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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2002 Candace Camp. Todos os direitos reservados.

CORAÇÃO ESCONDIDO, N.º 2 - Fevereiro 2013

Título original: The Hidden Heart

Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá.

Publicado em português em 2004

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2553-6

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

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Prólogo

 

O Duque de Cleybourne ia regressar ao seu castelo para morrer ali.

Tinha-o decidido na noite anterior. No seu escritório, enquanto contemplava o retrato de Caroline que Devin pintara como presente de casamento. Ao olhar para aquele quadro, e para o mais pequeno e menos conseguido da sua filha, pensou que estavam em Dezembro e que se avizinhava o aniversário das suas mortes.

A carruagem capotou e resvalou pela estrada e pela erva geladas até ao lago e a capa de gelo que cobria a gélida água estilhaçou-se. Aconteceu pouco antes do Natal.

Ainda recordava o odor penetrante dos ramos de abeto que adornavam o castelo naquela altura. Tinha-o respirado durante toda a sua doença e convalescência, como se se tratasse do fedor irrespirável da morte, mesmo depois de terem retirado e queimado os ramos.

Tinham transcorrido quatro anos desde então e muitos opinavam que já deveria ter superado a tragédia. Chorava-se a perda de um ente querido durante um tempo razoável; depois as pessoas recompunham-se e seguiam em frente. Ele, no entanto, não o lograra; nem sequer tinha sentido vontade de refazer a vida. Depois da tragédia, abandonou a sua residência campestre e instalou-se na mansão ducal londrina. Desde então, nunca mais regressara ao castelo de Cleybourne.

Mas na noite anterior, enquanto contemplava o retrato, pensou no farto que estava de lutar pela sobrevivência dia após dia, e ocorreu-lhe subitamente que não tinha por que continuar daquela maneira. Não tinha por que prolongar aquela agonia até que Deus tivesse piedade dele e o levasse. Os Cleybourne viviam até uma idade avançada, muitos chegaram a octogenários, e, além de tudo, Richard tinha pouca fé na piedade divina.

No que sim tinha fé era nas suas pistolas e na firmeza do seu pulso. Seria o executor do seu destino e, simultaneamente, também o seu anjo vingador.

Portanto, chamou o seu mordomo e ordenou-lhe que preparasse as bagagens. Iam regressar ao castelo, dissera-lhe, e sentiu uma pontada de remorso quando o ancião sorriu de orelha a orelha. Os criados, que se preocupavam com ele, estavam em júbilo porque pensavam que, finalmente, descartara o seu manto de pesar, e tinham organizado a viagem com alegria e diligência.

E era verdade, pensou Richard. Poria fim ao seu pesar. E no lugar mais apropriado: onde tinham perecido a sua mulher e a sua filha. Onde ele não pudera salvá-las.

 

Um

 

Lady Leona Vesey ficava bonita quando chorava. E estava a chorar naquele instante...convulsivamente. As lágrimas inundavam-lhe os olhos e resvalavam pelas suas faces enquanto apertava a mão ossuda do ancião que jazia na cama.

– Tio, por favor, não morras – suplicou-lhe, com a voz lastimosa e os lábios trémulos.

Jessica Maitland, que estava de pé ao outro lado do leito do General Streathern, junto da sobrinha neta deste, Gabriela, contemplava Lady Vesey com um desprezo frio. A sua interpretação, pensava, era digna de uma actriz de renome. E Leona ficava linda quando chorava: um talento que, segundo suspeitava Jessica, tinha aperfeiçoado ao longo dos anos. Ouvira dizer que as lágrimas faziam maravilhas com os homens. Jessica odiava-as, e quando não conseguia reprimi-las, cedia ao pranto no silêncio e solidão do seu quarto.

Claro que Jessica, com o seu impecável sentido de justiça, também sabia reconhecer a beleza de Lady Vesey quando chorava. Há vários anos que era uma das rainhas de beleza de Londres, embora fosse considerada demasiado escandalosa e não fosse recebida nas melhores casas. E, ainda que estivesse nos últimos anos desse reinado, o resplendor dourado das velas do quarto na penumbra ocultava os estragos que o tempo e a vida dissoluta lhe pudessem ter causado.

Lady Vesey era toda ela curvas e carne suculenta, ombros suaves e seios que transbordavam do decote pronunciado do seu vestido, mais apropriado para uma festa do que para visitar o leito de um parente doente. Tinha uma pele lisa e dourada, que realçava o ouro dos seus caracóis e a cor aleonada dos seus olhos grandes e redondos. A Jessica recordava-lhe um gato lustroso e mimado... embora se pudesse transformar numa leoa quando se enfurecia, como no dia anterior, quando esbofeteou uma aia por ter cometido a torpeza de lhe derramar um pouco de chá sobre o vestido.

Jessica sentia desejos de esbofetear Leona naquele momento mas, como não era mais do que a mestra da pupila do General, conformou-se com apertar os lábios. Embora Jessica governasse com eficiência a casa do General, Leona não só a superava em categoria como, enquanto esposa do sobrinho neto do General Streathern, era sua parente. Desde que ela e Lord Vesey tinham posto os pés naquela casa, Leona tinha tomado as rédeas da mansão e tratava Jessica como uma criada.

– Tio – gemeu Leona enquanto secava as lágrimas com um lenço de renda. – Por favor, fala comigo. Ver-te assim, deprime-me.

Jessica notou que Gabriela ficava tensa e adivinhou o que a adolescente estava a pensar: que o General não era, na realidade, parente de Lady Vesey, mas sim do seu marido, e que a dama em questão estava longe de estar abatida por ver o General no seu leito de morte.

Nos seis anos em que Jessica trabalhava na casa do General, os Vesey tinham visitado o tio em contadas ocasiões e sempre para lhe pedir dinheiro. Não tinha dúvidas que era também o dinheiro o que a impelira a estar ali.

