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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2005 Candace Camp. Todos os direitos reservados.

UM PRAZER INESPERADO, N.º 23 - Fevereiro 2013

Título original: An Unexpected Pleasure

Publicada originalmente por HQN™ Books

Publicado em português em 2010

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2558-1

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Prólogo

 

Nova Iorque, 1879

 

Um grito atravessou a escuridão.

Megan Mulcahey acordou, assustada, e endireitou-se na cama com o coração acelerado. Demorou um instante a compreender o que a acordara. Depois, ouviu novamente a voz da sua irmã.

– Não. Não!

Megan levantou-se com um salto e saiu do quarto. A sua casa, um edifício geminado com três quartos no andar de cima, não era muito grande. Só demorou um momento a chegar à porta de Deirdre e a abri-la.

Deirdre estava sentada na cama. Os seus olhos, muito abertos e fixos, tinham uma expressão horrorizada. Estendia os braços para qualquer coisa que só ela conseguia ver e as lágrimas acumulavam-se nos seus olhos antes de começarem a cair pelas suas faces.

– Deirdre! – Megan atravessou o quarto, sentou-se na cama da sua irmã e segurou firmemente nos seus ombros. – O que se passa? Acorda! Deirdre!

Abanou a rapariga e, de repente, o semblante da sua irmã mudou. Aquele assombro horrível pareceu desaparecer, substituído por uma consciência que mal começava a despontar.

– Megan! – Deirdre soluçou e abraçou a sua irmã. – Oh, Megan! Foi horrível. Horrível!

– Por todos os Santos! – exclamou o seu pai, da porta. – Pode saber-se o que se passa aqui?

– Deirdre teve um pesadelo, foi só isso – respondeu Megan, com calma, acariciando o cabelo da sua irmã. – Não é verdade, Deirdre? Era apenas um pesadelo.

– Não – Deirdre engoliu em seco e afastou-se um pouco dela. Limpou as faces e olhou para a sua irmã e para o seu pai. Continuava a ter os olhos esbugalhados. – Megan, pai, vi Dennis!

– Sonhaste com Dennis? – perguntou Megan.

– Não era um sonho – respondeu a rapariga. – Dennis estava aqui. Falou comigo.

– Mas, Dee, não podes ter visto Dennis. Está morto há dez anos – indicou Megan, com um calafrio.

– Era ele – insistiu a sua irmã. – Vi-o tão claro como a luz do dia. Falou comigo.

O seu pai atravessou a quarto com um certo nervosismo e baixou-se ao pé da sua filha.

– Então, tens a certeza, Deirdre? Era Dennis?

– Sim. Oh, sim! Estava como no dia em que zarpou.

Megan olhou para a sua irmã com estupefacção. Na família, Deirdre tinha fama de possuir o dom da clarividência. Tinha palpites e os seus pressentimentos tornavam-se realidade com tanta frequência que Megan não conseguia desdenhar por completo aquele suposto dom da sua irmã. No entanto, os seus pressentimentos consistiam na sensação de que um amigo ou um parente estava em apuros ou no pressentimento de que ia vê-los num dia específico. Persuadida pelo lado mais prático do seu carácter, Megan achava que a sua irmã possuía simplesmente uma certa sensibilidade que lhe permitia perceber nas pessoas ou nas situações indícios subtis que passavam inadvertidos a outros. Megan concordava que era um talento admirável, mas tinha as suas dúvidas a respeito de se tratar de um dom sobrenatural, como muitos achavam.

Ao seu modo de ver, a aparência de Deirdre contribuía para a percepção geral que se tinha dela. De compleição bela e frágil, a sua irmã tinha os olhos azuis, muito grandes e doces, a pele clara e o cabelo loiro. Havia algo etéreo nela, um certo ar sobrenatural que suscitava nos outros, incluindo Megan, o desejo de a proteger e que, ao mesmo tempo, tornava fácil acreditar que estava em sintonia com o outro mundo.

