeos a caminho da cozinha, menina, mas disse a Patterson para ir procurá-los.

– Estarão cá fora – disse Kyria. – Não perderiam um alvoroço semelhante por nada do mundo.

Nada atraía mais depressa as crianças do que uma gritaria. Embora, naturalmente, elas fossem quase sempre o centro de qualquer alvoroço que acontecia em Broughton Park.

Kyria continuou a tentar convencer o pássaro com os pedaços de comida e ele continuou a ignorá-la. A multidão expectante fazia cada vez mais barulho e, quando uma das mulheres deu uma gargalhada, o papagaio mexeu-se no seu ramo. Kyria tentou sossegar a multidão, embora soubesse que, mesmo que os convidados ficassem calados por um instante, continuariam a falar cada vez mais alto e o ruído e a agitação fariam com que o pássaro se afastasse. Os gémeos detestariam perder o papagaio. Tinha de fazer alguma coisa.

Contudo, a única coisa que podia fazer, pensou, era aproximar-se do pássaro e afastar-se do ruído e do movimento das pessoas, onde Wellington pudesse concentrar-se nela e na comida saborosa que lhe oferecia. Pensou fugazmente em Alex, que poderia subir à árvore. Contudo, ela também soubera subir às árvores quando era criança e, por sorte, essas coisas não se esqueciam.

Estudou a árvore, que não era difícil de subir, e observou o seu traje. Um vestido elegante não era precisamente o mais indicado para subir a uma árvore. Contudo, não tinha tempo para mudar de roupa, de modo que se baixou, agarrou na bainha da saia, levantou-a e introduziu-a na sua cintura. A saia arregaçada deixava a descoberto uma grande extensão das suas pernas e Kyria ouviu exclamações de surpresa. Kyria sabia que a sua conduta seria a bisbilhotice de todos durante vários dias e que, sem dúvida, se transformaria noutro exemplo da longa lista das suas excentricidades.

Guardou os pedaços de fruta e nozes no bolso e aproximou-se da árvore. Agarrando-se ao tronco pelo ramo mais baixo, impulsionou-se para cima. Uma vez de pé, começou a subir, ramo a ramo, até não poder subir mais. Olhou para a multidão reunida lá em baixo, que olhava para ela com estupefacção. Era uma queda muito alta. Pensou que fora parva por subir. Levantou a cabeça e olhou para os ramos à sua volta.

Wellington mexera-se e estava no topo da árvore. Kyria sentou-se e, segurando-se cuidadosamente ao ramo, pôs a mão no bolso, tirou um pedaço de maçã e deu-o ao pássaro.

– Vês? Uma guloseima, Wellie. Anda cá e dar-ta-ei – insistiu. – Sê bom, Wellie. Anda cá.

– Olá – respondeu o papagaio e emitiu um som que se parecia notavelmente com uma gargalhada.

– Sim, olá – Kyria disfarçou a sua exasperação e abanou ligeiramente a mão para o pássaro. – Vês? Uma guloseima para Wellie – tocou no ombro. Deslizou cuidadosamente sobre o ramo, tentando enganar o pássaro para que se aproximasse dela.

Enquanto se deslocava a pouco e pouco, perguntou-se se conseguiria avançar muito mais. Parou e, segurando o ramo com uma mão, estendeu a outra para o pássaro.

– Anda, Well...

Ouviu-se um forte rangido e, de repente, Kyria caiu. Bateu no ramo que havia em baixo, deslizou e, virando-se, tentou agarrar-se freneticamente. As suas mãos agarraram-se à madeira e, de repente, parou, mas deu por si pendurada num ramo a vários metros do chão. Por baixo dela, várias mulheres gritaram. Kyria baixou o olhar para elas e sentiu um nó no estômago ao ver que estava longe do chão. Ia morrer, pensou... e tudo para tentar salvar um papagaio estúpido.

Olhou para a relva e viu um cavalo que se dirigia para a árvore. Sobre o seu lombo estava um homem que cavalgava rapidamente. O chapéu caíra-lhe e o seu cabelo, agitado pelo ar, brilhava ao sol. Kyria sentiu um repentino arrebatamento de esperança. Agarrou-se com força ao ramo, vendo-o cavalgar para ela como um centauro. Serventes e convidados afastaram-se quando o desconhecido saltou a sebe que separava o caminho da relva e correu para a árvore. Kyria sentiu que as suas mãos escorregavam sobre o ramo e teve medo. O cavaleiro puxou as rédeas, parou sob o carvalho e, levantando-se sobre os estribos, estendeu os braços para ela.