Há menos de uma semana, o General recebera uma carta que lhe comunicou o falecimento de uma velha e querida amiga. Saltou da cadeira proferindo um sonoro gemido; depois, levou a mão à cabeça e caiu pesadamente no tapete. Os criados trasladaram-no para a cama, onde jazia desde então, imóvel e aparentemente alheio a tudo e todos. «Apoplexia», diagnosticara o médico com um movimento de cabeça, e com escassas probabilidades de recuperação, dada a avançada idade do General. Os Vesey tinham acudido precipitadamente ao seu leito de morte porque esperavam figurar no seu testamento.

Jessica esforçara-se por conter a sua antipatia para com Lord e Lady Vesey. No fim de contas, eram os únicos parentes, aparte do General, que restavam a Gabriela e, como tal, pensou, com um frio mal estar, seria muito provável que Lord Vesey se convertesse no tutor de Gabriela se o General falecesse, o que, a cada dia que passava, parecia cada vez mais inevitável.

Pensou que parte do desagrado que lhe inspirava Lady Vesey se devia à beleza voluptuosa da mulher. Jessica fora uma adolescente franzina, com uma melena indomável cor de cenoura e uns olhos e uma boca demasiado grandes para o seu rosto estreito. Naquela época, já superava em estatura todas as suas amigas e a maioria dos rapazes, e sentia-se altarrona, desajeitada e nada feminina em comparação com as fêmeas pequenas e carnudas que a rodeavam. E embora a sua figura tivesse finalmente amadurecido, o seu rosto se tivesse suavizado e o seu cabelo adquirido um intenso tom avermelhado, convertendo-a numa impactante e escultural mulher, Jessica ainda sentia punhaladas de inveja e de desconforto em companhia de mulheres como Leona Vesey, que empregavam a sua feminilidade como uma arma infalível.

Também reconhecia ter preconceitos relativamente a ela por causa das cartas que recebera de Viola Lamprey, a única amiga que permanecera leal a Jessica após o escândalo que envolvera o seu pai. Viola casara tarde mas surpreendentemente bem, e desde que se convertera em Lady Eskew relacionava-se com a fina flor londrina. Continuavam a escrever-se e Viola adorava entreter Jessica com os seus amenos relatos dos escândalos e excessos da nobreza.

Lord e Lady Vesey costumavam ser o prato forte da aristocracia. Dele dizia-se que sentia debilidade pelas jovenzinhas, e dela que, durante mais de dez anos, tinha sido amante de Devin Aincourt. Há meses atrás, as cartas de Viola encheram-se das histórias que circulavam por Londres sobre o repentino casamento de Aincourt com uma herdeira norte-americana e a consequente ruptura, por parte de Aincourt e não de Lady Vesey, do prolongado idílio. As damas londrinas estavam jubilosas. Leona contava com poucas amigas entre as aristocratas, porque em numerosas ocasiões tinha querido demonstrar com que facilidade lhes poderia arrebatar os maridos ou pretendentes.

Jessica sabia que não era correcto julgar Lady Vesey pelos rumores que corriam sobre ela. No fim de contas, ela própria fora vítima de muitos boatos injustos há dez anos. Quando os Vesey se apresentaram em casa do General, Jessica esforçou-se por pôr de parte os seus preconceitos e ideias preconcebidas sobre Leona, mas não tardou a perceber que as más línguas não estavam enganadas. Leona Vesey era egoísta, vaidosa e temperamental. Desprezava as pessoas de nível inferior e só era amável com aquelas que, segundo pensava, a podiam ajudar, geralmente homens. Os Vesey só estavam há três dias ali e Jessica quase não podia suportar estar na mesma assoalhada do que eles.

– Tio, por favor – gemeu Leona e a voz embargou-se-lhe enquanto se inclinava sobre a figura imóvel do ancião, que parecia de cera à luz ténue das velas. – Por favor, diz-me uma palavra de despedida.

De súbito, o ancião abriu os olhos de par em par. Leona proferiu um gritinho e saltou para trás. O General estava a perfurá-la com os seus penetrantes olhos de falcão.

– Que raio fazes aqui? – perguntou com uma voz mais áspera e débil que o seu habitual rugido, mas carregada de irritação.

– Tio, que coisas dizes! – exclamou Leona, que estava a recuperar a compostura, embora não tivesse recobrado de todo o fôlego. – Vesey e eu viemos quando soubemos que estavas doente. Queríamos estar a teu lado.

O ancião lançou-lhe um olhar furibundo.

– Tinham era temor de perder a vossa parte dos meus bens. Pois tenho uma surpresa para ti: não estou a morrer. E ainda que assim fosse, não te deixaria nada, nem a ti nem a esse libertino que tens por marido.

– Tio... – Lord Vesey, que estava na penumbra, atrás da sua esposa, tentou rir-se com indulgência. – Vais provocar um mal entendido. Nem toda a gente sabe que és tão espirituoso...

– Não estou a falar contigo – interrompeu-o o General com aspereza, recuperando a força a cada segundo que passava. – Maldição! Ninguém te convidou a vir. És um chato.

– Avô! – exclamou Gabriela, incapaz de se conter. – Estás bem! Pensávamos que estavas a morrer.

O General virou a cabeça e viu Gabriela de pé no lado oposto, com Jessica atrás, e sorriu.

– A morrer, eu? Ah! – disse e estendeu a mão para a jovem. As lágrimas resvalaram dos olhos de Gabriela, que se inclinou para a frente para pegar na mão do seu tio avô.

– Fico tão feliz de que te tenhas posto bom... Estávamos mortas de medo.

– Não duvido, Gaby – o ancião recebeu o afectuoso aperto da sobrinha neta. – Mas não é necessário. Continuo a respirar.

Olhou para os pés da cama, onde se encontravam o médico e o vigário da terra, que olhavam para ele perplexos.