Contudo, era a primeira vez que Deirdre garantia ter visto um morto. Megan não sabia o que pensar. Por um lado, a sua mente analítica não conseguia aceitar que o espectro do seu irmão rondasse por ali e tivesse falado com a sua irmã. Parecia muito mais provável que Deirdre tivesse tido um pesadelo que a sua psique confusa achara real. Por outro lado, tinha um sedimento de superstição que a fazia perguntar-se se aquilo podia ser verdade. A verdade era, e sabia, que ela, tal como o seu pai, desejava que fosse assim. Esperava que o seu querido irmão ainda vagueasse pelo mundo sob alguma forma e não tivesse desaparecido para sempre.

– O que te disse? – perguntou Frank Mulcahey. – Porque apareceu?

– Foi horrível, pai! – os olhos de Deirdre encheram-se de lágrimas. – Dennis estava assustado, desesperado. «Ajuda-me», dizia e estendia os braços. «Por favor, ajuda-me.»

Frank Mulcahey susteve a respiração e benzeu-se.

– Jesus, Maria e José! O que queria dizer?

– Nada – apressou-se a responder Megan. – Deirdre estava a sonhar. Era um pesadelo. Não pode ser outra coisa.

– Não foi um pesadelo! – insistiu a sua irmã com veemência, fixando o olhar em Megan. – Dennis estava aqui. Vi-o tão claramente como te vejo ti. Estava aí, de pé, e olhava para mim com dor e desespero. Não posso ter-me enganado.

– Mas, querida...

A sua irmã mais nova lançou-lhe um olhar em que se misturava a recriminação e a piedade.

– Achas que não sei distinguir um pesadelo de uma visão? Tive ambas as coisas muitas vezes.

– Claro que sim – disse o seu pai e virou-se para Megan com irritação. – O facto de haver coisas que não conseguimos ver ou ouvir, não significa que não existam. Eu poderia contar-te histórias que te assustariam.

– Sim e contaste-mas muitas vezes – respondeu Megan com amargura, mas o sorriso que esboçou para o seu pai suavizou o seu tom de voz.

Frank Mulcahey era um homem baixo e enxuto, cheio de energia e de amor pela vida. Chegara a Nova Iorque do seu país natal, a Irlanda, com quinze anos e estava sempre disposto a contar a quem quisesse ouvir como todos os seus sonhos se tinham realizado na América. Abrira uma pequena loja próspera, casara-se com uma linda rapariga americana e criara os seus filhos saudáveis e felizes. Só aqueles que o conheciam sabiam bem das privações que suportara, dos muitos anos de trabalho e de poupanças de que precisara para abrir a sua loja, da morte da sua amada esposa pouco depois do nascimento de Deirdre, do esforço árduo de criar seis crianças sozinho e, finalmente, da morte do seu primogénito há dez anos. Tantos golpes do destino teriam destruído o espírito de muitos homens, mas Frank Mulcahey superara-os e seguira em frente, ferido, mas invicto.

Na cor do cabelo e dos olhos parecia-se com a sua filha Megan. Tinha o cabelo de um castanheiro avermelhado, já profusamente grisalho. Usava-o muito curto, porém, se o tivesse deixado crescer, teria encaracolado tão desordenadamente como o de Megan. Ela herdara dele a fileira de sardas do seu nariz e uns olhos cor de mogno em cujo fundo se distinguia um subtil matiz avermelhado. Megan e o seu pai pareciam-se no seu brio e na sua determinação e, como Deirdre dissera mais de uma vez, eram ambos igualmente teimosos, razão por que chocavam com frequência.

– Está claro que não prestaste muita atenção a essas histórias – disse Frank a Megan. – Se não, terias uma mente mais aberta.

Megan tinha consciência de que nunca conseguiria convencer o seu pai da improbabilidade de o seu irmão ter regressado da sepultura, portanto tentou abordar a questão de outro ângulo.

– E porque é que Dennis havia de aparecer agora? Porque precisa da nossa ajuda?

– Está mais claro do que a água – respondeu o seu pai. – Quer que vinguemos a sua morte.

– Depois de dez anos?

– Claro. Já esperou o suficiente, não achas? – perguntou Frank, cujo sotaque irlandês era mais acusado quando ficava nervoso. – A culpa é minha. Devia ter lá ido e ter-me encarregado desse assassino inglês assim que soubemos o que tinha acontecido a Dennis. Não é de estranhar que tenha voltado para nos reprovar. É triste que tenha tido de o fazer. Descuidei os meus deveres como pai.