– Solte-se – disse, levantando o tom de voz. – Eu agarrá-la-ei.

Kyria permaneceu pendurada, receando soltar-se. Depois, respirou fundo, fechou os olhos e abriu as mãos. Caiu e, por um instante, o terror apoderou-se dela. Depois, chocou com o peito do desconhecido, cujos braços a rodearam ao mesmo tempo que o impulso da queda os derrubava do cavalo. Caíram ao chão com um golpe seco.

Kyria ficou atordoada e abriu lentamente os olhos. Estava estendida sobre o peito do cavaleiro, com a sua camisa branca sob a face. Conseguia ouvir o batimento do seu coração. Mexeu-se cautelosamente, percebendo que todo o seu corpo parecia funcionar correctamente. Sobrevivera. Levantou a cabeça e deu por si a olhar para os olhos mais azuis que alguma vez vira. Sentiu falta de ar. Ele sorriu e a covinha que se formou na sua face morena fez o coração de Kyria acelerar. Era uma sensação estranha que Kyria não tivera antes e que lhe causava irritação.

– Oh, querida – disse ele. – Se soubesse que em Inglaterra podia apanhar mulheres bonitas das árvores, teria vindo antes.

O tom da sua voz fez com que um calor estranho se espalhasse pelo corpo de Kyria. Sentiu que corava e, de repente, percebeu que tinha vontade de se rir. Aquele impulso aumentou a sua exasperação. Ela nunca, nem na sua primeira temporada na sociedade, se comportara como uma adolescente palerma e coquete. A desenvoltura que o forasteiro mostrava fê-la pensar que estava habituado a lidar com mulheres idiotas que se comportavam assim quando ele sorria. Kyria olhou para ele com o sobrolho franzido.

– Não acho graça – replicou.

– A sério? – ele continuou a sorrir. – Eu gosto de salvar raparigas bonitas das árvores.

Kyria olhou para ele com recriminação. Aquele homem era extremamente irritante, pensou. Nem sequer tinha a decência de fingir que ela não se comportara estupidamente. Um verdadeiro cavalheiro teria evitado o que se passara. E, para cúmulo, tentava seduzi-la!

– Eu não precisava que ninguém me salvasse – disse, altivamente.

– Oh, a sério? O erro foi meu, então.

Kyria fez uma careta e começou a endireitar-se. Por um instante, o braço com que lhe segurava a cintura ficou tenso, apertando-a contra ele naquela posição excessivamente íntima. Os olhos dela cintilaram e já se preparava para começar uma reprimenda quando, antes de conseguir falar, ele a soltou e se levantou agilmente, com aquele sorriso insuportável nos lábios. Inclinou-se e ofereceu a mão a Kyria. Ela ignorou a sua mão estendida e levantou-se, olhando para os empregados e para os convidados, que os observavam com pasmo. O facto de eles se levantarem pareceu libertar os outros da sua paralisia e todos se aproximaram de Kyria.

– Oh, milady! – Smeggars, o mordomo, foi o primeiro a chegar até eles. – Está ferida?

– Estou bem – garantiu Kyria, sacudindo as saias.

– Prima Kyria! – Wilhelmina aproveitou para soluçar, escondendo a cara no seu lenço.

– Chorona! – resmungou lorde Penhurst.

– Mas...! – exclamou a amiga da prima Wilhelmina, indignada, porém, um olhar severo de lady Rochester fê-la engolir as suas palavras.

Pelos vistos, a aia de lady Rochester fora ajudar a sua senhora, pois a idosa indomável tinha a cabeça coberta com um gorro preto elegante com rebordo de renda. Inclinando-se sobre a sua bengala, olhou para Kyria.

– Se continuares assim, algum dia partirás o pescoço, Kyria. Lembra-te do que te digo.

– Sim, tia – respondeu Kyria docilmente, demasiado habituada às reprimendas da sua tia-avó para as levar a mal.

O desconhecido olhou para a idosa e fez-lhe uma reverência elegante.

– Rafe McIntyre, senhora, ao seu serviço.

Lady Rochester tentou mostrar-se inflexível, mas Kyria pensou ver um sorriso.

– É americano? – perguntou a prima Wilhelmina, esquecendo o seu choro enquanto olhava para McIntyre.

– Sim, senhora, é verdade. Sou amigo do noivo.

– Oh! – Kyria virou-se para olhar para o forasteiro. – É o sócio de Saint Leger.