– Não graças a ti, disso tenho a certeza – prosseguiu o General Streathern, dirigindo-se ao médico. – Vão-se embora. Pareceis um par de corvos aí de pé. Não estou a morrer.

– General, não deve alterar-se – disse o médico em tom tranquilizador. – Leva quase uma semana inconsciente.

– Mentira. Acordei ontem à noite, mas voltei a adormecer.

– Deve ter sido a voz de Lady Vesey que o retirou da sua vegetação – comentou o vigário e dirigiu um sorriso de admiração à dama.

– Sim! – respondeu o General. – Já eras estúpido de jovem, Babcock; não me estranha que ainda continues a sê-lo depois de velho. A voz dessa mulherzinha, em vez de me ressuscitar, far-me-ia ir desta para melhor.

– O quê? – exclamou Leona, indignada, pondo as mãos na cintura. – Ena, que bonito. Abandonamos Londres para vir a este lugar no fim do mundo só porque estavas doente e é este o agradecimento que recebemos?

– Eu não vos pedi que viésseis – disse o General, em tom razoável. Ninguém o fez. Viestes para receber a vossa parte da herança. É a única razão pela qual sempre viestes a esta casa e da última vez disse-vos que não voltásseis. Sois uns descarados ao aparecer outra vez aqui. És uma mulherzinha astuta e maliciosa, Leona, e dou graças a Deus que não sejas do meu sangue. Oxalá pudesse dizer o mesmo dessa imundície com que te casaste! – interrompeu o seu discurso mesmo a tempo de lançar um olhar malévolo a Lord Vesey. – Agora, desapareçam os dois. Não quero voltar a ver-vos.

– Será melhor que regressemos aos nossos quartos – sugeriu Lord Vesey à sua esposa, mais pálido do que antes.

– Aos vossos quartos? Estais alojados aqui? – o General corou de maneira alarmante.

– Obviamente – respondeu Leona. – Onde mais?

– Disse-vos que não sois bem-vindos nesta casa – argumentou o General, que fazia um esforço por se endireitar.

– Por favor, General, tranquilize-se – apressou-se a dizer o médico, e rodeou a cama para apoiar as mãos nos ombros do ancião e voltar a deitá-lo na cama. – Se não tem cuidado, sofrerá outra apoplexia.

– Nem por sombras! – o General Streathern lançou um olhar iracundo ao médico, mas não teve forças para desafiá-lo. – Quero que se vão embora da minha casa, entendido?

– Mas, General... – protestou o vigário. – Lord Vesey é seu sobrinho neto. E Lady Vesey... – interrompeu com brusquidão quando o olhar do General o trespassou.

– Esta casa é minha – replicou o General Streathern com frieza, e sou eu quem decide quem pode ou não ficar cá, não tu.

– É óbvio, General – tranquilizou-o o vigário, forçando um sorriso. – Não pretendia ser presunçoso. É que... é que fizeram uma longa viagem e onde mais se poderiam alojar?

– Acolhe-os na tua casa, se tanto te agradam.

O reverendo Babcock riu com indulgência, um som que pareceu irritar ainda mais o irascível ancião.

– Há uma pousada em Lapham – rugiu, referindo-se à povoação. – Que se hospedem lá se estão tão empenhados em ficar, mas não vou permitir que me torturem com os seus gemidos e queixas e os seus maus tratos aos meus criados. É horrível ver as aias a chorar por toda a casa porque ele as encurrala e toma liberdades com elas, e que ela lhes grite como uma harpia e as esbofeteie. É o cúmulo que um homem não possa ter paz quando está há uma semana às portas da morte.

– Claro que terá paz – disse o médico em tom tranquilizador, e lançou um olhar significativo a Lord e Lady Vesey. – Milord...

– Sim, sim, claro – Lord Vesey esboçou um sorriso no que parecia o rosto de um cadáver. – Qualquer coisa para que o General se sinta melhor. Lady Vesey e eu partiremos de imediato.

Pegou na mão da mulher e saíram pela porta juntos. O General virou a cabeça para Jessica.

– Jessica, assegura-te de que se vão.

– Com certeza, General – disse Jessica com um sorriso. – Será um prazer – e virou-se para o grupo que restava no quarto. – Gabriela, vigário, porque não deixamos que o General fale com o seu médico?

O clérigo estava ansioso por sair do quarto, embora Jessica não soubesse se por temor ao General ou com esperança de encontrar Lady Vesey. Gabriela caminhava com passo alegre pelo corredor, palrando sem parar.

– Senhorita Jessie, não é maravilhoso? Estava tão certa que o avô estava à morte...! Mas nem sequer uma apoplexia pode com ele.

Jessica sorriu à jovem. Aos catorze anos, Gabriela já prometia converter-se numa beleza. Embora ainda tivesse a figura esbelta e plana de uma menina, tinha um passo airoso que augurava uma elegância futura, uma pele fresca e leitosa e um rosto animado e harmonioso, com grandes olhos cinzentos muito vivos e um nariz arrebitado.

Jessica alegrava-se de ver Gabriela tão feliz embora, no fundo do seu coração, albergasse certas dúvidas. Quiçá o General se tivesse despertado e parecesse o mesmo de sempre. Até poderia recuperar as forças. Mas Jessica advertira que quase não movera o lado esquerdo da cara ao falar, e que não tinha fechado a mão esquerda em torno da de Gabriela em resposta ao seu aperto. Tinha permanecido inconsciente vários dias e, portanto, encontrava-se muito mais débil. Era muito velho e os anciãos eram sempre sensíveis às febres e resfriados, em especial depois de padecer algum mal. O General preocupava-a, não só porque sentia um sincero afecto por ele, mas porque a sua repentina doença a fizera compreender quão vulnerável era Gabriela. Menor de idade e órfã como era, podia ficar à mercê de pessoas como os Vesey. Jessica ocupara-se de Gabriela, tinha sido a sua companheira, mestra e confidente desde que a jovem tinha oito anos e amava-a como se fosse sua irmã. Mas, aos olhos dos demais, não era mais do que uma educadora e, se o General falecesse, o novo tutor de Gabriela poderia prescindir dos seus serviços e deixá-la sem trabalho. Tinha pensado nisto vezes sem conta durante a doença do General.