– Não digas isso, pai – Megan apoiou carinhosamente uma mão sobre o braço de Frank. – Tu não fizeste nada de mal. Não podias ir a Inglaterra quando Dennis morreu. Tinhas de tratar dos teus filhos. Deirdre tinha dez anos e os rapazes eram apenas um pouco mais velhos. Tinhas de ficar aqui para trabalhar e cuidar de nós.

– Eu sei, mas agora não há nada que me retenha aqui. Vocês já são crescidos. Até a loja pode passar sem mim, agora que o vosso irmão Sean me ajuda a geri-la. Há anos que nada me impede de ir a Inglaterra e tratar desse assunto. Estive a vadiar, essa é a verdade. Não é de estranhar que Dennis tenha voltado para me reprovar.

– Pai, tenho a certeza de que Dennis não voltou para isso – apressou-se a dizer Megan, ao mesmo tempo que olhava para a sua irmã, suplicante. A última coisa que queria era que o seu pai fosse a Inglaterra e fizesse Deus sabia o quê impulsionado pelo afã de vingar a morte do seu filho. Podia acabar na prisão ou pior ainda se agredisse o nobre inglês que matara Dennis.

– Não é verdade, Deirdre?

Para desalento de Megan, a sua irmã franziu a testa e disse:

– Não tenho a certeza. Dennis não disse nada sobre a sua morte. Mas estava tão triste, tão desesperado... Está claro que precisa da nossa ajuda.

– Claro que sim – Frank assentiu com energia. – Quer que vingue o seu assassinato.

– Como? – perguntou Megan. – Não podes ir lá e fazer justiça com as tuas próprias mãos.

– Eu não disse que vou matar esse criminoso, esse embusteiro... E não por falta de vontade. Mas não quero sangue nas minhas mãos. O que quero é que seja julgado pelos seus crimes.

– Depois de tanto tempo? Mas, pai...

– Sugeres que fiquemos de braços cruzados? – gritou Frank, arqueando as sobrancelhas com incredulidade. – Que esse indivíduo não seja castigado pelo assassinato do teu irmão? Nunca teria pensado que querias isso.

– Claro que quero que seja castigado – declarou Megan, com veemência e um brilho no olhar. – Desejo que pague pelo que fez a Dennis.

O seu irmão era apenas dois anos mais velho do que ela e sempre tinham estado muito unidos, não só pelos vínculos do sangue, mas também pela semelhança do seu carácter e por um engenho rápido e irreverente que ambos partilhavam. Ambos eram curiosos, enérgicos e decididos e ambos ansiavam deixar a sua marca no mundo. Dennis sentira o desejo de conhecer esse mundo, de explorar territórios ainda por cartografar. Megan ansiava tornar-se jornalista e, depois de muito insistir, conseguira realizar o seu sonho: um pequeno tablóide de Nova Iorque encarregara-a de fazer a redacção sobre a coluna da sociedade. Graças à sua habilidade, à sua decisão e ao seu esforço, conseguira abrir caminho até às páginas de notícias e, mais tarde, até um jornal mais importante. Mas aquele fora um sucesso agridoce, pois Dennis não estava lá para partilhar a sua felicidade. Morrera na sua primeira viagem à Amazónia.

– Sim, eu sei – disse Frank. – Acaloro-me e falo demasiado. Sei que tu também queres que esse homem receba o seu castigo. Todos queremos.

– Só não sei que provas poderiam encontrar-se depois de tanto tempo – indicou Megan.

– Há mais uma coisa – disse Deirdre. – Dennis estava... Acho que estava à procura de alguma coisa.

– À procura do quê? – perguntou Megan, olhando para a sua irmã com estupefacção.

– Não tenho a certeza. Mas era uma coisa muito valiosa para ele. Não conseguirá descansar enquanto não a encontrar.

– Disse-te isso? – Megan sentiu um novo calafrio. Não acreditava que os mortos voltassem para falar com os vivos, mas mesmo assim...

– Disse que tinha de os encontrar... ou encontrá-lo, não tenho a certeza – explicou Deirdre. – Mas sentia o seu desespero, o que significava para ele.