Também era um bom amigo de Stephen e seria padrinho de casamento. E ela comportara-se grosseiramente com ele, pensou Kyria, sentindo um novo arrebatamento de vergonha.

– O seu antigo sócio – corrigiu-a ele, pousando nela o seu olhar azul brilhante.

Era bonito, não havia dúvida, pensou Kyria. Qualquer homem se teria dado por satisfeito com aqueles olhos luminosos e aquele sorriso sedutor, porém, ele também fora abençoado com uma figura alta e de ombros largos e com um rosto bem modelado que emoldurava um cabelo castanho claro e abundante. Kyria compreendeu que aquele homem faria desmaiar metade das mulheres da casa. Qualquer dúvida que tivesse acerca da sua linhagem ficaria compensada pela fortuna que, segundo se dizia, juntara graças às minas de prata quando Stephen Saint Leger e ele ainda eram sócios. Por alguma razão, aquela ideia zangou Kyria.

– Para dizer a verdade – comentou lorde Marcross, aproximando-se de McIntyre com a mão estendida, – cavalga magnificamente.

– Receio que o mérito seja do cavalo – disse McIntyre, ignorando agilmente o elogio e, virando-se, procurou o seu cavalo com o olhar. O cavalo estava a alguns metros de distância. McIntyre sorriu e aproximou-se para pegar nas rédeas. – Metade das vezes parece que está prestes a adormecer, mas a verdade é que consegue voar.

– Comprou-o em Inglaterra? – perguntou o primo Albert.

– Na Irlanda – respondeu McIntyre e vários homens aproximaram-se para falarem de cavalos.

– Oh! – Kyria lembrou-se do papagaio. – Wellie! Onde está? Foi-se embora?

O papagaio voara de um ramo para outro mais baixo, zangado por ninguém lhe prestar atenção. Rafe abandonou momentaneamente a conversa e levantou o olhar. Depois, olhou para Kyria.

– Era isso que tentava fazer? Apanhar o papagaio?

Kyria assentiu. Rafe levou dois dedos aos lábios e emitiu um assobio agudo. Para tristeza de Kyria, o papagaio desceu para pousar sobre o ombro de McIntyre.

– Wellie, bom – replicou o pássaro.

Kyria ficou a olhar para eles, zangada. Rafe riu-se e passou um dedo pela cabeça do pássaro.

– Pássaro odioso – disse lady Rochester. – Sempre disse que é ridículo ter um papagaio em Inglaterra. O seu lugar é em África.

– Nas ilhas Salomão, tia – corrigiu-a Kyria. – É oriundo das ilhas Salomão.

– Nunca ouvi falar delas – replicou lady Rochester. – Não sei porque é que o teu irmão pensou que seria um bom presente.

– Trouxe uma gaiola, milady – disse Jenny, a aia.

Rafe lançou um olhar inquisitivo a Kyria e ela assentiu.

– Sim, por favor, ponha-o aí. Jenny, leva-o para o quarto das crianças e põe-no na gaiola grande – ao ver que Jenny fazia uma careta, acrescentou. – Não faz mal. Deixa-o aí por enquanto. Direi aos gémeos para se ocuparem dele. Onde estão esses dois, na verdade?

Jenny olhou para trás e Kyria seguiu o seu olhar. O preceptor dos gémeos permanecia à beira da multidão, com aspecto consternado. Kyria fez-lhe um gesto e ele aproximou-se com renitência.

– Não sei onde estão, menina – começou a dizer, antecipando a pergunta de Kyria. – Deixei-os a estudar Geografia e fui buscar o livro de Latim. Quando regressei, tinham desaparecido – franziu o sobrolho. – Para dizer a verdade, milady, o menino Alexander e o menino Constantine mostram uma falta de disciplina e de decoro que acho intolerável.

– A sério? – perguntou Kyria. – Bem, senhor Thorndike, para dizer a verdade, na minha opinião, isso mostra uma notória falta de habilidade na hora de fazer com que umas mentes ávidas e inquisitivas como as dos meus irmãos se interessem pelas suas disciplinas. Acho que a duquesa lhe explicou os métodos com que prefere que eduquem os seus filhos. Quando examinei os seus cadernos na semana passada...

O preceptor ergueu altivamente o queixo.

– Eu, menina, ensino tal como me ensinaram a mim.