Gabriela subiu para o seu quarto com a promessa de estudar as lições que descuidara nos últimos dias e Jessica dirigiu-se à cozinha em busca do mordomo, Pierson, para o informar da milagrosa recuperação do General e do subsequente desterro dos Vesey. Sabia que nada faria os criados mais felizes do que aqueles dois acontecimentos.

O médico foi-se embora e pouco depois Lord e Lady Vesey abandonaram a casa. O General passou os dias seguintes a dormir a maior parte do tempo, ainda que acordasse de vez em quando para comer. Devorou primeiro uma tigela de consomé, depois migas e, por fim, exigiu sopa com um pouco de substância. A cada ordem e queixa dadas, crescia a esperança. O General voltava a ser o mesmo de sempre.

Jessica ia visitá-lo com a sua discípula de manhã e à tarde, e via nele uma clara melhoria. Ficava muito contente, não só pelo bem de Gabriela, mas pelo afecto que dedicava ao General. Quando estalou o escândalo e o seu pai foi destituído do seu cargo no exército, a maioria dos seus amigos e conhecidos, inclusive o homem de cujo amor Jessica pensou ser objecto, viraram-lhe as costas; todos menos o General Streathern. Apresentou-se para lhe expressar as suas condolências pela morte do seu pai, um gesto que muito poucos companheiros de armas tinham considerado oportuno.

A morte do Comandante Maitland deixou Jessica na miséria. Negou-se a pedir ajuda à família do seu pai, que tinha feito pouco dele após o escândalo. Durante um tempo, alojou-se em casa do irmão da sua defunta mãe, mas a situação era insustentável. O seu tio tinha cinco filhas em idade casadoira e o último que precisava era de outra jovenzinha na família. Jessica, a quem o seu pai ensinara a ser forte e independente, estava acostumada a governar uma casa, não a viver placidamente nela. Não se entendia com a sua tia, e não demorou a compreender que também não podia viver com eles.

Começou a prestar serviços de mestra ou dama de companhia em várias casas, mas costumavam considerá-la demasiado jovem, ou atractiva, ou manchada pelo escândalo, e quando finalmente a empregavam, acabava por desistir por causa das insinuações inoportunas de um homem da família.

A Jessica parecia-lhe tristemente irónico que, tendo sido um patinho feio na adolescência, se tivesse convertido no objecto da luxúria masculina. Sabia que, em parte, se devia ao tardio desenvolvimento da sua figura, mas custava-lhe entender que a sua indomável cascata de cabelo vermelho pudesse ser atraente, ou que os seus rasgos, antes demasiado grandes para a sua cara, tivessem formado um rosto de incrível beleza. Assim que, com certo cinismo, atribuía o interesse masculino à sua posição vulnerável. Desejavam-na, concluía, porque a consideravam uma presa fácil, uma mulher que estava à sua mercê porque tinha de trabalhar para viver.

Desolada e desenganada, deixou de solicitar postos de mestra e logrou subsistir graças aos seus bordados. Tinha boa vista e boa mão para a agulha e quando engoliu o seu orgulho e foi humildemente oferecer os seus serviços, certo número de mulheres de riqueza e posição compraram os seus bonitos lavores. Ainda assim, apenas ganhava para sobreviver e, em ocasiões, desesperava-se. Os invernos eram a pior época do ano, porque a lenha e o carvão encareciam a vida. Tratava de racionar bem o carvão, mas não podia bordar com os dedos gelados. Um inverno, há seis anos atrás, o número de encomendas de costura reduziu-se de forma alarmante e, para cúmulo dos males, Jessica adoeceu e não pôde trabalhar durante uma semana. Estava à beira do desastre e viu-se obrigada a considerar a possibilidade de voltar a viver com o seu tio ou inclusive pedir ajuda à pretensiosa família do seu pai.

Foi então que o General bateu à sua porta como um anjo de luz desabrido e lhe ofereceu uma ocupação como dama de companhia e mestra da sua sobrinha neta Gabriela, cujos pais tinham falecido um mês antes e de quem ele era o tutor. O General pensou em Jessica de imediato, pois mantivera o contacto com ela ao longo dos anos. De facto, Jessica suspeitava que era ele o responsável por alguns presentes e suplementos que recebia de vez em quando das suas clientes. Jessica aceitou o cargo com alívio alegre e jamais lamentara a sua decisão.

Tinha sido feliz ali. Não demorou a sentir carinho pela sua discípula e, pouco a pouco, foi assumindo mais responsabilidades no governo da casa. Os criados recorriam a ela para lhe pedir conselhos ou instruções. E o General ficava encantado por poder relegar aquelas «coisas de mulheres». Encontrava-se a gosto naquela casa e parecia-lhe que o General Streathern e Gabriela eram a sua família.

Após outro dia de convalescência, o General mandou chamar Jessica. Esta deixou Gabriela com um dever escrito e foi visitar o ancião, intrigada. Conhecendo-o, podia ser qualquer coisa; desde as contas da casa a uma partida de xadrez para aliviar o tédio.

Nem uma, nem outra coisa. O General Streathern estava sentado na cama, com aspecto mais duro que no dia anterior. Sorriu ao ver Jessica e esta advertiu que o sorriso continuava sem se propagar ao lado esquerdo da sua cara. Sustinha o braço esquerdo no regaço e quase não o movia enquanto falava, mas tinha boa cor e o olhar desperto e falava como de costume.

– Bem, jovenzinha, também tu me tinhas dado como morto? – ladrou.