– Esse homem matou Dennis por alguma razão – acrescentou o seu pai, emocionado. – Nunca soubemos o motivo, mas tem de haver algum. É lógico que tenha sido por algum objecto, por alguma coisa que Dennis tinha e que esse homem cobiçava.

– E achas que matou Dennis para a conseguir? – perguntou Megan. – Mas o que é que Dennis podia ter que esse homem não pudesse comprar? É rico.

– Alguma coisa que encontraram na viagem – respondeu Frank. – Algo que Dennis descobriu.

– Na selva? – Megan arqueou uma sobrancelha, incrédula, porém, de repente, recordou a história da América do Sul. – Espera. Claro! O que é que os espanhóis encontraram lá? Ouro, esmeraldas... Talvez Dennis tenha descoberto uma velha mina... ou pedras preciosas.

– Claro! – os olhos de Frank reluziram, cheios de ardor. – Tem de ser algo do género. E, se conseguir encontrar o que descobriu e o que o seu assassino lhe roubou, talvez possa provar que esse homem matou Dennis. Tenho de ir a Inglaterra!

Megan levantou-se com um salto. A veemência do seu pai aumentara a dela. Passara dez anos a conviver com a dor de ter perdido o seu irmão e com a amarga certeza de que o seu assassino saíra impune. Em parte, a sua paixão pelo jornalismo procedia do desejo de fazer justiça ao seu irmão. Sabia que não podia ajudar Dennis, mas podia ajudar outras pessoas cujas vidas estavam destruídas ou cujos direitos tinham sido esquecidos. Entre os seus colegas tinha fama de ser uma espécie de heroína e dava tudo na hora de escrever um artigo sobre casos de corrupção ou sobre alguma injustiça flagrante.

– Tens razão – disse. – Mas eu devia ir – começou a passear de um lado para o outro enquanto falava atrapalhadamente. – Não sei porque não pensei nisto antes. Poderia investigar a morte de Dennis do mesmo modo que investigo uma história para o jornal. É o que faço todos os dias: faço pesquisas, falo com as pessoas, verifico dados e procuro testemunhas. Devia tê-lo feito há muito tempo. Talvez consiga descobrir o que se passou realmente. Talvez encontre alguma coisa, apesar dos anos que passaram. Mesmo que seja alguma coisa que não possamos apresentar a um tribunal, pelo menos, teremos a satisfação de saber o que aconteceu.

– Mas, Megan, é perigoso! – protestou a sua irmã. – Esse homem já matou uma vez. Se apareceres lá e começares a fazer perguntas...

– Não vou chegar e perguntar-lhe «porque mataste o meu irmão?» – replicou Megan. – Ele não saberá quem sou. Pensarei em alguma desculpa para falar com ele. Não se preocupem, sei o que fazer.

– Tens razão – disse o seu pai e as irmãs olharam para ele com perplexidade. Ele encolheu os ombros. – Sou um homem razoável. Megan tem experiência nestas coisas. Mas – acrescentou, olhando para a sua filha com severidade, – se achas que vou permitir que vás perseguir um assassino sozinha, tens menos cérebro do que pensava. Eu também vou.

– Mas pai...

Ele abanou a cabeça.

– Falo a sério, Megan. Vamos todos. Procuraremos esse Theo Moreland e fá-lo-emos pagar pela morte do vosso irmão.

 

Um

 

Theo Moreland, lorde Raine, apoiou as mãos no corrimão e observou a grande sala de baile com aborrecimento. Os seus olhos verdes, perfilados por pestanas pretas, passearam languidamente pela divisão cheia de pessoas a dançar.

Theo perguntou-se, não pela primeira vez naquela noite, o que estava a fazer ali.

Ele não era dos que frequentavam as festas galantes. Gostava mais de estar à intempérie em alguma paragem exótica, a fazer coisas mais interessantes... E possivelmente também mais arriscadas.

Naturalmente, o baile de lady Rutherford era perigoso à sua maneira. As mães, cheias de ambições, e as suas filhas solteiras rondavam em círculos como tubarões, mas era um perigo que ele tentava evitar. Ignorava porque estava ali naquela noite. Estava aborrecido e inquieto, como lhe acontecia com frequência ultimamente, a tal ponto que acabara por pegar no monte de convites que costumava ignorar e decidira ir à festa de lady Rutherford.