– A memorizar e a repetir? – perguntou Kyria, arqueando uma sobrancelha. – A Geografia pode ser uma matéria fascinante, uma exploração de terras e de pessoas diferentes de nós, não uma enxurrada de nomes de países e de capitais aprendidos de cor. Talvez a minha mãe devesse rever os trabalhos recentes dos meus irmãos e explicar-lhe novamente o que quer.

– Não será necessário, menina – replicou o preceptor. – Porque vou apresentar a minha demissão – assim, virou-se e afastou-se.

– Oh, meu Deus, é o terceiro este ano. Talvez me tenha precipitado.

Rafe desatou a rir-se ao seu lado.

– Falando por experiência, imagino que as crianças se alegrarão por perder o seu preceptor de vista – fez uma pausa e sorriu. – Constantine e Alexander? Como os imperadores?

– Sim. São gémeos, sabe? E o meu pai é perito em cultura clássica. E eu também tenho a certeza de que se alegrarão – ela suspirou.

O mordomo, que se afastara discretamente dos convidados, regressou com uma das aias.

Milady...

– Sim, Smeggars?

– Martha tem uma informação sobre o paradeiro dos gémeos, milady – fixou um olhar severo na jovem criada, que retorcia o avental entre as mãos, com nervosismo. – Fale, Martha.

– Eu, eh, bom, não tenho a certeza, menina – começou a rapariga, timidamente.

– Não importa. Diga-me o que pensa.

– Bom, eh, esta manhã estive a limpar a lareira do quarto das crianças, menina, ouvi os gémeos a falar e, bom, pareceu-me que diziam que iam sair para caçar.

– Caçar? – repetiu Kyria, atónita. – Tem a certeza?

– Não, menina. Ouvi-os falar da caçada e depois um deles, o menino Con, acho, disse que, bom, que iam... intercedê-la... não, interceptá-la, acho. Também estiveram a falar de onde era a caçada.

– Está bem, obrigada, Martha – Kyria franziu o sobrolho.

– Há caçada hoje? – perguntou Rafe.

– Sim. O nosso vizinho, o senhor Winton, ia fazer uma. Alguns do nossos convidados juntaram-se a ela esta manhã, mas não entendo porque é que os gémeos estavam a falar disso. São demasiado novos. Ainda não fizeram onze anos e, de qualquer modo, falam sempre da caça com grande repugnância. Adoram os animais, sabe? E... – Kyria parou. – Oh, meu Deus!

– O que foi? O que se passa? – ele ergueu-se ao ver a expressão de alarme de Kyria.

– Exactamente! Estão a tramar alguma coisa. Eu sei. Vão tentar parar a caçada! – exclamou Kyria, levando as mãos à cabeça. – O senhor Winton ficará furioso. E mesmo antes do casamento de Olivia! Tenho de fazer alguma coisa – virou-se e dirigiu-se para os estábulos.

Contudo, Rafe alcançou-a e agarrou-a pelo pulso.

– Espere. Deixe-me ajudá-la.

O contacto quente e áspero dos seus dedos causou uma sensação estranha no braço de Kyria. Ela pestanejou, olhando para ele, momentaneamente distraída.

– Mas eu... tenho de tentar encontrá-los. Lamento, tem de me desculpar, mas...

– Não, isso é o que estou a dizer-lhe. Eu levo-a.

– No cavalo? Mas o animal estará cansado – Kyria olhou para o cavalo de McIntyre, hesitante.

– Mal suou. É muito forte, garanto-lhe. Não precisa de perder tempo a selar o seu cavalo. Diga-me para onde tenho de ir – McIntyre puxou-a pelo braço e conduziu-a para o seu cavalo. Ajudou-a a montar e montou atrás dela. – Para onde vamos? – perguntou, rodeando-a com os seus braços.

Emudecida de espanto, Kyria apontou com o dedo e Rafe seguiu rapidamente nessa direcção.

 

Dois

 

Kyria estava montada de lado no cavalo, com as costas coladas ao peito de Rafe, cujos braços a rodeavam para agarrar nas rédeas. O seu calor envolvia-a e não conseguia evitar sentir que encaixava bem com ele. Nunca antes montara assim a cavalo e era bastante enervante. Sentia uma agitação inegavelmente excitante.

– Devia ter trazido o meu cavalo – disse, lutando para ignorar o tumulto que sentia no seu interior.

– Porquê? – perguntou e a sua respiração agitou o cabelo de Kyria.

– Bom, eu... – virou-se e deu por si a olhar fixamente para o rosto de Rafe. De repente, sentiu falta de ar. Pigarreou. – Eu, eh, acho que, teríamos ido mais depressa. O seu cavalo vai cansar-se.