– Estava muito preocupada – reconheceu Jessica.

– Mulher de pouca fé...

– Esteve uma semana inconsciente, General – assinalou Jessica. O seu pai tinha-a ensinado a expressar as suas opiniões e fora um alívio comprovar que o General também era partidário de falar livremente. O ancião riu entre dentes.

– Assim é que eu gosto, que fales comigo sem papas na língua, Jess – deu uma palmada na cama. – Vem sentar-te onde eu não tenha de partir o pescoço para te ver.

Jessica avançou e sentou-se à beira da cama, em frente dele.

– Fico muito feliz por me ter enganado.

– E eu, pequena – o General Streathern exalou um suspiro. – Tenho de reconhecer que apanhei um valente susto. Não o ia dizer a esse charlatão, mas sei que me escapei por pouco – deu uma palmadita no seu braço esquerdo – não consigo mexer muito bem este lado, sabes? – abanou a cabeça. – É terrível que o teu próprio cérebro se revolte contra ti.

– Eu imagino. Mas já se sente muito melhor e pode ser que recupere a força no braço.

– Espero bem que sim, é uma chatice. Mas não tanto como acordar e encontrar esse verme do Vesey no meu quarto. Não sei como a minha irmã pode ter um neto assim. A sua filha era uma rapariga doce... claro que a linhagem dos Vesey sempre teve mau sangue. Disse a Gertie que não sairia nada bom do enlace, mas não foi culpa sua. O seu genro sempre teve a cabeça cheia de serradura.

– Lamento que os tenha encontrado aqui.

– Não foi culpa tua. Mas disse a Pierson que não voltasse a deixá-los entrar. Agora que tem esta ordem, mantê-los-á afastados desta casa. E, se hesitar, recorda-lhe o que lhe disse.

– Fá-lo-ei.

– Fiquei estupefacto ao ver Vesey – o General guardou silêncio um momento e olhou para as mãos. Não era dado a expressar sentimentos; era militar até à medula. – Deu-me que pensar. Poderia morrer em breve; tenho setenta e dois anos, já vivi mais do que suficiente. Sempre pensei que podia combater a morte, mas quando li essa carta e soube que a Millicent morrera...

– A morte da sua amiga deve ter sido um golpe muito duro.

– Foi – os rasgos do ancião encheram-se de tristeza. – Amava-a, sabes?

– Pois claro.

– Não. Quero dizer que a amava de verdade. Amei-a durante quase cinquenta anos.

Sobressaltada, Jessica olhou para o General com atenção. Raras vezes tinha visto aquela suavidade no seu olhar.

– Era casada com outro. Eu conhecia-o, não era mau tipo. Apresentaram-ma numa festa em casa de Lady Abernethy. Eu tinha trinta e quatro anos naquela época e não me tinha casado. Tinha estado demasiado ocupado com a minha carreira militar para me preocupar com essas coisas. Assim que vi Millicent, soube que nunca me casaria. Era terrível viver desejando a morte de um bom homem. Como não, acabou por morrer muitos anos depois mas, nessa altura, já estávamos velhos. Tínhamo-nos acostumado a ser amigos, vivíamos instalados nas nossas respectivas rotinas e não queríamos renunciar a elas. Bastava-nos ver-nos de vez em quando e continuar a corresponder-nos. Claro que eu teria feito tudo por ela.

Estava absorto na sua fantasia. Jessica guardou silêncio, tratando de assimilar aquela nova imagem do ancião militar irritadiço como um galã devoto, apaixonado por uma mulher inalcançável.

– Enfim – o General descartou os seus pensamentos. – Não te fiz cá vir por isso. A questão é que, ao ler essas linhas, senti uma terrível dor de cabeça e, quando voltei a abrir os olhos, tinha essa estúpida da Leona a balbuciar por cima de mim. Agora percebo quão presunçoso fui todos estes anos ao acreditar que podia vencer a morte como se fosse um soldado inimigo. Estou indefeso. Tive a sorte de voltar a mim. Na próxima vez, posso não ter tanta sorte.

Jessica não sabia o que dizer. O General tinha razão e era custoso fazer um comentário optimista.

– Setenta e dois anos. Há quem diga que já ia sendo hora de que compreendesse que não era invencível – o General proferiu uma gargalhada. – A questão é: que será de Gaby? Sim, deixei-a bem beneficiada no meu testamento, não é isso que me preocupa. E o seu pai deixou-lhe um fundo fiduciário volumoso. Terá dinheiro em abundância, mas necessitará algo mais, alguém que goste dela.

– Eu ficarei a seu lado, General. Prometo. Sabe o carinho que lhe professo.

O General sorriu-lhe e o coração de Jessica encolheu-se ao ver que a comissura esquerda do seu lábio não imitava a direita.

– Sabia que podia contar contigo. Mas queria explicar-te o que deves fazer se me acontecer alguma coisa. Nomeei um tutor para ela no meu testamento. É o mesmo que o seu pai designou como meu sucessor caso algo me acontecesse. Não o conheço muito bem, mas era amigo do pai de Gabriela e tem fama de ser um homem honrado. Cuidará do seu dinheiro e do seu bem estar. Acabo de lhe escrever uma carta. Aí está...

Apontou para a mesa de cabeceira, na qual descansava uma carta fechada com lacre vermelho e o selo do General.

– Leva-a. Quero que acompanhes a Gaby para a casa do seu tutor se voltar a acontecer-me alguma coisa. Dá-lhe esta carta, assim como o testamento. Nele, peço-lhe que não te separe de Gabriela. Digo-lhe que ela se apoia e confia em ti.

– Fá-lo-ei, não se preocupe. Mas confiemos em que não seja preciso. Recuperará e viverá para assistir ao casamento de Gaby, tenho a certeza.