Assim que chegara, lamentara o seu impulso. Sitiado por coquetes de todas as idades, retirara-se finalmente para a sala do andar superior. Mas ali também se aborrecia e acabara junto do corrimão, a observar com desinteresse a divisão de baixo.

– Lorde Raine, que surpresa – disse alguém atrás dele.

Lady Scarle... – cumprimentou, contendo um gemido.

A mulher que estava à frente dele era uma das grandes beldades de Londres. Tinha um ar vivaz, o cabelo muito preto, os olhos de um azul profundo e uma tez branca e rosada. Se a cor das suas faces não era natural ou se alguma vez arrancara um ou dois cabelos brancos, só a sua aia sabia e recebia um bom salário para guardar tais segredos. Para dizer a verdade, os homens achavam difícil reparar em mais do que no busto magnífico de lady Scarle que, como de costume, se via claramente devido ao decote amplo do seu vestido de noite púrpura.

– Ora, vá lá – disse ela, com um sorriso malicioso, pousando a mão sobre o braço de Theo. – Acho que nos conhecemos suficientemente bem para me chamar Helena.

Theo remexeu-se, incomodado, e esboçou um sorriso. Nunca gostara de mulheres vorazes e as senhoras como lady Scarle pareciam-lhe ainda mais exasperantes do que as debutantes.

Ao sair de Londres rumo à sua última expedição, lady Helena Scarle ainda estava casada com lorde Scarle, um idoso e, embora costumasse seduzir Theo, só procurava uma aventura fugaz, coisa que ele evitara facilmente.

Porém, ao regressar, há alguns meses, souvbera da morte de lorde Scarle, cuja viúva estava empenhada em encontrar um novo marido... Desde que isso significasse subir na escala económica ou social, certamente. E, infelizmente para ele, Theo cumpria ambos os requisitos.

– Tive uma grande desilusão quando não o vi ontem à noite na noite musical de lady Huntintong – continuou lady Helena, num tom suave.

– Hum... Isso não é para mim – respondeu ele, ao mesmo tempo que olhava à sua volta, esperando encontrar algum modo de fugir dali sem ser indelicado. Descobrira que lady Scarle era impermeável quase a tudo, menos à indelicadeza.

– Nem para mim – acrescentou ela, com um olhar coquete. – Mas pensava que... Enfim, quando falámos na semana passada, dissemos que certamente nos encontraríamos no recital.

– Ah, sim? – balbuciou Theo, surpreendido. Recordava ter-se encontrado com lady Scarle na semana anterior, quando saíra para montar a cavalo pelo parque. Ela falara um bom bocado antes de Theo, que não estava realmente a ouvi-la, conseguir fugir. – Devo tê-lo esquecido. Peço-lhe desculpas.

Nos olhos de lady Scarle, que não estava habituada a ser esquecida pelos homens, apareceu um brilho de raiva, mas a bonita viúva apressou-se a escondê-lo e baixou o olhar para voltar a levantá-lo para Theo com um ar sedutor.

– Magoou-me, Raine. Deve ressarcir-me vindo à festa que dou na terça-feira.

– Eu... hum... Tenho quase a certeza de que nesse dia tenho outro compromisso. Eu... eh... Kyria! – avistou a sua irmã do outro lado da sala e cumprimentou-a com a mão.

Kyria, que se encarregou da situação imediatamente, aproximou-se dele com um sorriso.

– Theo! Que surpresa tão agradável! E lady Scarle – Kyria olhou para o peito seminu da dama. – Meu Deus, deve estar gelada! Quer que lhe empreste o meu xaile?

Lady Scarle esboçou um sorriso rígido.

– Obrigada, estou perfeitamente, lady Kyria. Ou devia chamar-lhe senhora McIntyre?

– Como queira – respondeu Kyria, com calma. Alta, ruiva e de olhos verdes, Kyria era possivelmente a mulher mais bela que havia na casa. Desde que fora apresentada à sociedade fora a beleza mais reconhecida dos círculos da alta sociedade londrina, onde era conhecida pela alcunha «A Deusa» pela sua formosura e pela sua desenvoltura. Nem sequer agora, quando já se aproximava dos trinta anos e era esposa e mãe, havia uma mulher que pudesse comparar-se com ela.