– Já lhe disse que é forte. E a menina é leve como uma pena.

– Não sou nada – respondeu ela, secamente. – Meço quase um metro e setenta e cinco.

– Sim, é alta, certamente – ele sorriu, os seus olhos azuis observavam-na com aprovação. – Percebi-o logo. Gosto disso. Mesmo assim, não pesa o suficiente para cansar o meu amigo – baixou o braço e tocou no pescoço do cavalo. – Diga-me para onde quer ir

– Atravesse o prado – disse Kyria, apontando. – Sei onde soltam aos cães. O senhor Winton é muito previsível. Tenho a certeza de que foi por isso que Con e Alex pensaram que conseguiriam impedi-lo. Se subirmos por Bedloe Hill, acho que conseguiremos vê-los.

Atravessaram rapidamente o prado e saltaram a cerca. Kyria, segura no círculo que os braços de Rafe formavam, sentia a excitação da corrida. Tinha o coração acelerado e a respiração agitada. O cheiro masculino de Rafe excitava o seu olfacto, misturando-se com o cheiro do cavalo e com o ar áspero do Outono.

Kyria dirigiu Rafe para uma colina e, ao começarem a subir, diminuíram o passo. Desmontaram quando o desnível se tornou mais abrupto e subiram a pé o resto da colina.

– Espero que consigamos encontrá-los antes de pararem a caçada – disse Kyria, preocupada. – O senhor Winton ficará furioso se a arruinarem. Queria que os nossos convidados se juntassem a ele. Quer desesperadamente que lorde Badgerton lhe dê a sua aprovação. É um caçador consumado. E se Con e Alex arruinarem a caçada... – ela suspirou. – De qualquer forma, não aguenta os gémeos desde que a jibóia fugiu e...

– O quê? – interrompeu-a Rafe.

– A jibóia. Adoram animais. Têm um verdadeiro jardim zoológico no quarto.

– Ah! – McIntyre olhou para ela, fascinado. – E, eh, o que se passou quando a jibóia fugiu?

– Oh, comeu o pavão do senhor Winton – Rafe conteve uma gargalhada e Kyria olhou para ele fixamente. – Sim, ria-se à vontade, mas garanto-lhe que o senhor Winton não achou graça. Os gémeos tiveram sorte por estar demasiado alterado para se lembrar de pôr munição na pistola ou aquele teria sido o fim de Augusto.

– Augusto é a jibóia, suponho.

– Sim. Foi precisa toda a diplomacia de Reed e também uma boa soma de dinheiro em jeito de compensação para acalmar o senhor Winton. Sentia-se extraordinariamente orgulhoso desse pássaro. Embora, na minha opinião, não tenha perdido grande coisa. Sempre me pareceu que ter perus reais a passear pelo jardim era demasiado ostentoso. Além disso, fazem um ruído infernal.

– Concordo – os olhos azuis de Rafe iluminaram-se de regozijo.

Kyria lançou-lhe um olhar de recriminação, contendo o sorriso que ameaçava aparecer nos seus lábios.

– Tudo isto o diverte. Não tem aquele homem como vizinho.

– Não, felizmente – replicou Rafe, com seriedade. – Que horror, os perus reais a fazerem barulho a todas as horas...

– Fazem barulho como se estivessem a matá-los – informou Kyria, com desagrado.

– Deduzo, então, que ninguém se apercebeu quando Augusto atacou o peru.

Kyria deixou escapar uma gargalhada e tapou a boca com a mão.

– É terrível! Isso não tem graça nenhuma.

– Eu sei. Foi por isso que a menina não se riu.

– Não devia tê-lo feito – alcançaram o topo da colina e observaram. – Ali! – indicou Kyria. – Vejo um casaco vermelho. Raios! Apanharam-nos. Oh, meu Deus, devem ser os gémeos!

– Vamos, então – Rafe montou a cavalo e sentou-se atrás dela.

Desceram a colina. Depressa deixaram de ver as figuras distantes e tiveram de confiar na sua memória para se orientarem entre o arvoredo. Saíram para uma pradaria de relva entre zonas de bosque. E ali havia um certo número de cavaleiros e cavalos. Rafe puxou as rédeas e passou a trote entre o grupo até chegar ao fundo da pradaria, onde uma matilha de sabujos ladrava e gemia, contida pelos guardiões. À frente deles estava um homem musculado. Tinha a cara quase tão vermelha como o casaco e fazia um drama enquanto gritava com as crianças.