– Espero que sim. Mas ainda não terminei. Assim que Gaby esteja debaixo da protecção do seu novo tutor, ficarei tranquilo. É um homem poderoso e influente: o Duque de Cleybourne. Vesey não o pode enfrentar. Mas até lá... Temo o que Vesey possa fazer.

– Lord Vesey? Mas se designa outro homem como tutor de Gabriela, já não suporia nenhuma ameaça.

– Ainda assim, não me fiaria dele – o General Streathern fez um trejeito. – É perverso, tal como a sua esposa. Tentaria ficar com Gaby, se tivesse oportunidade. Não lhe deixei nada no meu testamento, pelo que adoraria apropriar-se da fortuna de Gaby; e essa harpia que tem como mulher é capaz de meter no bolso todos os homens honrados. Não me fio de nenhum dos dois – franziu a testa; depois prosseguiu devagar. – Não quero sujar-te os ouvidos com o que se conta dele, mas deves saber do que é capaz. É dado à luxúria e, segundo ouvi, sente debilidade pelas jovenzinhas. Pelas jovenzinhas da idade de Gaby.

Jessica inspirou bruscamente.

–General! Acha que seria capaz...?

– Não sei se poderia cair tão baixo, mas não me estranharia que a sua depravação chegasse tão longe. Digamos que Gaby estaria mais segura se nunca estivesse sob o seu controlo, nem sequer durante um dia – olhou-a intensamente por baixo das suas grossas sobrancelhas brancas. – O teu pai foi um dos melhores soldados que tive às minhas ordens.

– Obrigado, General – Jessica sentiu a emoção que lhe embargava a garganta.

– Espero que tu tenhas o seu mesmo espírito.

– Rezo para que assim seja – respondeu Jessica. – Pode confiar em que a manterei afastada de Lord Vesey.

– Óptimo – relaxou-se e acomodou-se de novo sobre as almofadas. Obrigado, Jessica. Se morrer, virá como um abutre. Leva-a daqui assim que for lido o testamento. Tem as bagagens preparadas para partir. Entendes, não é verdade?

– Sim, não perderei tempo. Juro-lhe. Partiremos o mais cedo possível.

O General assentiu.

– És uma jovem sensata e desenvolta; sei que posso confiar em ti. Leva-a para casa do Duque de Cleybourne. Fica em Yorkshire, perto de Hedby, a não mais de dois dias de carruagem daqui.

– Assim farei, prometo – Jessica inclinou-se e pegou na mão do ancião. – Mas rezo para que esse momento não chegue em muitos anos e para que, nessa altura, Gaby já seja uma mulher casada.

– Deus queira.

 

 

Era de noite e reinava a escuridão na casa. Toda a gente estava deitada quando uma porta lateral se abriu em silêncio e uma figura escura entrou às escondidas. O homem permaneceu imóvel um momento, em alerta; depois avançou com idêntico sigilo pelo corredor e pelas escadas de serviço até ao piso superior. Mais uma vez, esperou, imóvel, no patamar, atento ao menor ruído, antes de se dirigir à porta que procurava. Abriu-a e assomou-se. Não havia rasto do pajem do General nem de nenhum outro cuidador nocturno.

Entrou sem fazer ruído e fechou a porta atrás dele; depois, atravessou o quarto com cautela e deteve-se junto à cama. Contemplou o ancião. O General tinha um aspecto tão frágil que se perguntou fugazmente se aquilo seria realmente necessário. No fim de contas, tinha estado a ponto de morrer. Existia sempre a possibilidade de que não recobrasse a saúde e, por conseguinte, de que não supusesse uma ameaça para ele.

Enquanto o observava, o ancião abriu os olhos, como se tivesse intuído a sua presença. Semicerrou os olhos.

– Tu! – sussurrou com voz rouca. – Que raio fazes aqui? Não te disse que...?

– Sim, sim, eu sei – respondeu o homem com despreocupação. – Não devo manchar-te nunca com a minha presença. Mas pareceu-me conveniente falar contigo. Verás, as coisas mudaram.

– Certo – o General endireitou-se na cama e recostou-se nas almofadas com dificuldade.

– Queria certificar-me que não estás a pensar cometer nenhuma loucura.

– Referes-te a revelar o que aconteceu de verdade? Que te faz pensar que não o faria? – questionou o General com imprudência. – Já não tenho motivos para guardar silêncio.

– Salvo o de não ter falado há anos, quando aconteceu. Daria que pensar. Destruiria o teu bom nome.

– Talvez seja o melhor – disse o ancião com gravidade.

– Para ti é fácil dizê-lo quando estás com um pé para a cova. A mim, pelo contrário, restam-me muitos anos de vida, e não tenho nenhum desejo de vivê-los com a mancha do escândalo.

– Seria pior do que isso.

– Achas? Eu não. Seria só a tua palavra contra a minha, e tu és um ancião estúpido que acaba de sofrer uma apoplexia. Todos pensariam que o teu cérebro já não funciona muito bem.

– Sim, acreditariam em mim – disse o General Streathern, com um brilho de desprezo e ódio no olhar. – Tenho provas, sabes?

O olhar do visitante era tão frio como abrasador o do General. Observou o ancião com atenção um momento; depois disse:

– Pois é uma pena.

Rapidamente, tomou uma almofada da cama e cobriu o rosto do velho com ela. O General resistiu, mas a doença tinha-o enfraquecido e não demorou a deixar de oferecer resistência. O visitante aguardou um momento mais. Depois, levantou a almofada, pô-la no sítio e voltou a deitar o velho na cama para que parecesse que morrera placidamente enquanto dormia.

Lançou um olhar rápido ao quarto e, só então, caiu em si: se era certo que o General tinha provas contra ele, ainda corria perigo. Apertou os dentes e voltou a olhar a figura inerte que jazia na cama, cheio de raiva. Aquele velho estúpido irritara-o tanto que se tinha precipitado. Deveria tê-lo obrigado a revelar onde guardava as provas e em que consistiam antes de o matar.