Lady Scarle, que era vários anos mais velha do que ela, já estava casada quando Kyria fora apresentada à sociedade, mas ficara verde de inveja ao ver que Kyria assumia o papel que antes lhe correspondera a ela. Aquelas duas mulheres nunca se tinham dado bem.

Kyria virou-se para o seu irmão e deu-lhe o braço.

– Theo, estava a perguntar-me o que te tinha acontecido. Acho que te prometi a próxima dança.

– Sim, sim, é verdade – fez uma reverência a lady Scarle. – Lady Scarle, se nos desculpar...

– Claro – murmurou, sem outro remédio senão sorrir.

Theo levou Kyria rapidamente pela escada. A sua irmã inclinou-se para ele e sussurrou:

– Deves-me uma.

– Sei disso. Já não sabia o que fazer. Aquela mulher queria que fosse a uma festa na semana que vem e não sabia como escapar. Não sei porque vim aqui esta noite – acrescentou, com exasperação.

– Não é próprio de ti – replicou Kyria, rindo-se. – Surpreendeu-me muito ver-te aqui.

– Acho que estava aborrecido. Não sei o que se passa ultimamente. Sinto-me... inquieto, suponho.

– Estás novamente a pensar em ir viver aventuras? – perguntou a sua irmã.

Theo, o filho mais velho do duque de Broughton, passara quase toda a sua vida adulta a explorar o mundo. Sempre se sentira fascinado por paisagens novas e exóticas e o esforço físico e até o perigo das suas explorações animavam as suas viagens, pelo menos na sua opinião.

Regressara há apenas alguns meses da sua última expedição à Índia e à Birmânia e, depois das suas viagens, costumava passar uma temporada a descansar com a sua querida família.

– Não sei... Edward Horn está a preparar uma expedição ao Congo e quer que vá.

– Não pareces muito entusiasmado.

– Não, na verdade – respondeu Theo, com uma certa perplexidade. – Disse a Horn para não contar comigo. É muito estranho. Estou inquieto, mas na verdade não tenho vontade de viajar para lado nenhum. Talvez esteja a ficar velho.

– Sim, claro... Com trinta e quatro anos és um velho caquéctico – brincou Kyria. – Estás praticamente decrépito.

– Sabes o que quero dizer. Todos me dizem sempre que algum dia amadurecerei e que me cansarei de viajar. Talvez seja isso que se passa – esboçou um sorriso enviesado. – Só sei que cada vez que penso em ir-me embora, alguma coisa me retém.

– Theo, sentes-te bem? Pareces quase... infeliz.

– Já me conheces, Kyria. Não sou dos que examinam atentamente a sua vida. Não sou muito dado a reflectir – redarguiu, olhando para ela, muito sério.

– Não, tu és um homem de acção. Normalmente, sabes o que queres e vais fazê-lo.

Ele assentiu.

– É por isso que estou inquieto. Sinto que me falta alguma coisa. Mas não sei o que é. Qualquer coisa que deveria fazer? Algum lugar a que devia ir? Só sei que quero mais.

Kyria ficou a pensar por um momento e depois disse, com uma certa hesitação:

– Bom, pensaste que talvez com a tua idade queiras assentar? Talvez sintas a falta de uma esposa... de um lar e de uma família.

– Todas elas gostariam de me convencer disso – disse, apontando com a cabeça para as mães que se apinhavam ao longo das paredes, olhando para as suas pupilas. – Acho que esta noite me apresentaram a todas as mães das meninas casadoiras. Não sei nem quantas insinuaram que já está na hora de assentar. Isso basta para me fazer fugir, apavorado. São sempre tão vorazes?

– Sim. Não há nada mais perigoso do que uma mãe disposta a casar a sua filha.

– E não são as mesmas que, há anos, se queixam de que me falta sentido de dever e de formalidade, sempre a passear pelo mundo, em vez de ficar aqui e preparar-me para me encarregar do meu futuro título? As que nos chamam «os loucos Moreland»?

– Sim. Contudo, sem dúvida, sabes que não importa se és louco, desde que algum dia sejas duque. Um bom título compensa um grande número de falhas e, quanto mais alto o título, mais pecados esconde. E, se além disso, se tiveres uma grande fortuna, podias ter duas cabeças, não faria diferença.