Rafe compreendeu imediatamente que aqueles deviam ser os gémeos em questão. Magros como juncos e altos para os seus dez anos, tinham o cabelo preto e os olhos azuis e eram idênticos. Estavam a olhar para o homem, com os ombros erguidos. Atrás deles, acovardada sob um matagal, havia uma pequena raposa vermelha.

Rafe mal parara o seu cavalo quando Kyria saltou e correu para os seus irmãos. Rafe atou o cavalo ao arbusto mais próximo e foi atrás dela.

– Senhor Winton! – Kyria interpôs-se entre o homem e os seus irmãos. – Lamento imenso. Peço-lhe desculpas em nome deles – virou-se e olhou para os seus irmãos. – Pode saber-se o que fizeram?

As crianças cruzaram os braços quase em uníssono e olharam para ela com teimosia.

– É cruel e perverso, Kyria – disse um deles. – Tu própria o disseste, tal como a mamã.

– Sim, eu sei – disse Kyria, – mas não têm o direito de interromper a caçada do senhor Winton.

– E que direito é que eles têm de assassinar um pobre animal indefeso? – perguntou o outro rapaz.

– Filhos de Satanás! Alguém devia dar-vos uma sova! – gritou o homem.

Kyria virou-se bruscamente e olhou para o cavalheiro com frieza.

– Permita-me recordar-lhe, senhor, que a educação dos gémeos é uma questão que corresponde unicamente aos seus pais e que não tem nada a ver consigo.

– São incorrigíveis!

– Não são! São simplesmente crianças com bom coração que amam os animais e sofrem quando vêem que os matam por simples diversão.

– Vê? – o cavalheiro apontou para ela. – É precisamente essa atitude que causa este comportamento. Encorajam-nos a correrem por aí como selvagens e...

– Nós encorajamos as crianças a pensarem por si próprias.

– Alguém devia dar-lhes umas palmadas! – Winton deu um passo para os gémeos.

Kyria mexeu-se, interpondo-se novamente entre o homem e os seus irmãos.

Winton permaneceu na mesma posição, com a vara levantada ameaçadoramente e o semblante cheio de raiva. Rafe pôs-se rapidamente entre o homem e Kyria.

– Ouça, espere um minuto.

– Quem demónios é o senhor? – perguntou Winton.

– Bom – respondeu Rafe, tirando um pequeno revólver de baixo do seu casaco, – sou o homem da pistola – todos olharam para ele com espanto. – Sugiro que se afaste da menina e das crianças e se acalme um pouco. O que lhe parece?

– O quê? – o homem olhou para a pistola e depois olhou para Rafe. – Mas... mas...

– Sei o que está a pensar – continuou Rafe, amavelmente. – Está a pensar que esta pistola não é grande coisa e tem toda a razão. Contudo, apercebi-me de que as pessoas deste país me olham de lado quando saio à rua com a Colt no cinto, de modo que me parece melhor usar esta. É menos alarmante, sabe? E, além disso, posso guardá-la no bolso do casaco e nem sequer se nota.

– Força! – exclamou um dos rapazes atrás dela e o senhor Winton recuou.

– Senhor McIntyre... – disse Kyria, fracamente.

– Não se preocupe. Não tenho intenção de disparar – garantiu Rafe, jovialmente. – Ainda não, pelo menos. Mas acho que agora podemos discutir mais calmamente os factos. Engano-me, senhor Winton? – o cavalheiro assentiu, lançando outro olhar inquieto para a pistola de Rafe. Ele voltou a guardá-la no bolso, afastou-se e, inclinando-se para Kyria, murmurou. – Só queria parar a discussão.

Kyria fez uma careta, contudo, virou-se para o senhor Winton e disse, num tom muito mais amável:

– Cavalheiro, por favor, aceite as minhas desculpas pelo comportamento das crianças. Voltarão para casa comigo imediatamente e farei o que estiver ao meu alcance para me certificar de que isto não se repete.

– Mas Kyria... – protestou um dos rapazes.

Kyria sossegou-o com um olhar e voltou a dirigir-se ao senhor Winton.

– Não gostaria que uma rixa insignificante estragasse a amizade que une as nossas famílias há tanto tempo. O duque e a duquesa sempre se sentiram sortudos por contarem com um vizinho tão excelente como o senhor.

– Mas pararam a caçada! – gritou o cavalheiro, incapaz de conter a sua raiva.

– Sim, eu sei, e agiram inapropriadamente – concordou Kyria, com suavidade. – Garanto-lhe que falarei disso com os meus pais.