Dirigiu-se à cómoda que estava no outro lado do quarto e começou a examiná-la, mas rapidamente chegou à conclusão de que a busca seria muito árdua. Para começar, existia a possibilidade de não existir prova alguma, que o General tivesse recorrido a um jogada em falso para enganá-lo. E ainda que o carunchoso tivesse dito a verdade, continuava sem conhecer a natureza da prova. Seria um objecto? Um papel?

Fosse o que fosse, estava convencido que o General a tinha escondida em alguma parte. Possivelmente, num cofre. Examinou o quarto mas não encontrou nenhum; claro que o mais provável era que o tivesse no seu escritório ou no salão, ou até onde se guardavam as pratas.

Estava a meio daquele pensamento quando ouviu a maçaneta da porta girar. Correu a refugiar-se nas sombras do roupeiro e esperou contendo a respiração. Ouviu o passo cansado de um ancião e viu o resplendor palpitante da chama de uma vela. Por sorte, a luz não iluminou o seu esconderijo. Ele, no entanto, podia ver os rasgos de um homem próximo em idade ao General, vestido com roupa de cama e roupão. O seu pajem, pensou.

O criado deteve-se aos pés da cama e permaneceu imóvel um momento. Depois, começou a franzir a testa e a rodear a cama para se aproximar do ancião. Inspirou bruscamente e proferiu um gemido grave.

– Oh, não, Milord! Não!

Voltou a gemer; deu a volta e saiu a correr do quarto.

O intruso não ficou parado. Saiu pela porta depois do criado e viu-o arrastar os pés pelo corredor, gemendo e gritando.

– Morreu! O General morreu!

Não se deteve, mas percorreu o corredor em sentido contrário até à escada principal e saiu, furtivamente, da casa.

 

Dois

 

A carruagem deteve-se devagar e Jessica desviou a cortina para esquadrinhar a escuridão com uma pergunta nos lábios. Assim que viu o que se erguia diante deles, a pergunta morreu sem resposta. O cocheiro parara, como ela teria feito, ante aquela ameaçadora silhueta escura. Era uma estrutura gigantesca de pedra cinzenta, levantada há séculos, numa época de lutas frequentes e ampliada ao longo dos anos até convertê-la numa massa irregular de muros de pedra, ameias e torres normandas. Havia candeeiros acesos a ambos lados da vedação aberta, mas quase não dissipavam a escuridão. Era um lugar lúgubre e inóspito que dominava os arredores desde a sua localização ligeiramente elevada. O castelo de Cleybourne.

A Jessica não lhe custou acreditar que era a residência campestre de uma antiga e poderosa família. Também não era difícil imaginar aquele lugar assediado, com máquinas de guerra arrojando pedras àqueles enormes muros, enquanto os soldados se defendiam disparando setas desde as ameias. Pelo contrário, custava imaginar aquele castelo como um lugar acolhedor para criar uma jovem que acabava de perder o seu último parente querido. Não pôde evitar exalar um suspiro.

Talvez tivesse sido um erro ter seguido tão precipitadamente as ordens do General. Tinha ficado tão comovida ao ouvir o velho pajem gritar pelo corredor, anunciando a sua morte, que começara a organizar a viagem para o novo lar de Gabriela quase de imediato. As palavras do General tinham sido proféticas e a sua súbita morte conferira uma importância sobrenatural às suas instruções. Teria antecipado também outras coisas... coisas que o tinham impelido a apressá-la a afastar Gabriela de Lord Vesey?

Passou o resto da noite sentada junto de Gabriela, abraçando-a, enquanto a jovem chorava desconsolada até adormecer. Jessica também deixou correr as lágrimas por aquele homem que fora tão bondoso com ela, apoiando-a quando o resto da sociedade distinguida lhe tinha virado as costas.

Na manhã seguinte, transmitiu a Pierson, o mordomo, as últimas instruções que recebera do General, e, em seguida, este encarregou duas aias da preparação das bagagens para a viagem de Jessica e Gabriela.

Entretanto, Jessica tomara todas as providências para o funeral e notificara o falecimento do ancião a todos aqueles que deviam sabê-lo, incluído Lord Vesey, que continuava alojado na pousada da terra, embora lhe doesse o coração ao imaginar o prazer daquele homem abominável ao conhecer a notícia. Escrevera missivas aos amigos do General e outra ao Duque de Cleybourne explicando-lhe a situação e a sua iminente chegada com a sua pupila.

A jovem estava pálida e com o olhar vazio mas sereno, e não voltou a ceder às lágrimas a não ser nos últimos momentos do funeral. Jessica sofria por ela. Gabriela padecera mais infortúnios dos que correspondiam a uma jovem de catorze anos e, após a perda dos seus pais e do seu tio avô, o único que lhe restava era um tutor desconhecido. Apesar da sua dor, Jessica devia explicar-lhe o motivo da sua partida precipitada. Não lhe falou da depravação de Lord Vesey, posto que o considerava inadequado para os ouvidos de uma jovenzinha, além de aterrador. Mesmo assim, mal Gabriela soube que a ideia era eludir Lord Vesey, mostrou-se ansiosa por partir.

– Odeio-o – disse Gabriela com veemência. – Sei que está mal. É uma pessoa mais velha e merece respeito mas... dá-me calafrios. Quando olha para mim... É como se uma serpente se tivesse atravessado no meu caminho.

– Percebo; é uma boa analogia – corroborou Jessica. – É um homem perverso; o teu tio avô também achava isso. Não deves nunca ficar sozinha com ele. Se o vires entrar num quarto, sais imediatamente.

– Fá-lo-ei.

No funeral, Leona chorou docemente. Jessica não entendia porque se incomodava, já que o General estava morto. Esperava influir no advogado que leria o testamento? Ou por acaso não era capaz de perder a oportunidade de ser o alvo de todos os olhares?