– Que cínica!

– Só digo a verdade.

– Não é que seja contra o casamento – disse Theo, pensativo. – É só que... Bom, não me imagino com nenhuma dessas raparigas, nem sequer uma tão encantadora como Estelle Hopewell.

– Estelle Hopewell! Meu Deus, espero que não. Essa rapariga tem a cabeça completamente oca.

– E não têm todas elas? Talvez seja porque estão sob o olho vigilante das suas mamãs, mas as jovens com que falei esta noite não faziam mais do que sorrir e assentir a tudo o que dizia. Nenhuma delas parecia ter opinião própria, nem o mínimo interesse pelo mundo. E depois há as viúvas ansiosas como lady Scarle que, francamente, me assustam. Imaginas alguma delas no seio da nossa família?

– Meu Deus não! Talvez devas procurar uma rapariga do campo, como Reed fez.

– Acho que Anna é uma raridade, até mesmo no campo.

– Sim, tens razão. Mas eu ainda tenho esperanças – disse Kyria. – Vi como um dos meus irmãos encontrava uma esposa maravilhosa. Espero que tu também a encontres. Pensa que quatro de nós, por muito loucos que estejamos, encontrámos o amor. Algum dia, será a tua vez.

– Achas? – Theo sorriu. – Talvez tenhas razão. Talvez esteja à espera da mulher perfeita. Mas, por enquanto, terei de me conformar a dançar com a mulher mais bela de Londres.

E, com essas palavras, conduziu a sua irmã à sala de baile.

 

 

Megan Mulcahey permanecia junto da janela do quarto que partilhava com a sua irmã Deirdre na casa que tinham alugado em Londres. Apoiou a cabeça contra o vidro frio e suspirou. Demorara um mês a chegar ali e agora não sabia o que fazer.

Por mais que tentasse, não conseguira convencer a sua irmã e o seu pai a ficarem em casa. Teria preferido investigar aquele assunto sozinha, sem ter de se preocupar com eles.

Mas Frank Mulcahey arranjara um argumento para cada uma das suas objecções. Os seus irmãos mais novos, Sean e Robert, eram muito capazes de se ocuparem da loja, portanto a sua presença não era necessária em Nova Iorque. E ela precisaria da sua ajuda. As mulheres raramente viajavam sozinhas, dissera-lhe. A viagem seria muito mais rápida se fosse acompanhada por um homem. Além disso, talvez houvesse sítios onde as mulheres nem sequer podiam entrar. Ambas as coisas eram verdadeiras, Megan sabia, embora odiasse admiti-lo. E não tinha razão alguma para se opor ao argumento principal do seu pai. Ele tinha todo o direito do mundo de tentar fazer com que o assassino do seu filho prestasse contas à justiça.

Deirdre, apesar da docilidade do seu carácter e daquele ar de fragilidade que fazia com que todos sentissem o impulso de cuidar dela, mostrara-se igualmente teimosa. Tinha tanto direito como Megan de tentar levar o assassino do seu irmão a tribunal, dissera a Megan e, afinal de contas, fora a ela que Dennis pedira ajuda.

– Além disso – dissera Deirdre, – se não for contigo, quem fará a comida e limpará a casa?

Aquela era uma razão de peso. Megan nunca gostara de tarefas domésticas e estava bastante contente com o acordo familiar a que tinham chegado há anos e que consistia em trabalhar todos os dias, tal como o seu pai, e deixar que Deirdre se encarregasse das tarefas do lar.

Megan esperava que a sua irmã mais velha, Mary Margaret, concordasse que Frank e Deirdre não deviam ir a Londres. Mary Margaret, a mais velha dos Mulcahey, ajudara o seu pai a criar os seus irmãos mais novos desde que tinha doze anos e sempre fora a mais responsável e sensata da família. Casada com um advogado próspero e mãe de três filhos, era a imagem viva de uma matrona tradicional.

Porém, Mary Margaret concordara que Deirdre e o seu pai deviam acompanhá-la para «impedir que se metesse em alguma confusão» e até se oferecera para pagar a viagem.