– Mas e a caçada? – a voz do cavalheiro começava a parecer-se com um gemido.

– Espere um momento – disse Rafe, novamente. – Lamento, mas sou americano, portanto estou um pouco confuso. Esclareçam-me uma coisa. Está a dizer que saíram com todos estes cães para caçarem esta raposa?

– Sim, certamente. Uma caçada consiste nisso – Winton olhou para ele com desdém.

– Oh, estou a ver – Rafe assentiu, pensativo. – Só estava... Bom, no meu país normalmente as pessoas caçam raposas sozinhas, sabe? Não precisam da ajuda de um esquadrão.

O cavalheiro ergueu o queixo.

– Bom, eu, naturalmente, não preciso de ajuda. Mas é assim que se faz.

– Oh! Bom, claro – Rafe olhou à sua volta. – O caso é que... acho que o adversário se cansou de esperar – virou-se e olhou intencionalmente para o matagal. As crianças também se viraram e sorriram. A pequena raposa vermelha fora-se embora.

– Bolas! – exclamou Winton e olhou para Kyria, furioso. – O seu pai terá notícias minhas.

– Tenho a certeza de que adorará discutir a questão consigo.

Ele sacudiu a vara para os gémeos, dizendo:

– Deviam usar uma trela! – virou-se e afastou-se para o seu cavalo.

Kyria suspirou enquanto observava o seu vizinho a afastar-se. Rafe lançou-lhe um olhar com a sobrancelha arqueada.

– Então – disse, devagar, – diga-me, chamaria a esta situação «um dia normal»?

Kyria teve de desatar a rir-se. Era difícil zangar-se com Rafe.

– Infelizmente, receio que sim – virou-se para olhar para os gémeos, que correram para Rafe e para ela, emocionados.

– Que pistola tão fantástica! – exclamou Alex. – Posso vê-la? Por favor...

– Sim, mas não podes tocar nela. Está carregada. Quando voltarmos para casa, descarregá-la-ei e deixarei que dêem uma olhadela.

– A sério? – Alex sorriu. – Isso seria óptimo.

– É tão pequena! – exclamou Con, olhando para ela atentamente. – Nunca tinha visto uma igual.

– Não tem muito alcance. Só pode usar-se em distâncias curtas, mas é muito fácil de guardar.

– Tenho de dizer – interrompeu-os Kyria, zangada, – que mostram um interesse muito estranho pelas armas, tendo em conta a vossa preocupação com a pobre raposa que Winton tentava caçar.

– Não é o mesmo! – protestou Con. – Eles só querem matar a pobre raposa por diversão. Theo diz que as armas são necessárias.

– Sem dúvida, são quando se vive no deserto australiano, como Theo – indicou Kyria. – Mas essa não é a questão. A questão é porque o fizeram? E precisamente esta semana!

Con encolheu os ombros, mas Alex respondeu com gravidade:

– Pareceu-me que nesta semana causaria maior impacto. Afinal de contas, era a caçada mais importante que o senhor Winton alguma vez celebrará, graças aos nossos convidados.

– Era a isso que me referia exactamente. Fizeram com que fizesse uma figura ridícula à frente de algumas pessoas importantes que desejava impressionar. Agora será mais difícil acalmá-lo. E suspeito que os nossos convidados também não acharam muita graça.

– A mãe diz que não devemos hesitar nas nossas convicções – disse Alex.

– Não duvido. Mas não é ela que tenta contentar um sem-fim de convidados e, ao mesmo tempo, organizar o casamento de Olivia. Onde estão os vossos póneis? Vamos para casa. Assim poderão explicar à nossa tia porque é que o papagaio fugiu da gaiola...

– Não! – gritaram os meninos em uníssono, alarmados.

– Wellie está bem? – perguntou Alex, com preocupação.

– Sim, claro que está bem. Nunca acontecerá nada a essa criatura do diabo – disse Kyria. – Mas voou por toda a casa, provocou uma confusão, tirou a peruca à tia-avó e destruiu-a.

Os meninos olharam para ela, boquiabertos.

– A sério? – perguntou Con, atónito, e Alex deixou escapar um risinho.

– Oh, sim, é muito engraçado, claro – replicou Kyria. – Duvido que vos pareça tão divertido quando se encontrarem com a nossa tia-avó.

– Pois – disse Alex. – Mas ela só nos dá um sermão e bate com a bengala. Eu prefiro isso a um sermão do pai. Olha para mim de uma maneira que me dá a impressão de que o decepcionei.