Jessica esforçou-se por não chorar, sentada junto a Gabriela, sustendo-lhe a mão. Sabia que necessitava ser forte para o bem da jovem, mas não podia evitar recordar a amabilidade do General e, por fim, não pôde continuar a conter as lágrimas e chorou em silêncio.

Mais tarde, no salão formal da residência do General, o seu advogado, o senhor Cumpston, leu a sua última vontade. Jessica não se surpreendeu que o ancião legasse a sua casa e toda a sua fortuna a Gabriela e nada aos Vesey; ele mesmo lho tinha dito. Porém, foi uma surpresa que o General lhe tivesse deixado a ela a sua caixa de marchetaria favorita, com várias lembranças suas, além de uma respeitável soma em dinheiro. Ficou a olhar para o advogado, atónita, sem reparar nos olhares venenosos dos Vesey. Não era uma grande quantidade comparada com a fortuna de Gabriela, e para Leona não seria mais do que uns trocos, mas se o investisse com sensatez, Jessica poderia subsistir durante o resto da sua vida. Não teria de regatear, poupar, e nunca voltaria a estar à mercê dos demais. O seu coração inflamou-se de gratidão e afecto para com o General.

Lord e Lady Vesey, como era de esperar, protestaram energicamente pelo teor do testamento.

– Sou o seu sobrinho! – exclamou Lord Vesey. – Tem de haver um erro. É impossível que tenha deixado dinheiro ao seu mordomo, ao seu pajem e a... a «ela» – apontou Jessica com desprezo, – e nem um só penny a um parente.

– É por culpa tua! – acrescentou Leona, lançando adagas a Jessica com o olhar. – Creio que todos sabemos porque te deixou o dinheiro, não? Pelo tipo de serviços que prestavas ao velho...

– Lady Vesey! – exclamou o senhor Cumpston, atónito. – Como pode falar assim do General ou da senhorita Maitland?

– Muito fácil – replicou Leona em tom sarcástico. – Não sou uma camponesa ingénua como o senhor.

– Fui amigo do General Streathern durante muitos anos – repôs o senhor Cumpston. – Conhecia-o bem, e sei que não havia rasto de escândalo na sua relação com a senhorita Maitland. Ele explicou-me todas as suas vontades.

– Ela influenciava-o! – gritou Leona, com o seu bonito rosto contorcido pelo ódio. – Ela e essa miúda! – estendeu vagamente a mão para Gabriela. – Têm-no estado a persuadir. Convenceram-no a excluir-nos do testamento.

– Com efeito – corroborou Lord Vesey. – Influência indevida, é o que é. Era um ancião, e débil. Certamente não sabia o que fazia. Levarei este assunto aos tribunais.

– Muito bem, Lord Vesey – disse o advogado com um suspiro. – Pode fazê-lo, sem dúvida, mas será um desperdício de dinheiro. O General estava em pleno uso das suas capacidades mentais até que sofreu a apoplexia, e há muitos membros respeitáveis desta comunidade que o podem testemunhar. As testemunhas do testamento foram sir Roland Winfrey e o honrado Ashton Cranfield, que estavam de visita ao General no momento da assinatura. Eles também podem dar fé do seu bom juízo e creio que encontrará poucas pessoas capazes de contradizer qualquer de ambos os cavalheiros.

Lord Vesey esboçou um sorriso sarcástico mas guardou silêncio. Jessica não o achava muito inteligente, mas suspeitava que até ele se apercebia das poucas hipóteses que tinha de vencer em tribunal dois homens tão respeitados como aqueles. Tanto ele como Leona abandonaram a casa pouco depois.

Consciente da promessa que fizera ao General, Jessica e Gabriela partiram nessa mesma tarde, depois de recolher os seus últimos pertences. Jessica guardou a preciosa caixa de marchetaria do General num dos seus baús, despediu-se dos criados com lágrimas nos olhos e prometeu escrever-lhes do lar do novo tutor e fideicomissário de Gabriela.

Viajaram durante a noite, parando unicamente para mudar de cavalos numa posta e dormiram o melhor que puderam apesar do balanço da carruagem. Mas à chegada à residência do Duque, na tarde seguinte, Jessica deparou-se com nova desolação. O castelo não parecia um lugar acolhedor.

– Já chegámos? – perguntou Gaby e retirou a cortina da sua janela para dar uma olhadela. Inspirou bruscamente ao ver a gigantesca estrutura. – Meu Deus... parece saído de um livro... já sabe, senhorita Jessie, dessas histórias de amor que o avô não queria que lesse. Não lhe parece que alberga fantasmas e vilões?

– E um monge louco no mínimo – acrescentou Jessica com ironia e sentiu-se contente ao ouvir a gargalhada da jovem. – Então? Aventuramo-nos a entrar?

– Pois claro. Parece um lugar interessante.

Jessica sorriu a Gabriela; era admirável quão bem estava a assimilar tudo. Ordenou ao cocheiro que prosseguisse e acomodou-se no seu assento. Confiava em que o Duque de Cleybourne não se incomodaria muito pela sua chegada nocturna. Não era o melhor momento para se apresentar na casa de ninguém, mas a situação exigia-o. Era uma pena, pensou, que o pai de Gabriela e, depois, o General tivessem escolhido um homem de linhagem e categoria tão elevadas para ser o tutor da jovem; temia que fosse tão arrogante que resultasse difícil falar com ele. Jessica criara-se em bons círculos: o irmão de seu pai era um Barão, e o pai de sua mãe, um Baronet. Mas aquilo era una minúcia comparado com um Ducado, o título mais alto ao que se podia aspirar abaixo da realeza. Temia que o Duque de Cleybourne prescindisse dos seus serviços porque a instrução que ela podia dar a Gabriela não lhe parecesse bastante boa para a pupila de um Duque. Mas guardou aqueles temores para si, porque não queria preocupar Gabriela.