– Oh, sim – disse Con. – A pior foi a vez em que perdi os soldadinhos de chumbo do tio Bellard. Não disse nada. Só olhou para mim, desiludido.

– É verdade – concordou Alex. – De certeza que Wellington está bem?

– Sim, mas fugiu e tive de ir atrás dele. Subiu para o carvalho que há junto da casa – fez uma pausa e olhou para Rafe. – O senhor McIntyre, eh, conseguiu fazer com que descesse.

Rafe olhou para Kyria com um sorriso nos lábios e ela recordou como caíra nos seus braços. Recordou também como o seu corpo tremera. Pensando naquele momento, corou e desviou o olhar.

Os gémeos viraram-se para Rafe, agradecidos, mas ele levantou uma mão e disse:

– Foi a vossa irmã que arriscou a vida para apanhar Wellington, para além de vos defender à frente do vosso preceptor e do senhor Winton. Suspeito que devem agradecer-lhe a ela.

– Claro que sim! – exclamou Con e abraçou Kyria.

– É a melhor! – exclamou Alex, abraçando-a também.

Kyria desatou a rir-se e deu um beijo na cabeça dos dois gémeos.

– Mas isso não significa que vá defender-vos à frente da mamã. Nisso estão sozinhos.

– Mas foi ela que nos disse que tínhamos de defender as nossas convicções! – exclamou Con. – Não se zangará muito, pois não?

– Não acho que quisesse dizer que deviam defender as vossas convicções fugindo do quarto de estudo para irem espreitar o senhor Winton. Nem acho que goste de saber que o vosso preceptor se despediu.

– Thorny? – perguntou Alex. – Estás a brincar... Fugiu?

– Que bom! Era o pior preceptor que tínhamos tido – alegrou-se Con.

– Não. Spindleshanks foi o pior – contradisse Alex.

– Era o mais mesquinho – concordou Con. – Mas não era tão aborrecido como Thorny. A única coisa que o senhor Thorndike fazia era mandar-nos copiar gramáticas latinas e coisas assim e era terrivelmente aborrecido.

– Talvez, mas vocês mudam mais vezes de professor do que eu mudo de camisa – indicou Kyria, mas não conseguiu evitar sorrir para os seus dois irmãos travessos.

Amava-os e não gostava de ouvir os comentários desdenhosos que se faziam sobre eles. Às vezes, a sua tendência a meter-se em confusões era exasperante, mas Kyria sabia que, por mais alvoroço que armassem, nunca o faziam com má intenção. Eram simplesmente rapazes inteligentes conduzidos pela sua curiosidade.

Tinham alcançado as árvores onde as crianças tinham prendido os seus póneis e, depois de uma breve discussão, concordaram que Kyria montaria o pónei de Alex e que os dois meninos iriam no de Con. Rafe ajudou Kyria a montar, montou no seu cavalo e puseram-se a caminho.

Kyria olhava de vez em quando para Rafe. Recordava como se sentira montada no seu cavalo e tremia. Sentia uma leve pontada de desilusão por não regressar do mesmo modo e isso causava-lhe uma certa surpresa. Ela não era das que desmaiavam por um homem. Nunca apoiava as suas amigas quando elas cochichavam entre risinhos sobre os homens. Estava disposta a admitir que alguns homens eram bonitos e que outros se mostravam inteligentes e encantadores, embora raramente encontrasse essas três qualidades juntas. Aqueles homens, no entanto, não despertavam emoção alguma no seu peito. Percebera há muito tempo que não era o tipo de mulher capaz de perder a cabeça por um homem.

As suas amigas diziam-lhe que era mais dada a pensar do que a sentir e a alcunha que os solteiros mais cobiçados da sociedade londrina lhe tinham dado, «a Deusa», reflectia não só a sua beleza clássica, como também o seu ar vagamente distante. O facto de não se ter apaixonado por nenhum dos cavalheiros solicitados que queriam a sua mão dava-lhe muitas dores de cabeça. Gostaria de conhecer um amor semelhante ao dos seus pais. Ainda que, de qualquer modo, não importasse, dizia-se. Para além de algumas excepções, os maridos eram autoritários e cansativos e o casamento era um acordo extremamente desigual. Na sua opinião, ao casar-se, a mulher renunciava tanto ao seu nome como à sua liberdade. Resolvera não se casar há muito tempo e os anos decorridos desde a sua apresentação à sociedade só tinham fortalecido a sua decisão.