Portanto, finalmente, Megan, Deirdre e o seu pai tinham embarcado no barco a vapor que levava a Southampton e tinham chegado a Londres há alguns dias. Tinham passado os dois primeiros dias a procurar casa e a instalar-se. Megan demorara mais um dia a conseguir informações sobre Theo Moreland, o que lhe teria custado muito menos se soubesse o título nobiliário do seu pai.

Nessa tarde, fora dar uma olhadela à casa para ter uma primeira impressão do que ia encontrar. Tratava-se de um edifício imponente que ocupava um pequeno quarteirão no centro da cidade e que constituía a prova visível da riqueza e da importância da família do duque, assim como da sua ascendência. Havia duques de Broughton desde que os europeus se tinham estabelecido no Novo Mundo. A própria casa parecia estar ali há séculos.

No entanto, longe de se acovardar à frente daquele edifício magnífico, Megan sentira crescer a sua determinação. Em Nova Iorque, enfrentara valentões e empresários poderosos. Não estava disposta a fugir só porque aquela família tinha uma história mais longa do que as outras.

Contudo, perguntava-se como ia entrar na mansão para investigar Theo Moreland.

Afastou-se da janela e aproximou-se da pequena cómoda. Abriu a gaveta de cima e tirou uma caixinha cor-de-rosa. Era o seu cofre, uma caixa de música infantil com uma rosa da qual saía uma pequena bailarina. Noutro tempo, a bailarina dançava quando se abria a tampa, mas o mecanismo que a fazia mexer-se estragara-se há muito tempo. Mesmo assim, Megan conservava a caixa como um tesouro porque era uma lembrança da sua mãe, que morrera quando ela tinha sete anos.

Pôs a mão na caixa e tirou um pedaço de cristal. Embora de forma cilíndrica, não era de liso, mas tinha várias partes suaves.

Megan nunca soubera o que era. Encontrara-o há anos, pouco depois da morte de Dennis, quando ainda se sentia embargada pela dor. Encontrara aquele pedaço de cristal entre o pó debaixo da cama, enquanto limpava o seu quarto. Tirara-o e levantara-o para a luz. Era cristal translúcido, um prisma, pensou, com os lados planos e o centro atravessado por filamentos de prata. Ignorava como chegara até ali. Nunca antes o vira e Deirdre, que naquela época dormia no seu quarto, dizia não saber nada dele.

Megan guardara-o no bolso e depois tivera-o sempre consigo, mudando-o de vestido para vestido. Aquele cristal transformara-se para ela numa espécie de talismã. Reconfortava-a acariciar as suas partes lisas enquanto reflectia sobre alguma questão, como antes costumava fazer com a medalha que sempre tivera consigo.

Aquela medalha oval de prata tinha um retrato em relevo da Virgem, fora um presente da sua mãe para a sua primeira comunhão e era ainda mais apreciada por ela por a sua mãe ter morrido pouco depois. Megan sempre a usara e, à medida que crescia, pusera-a em fios mais compridos.

Mas perdera-a algumas semanas antes de encontrar o pedaço de cristal. Ignorava o que lhe acontecera. Procurara-a por todo o lado, na casa e até na calçada e na loja do seu pai, mas finalmente tivera de se dar por vencida. O fio, pensava, devia ter-se partido e a medalha caíra sem ela perceber. Aquela estranha peça de cristal parecera-lhe, de certo modo, um substituto.

Embora já não o tivesse sempre consigo, não quisera deixá-lo em casa, apesar de disporem de escasso espaço nos baús. Para enfrentar Theo Moreland, dizia-se, ia precisar de toda a sorte que conseguisse reunir.

Esfregou distraidamente o pedaço de cristal e depois afugentou os seus pensamentos. Saiu do quarto e desceu a correr as escadas à procura da sua irmã.

Deirdre, que estava sentada à mesa da cozinha a cortar batatas para o jantar, sorriu ao vê-la entrar. Megan sentou-se e agarrou uma faca e uma batata para ajudar a sua irmã.

– Foste a Broughton House? – perguntou Deirdre.

– Sim, fui e é tão grande como possas imaginar.

– Alguma vez pensas nele? – perguntou Deirdre. – Em Theo Moreland, quero dizer.

– Pensar nele? Pensar no quê?

– Sabes, em como é, que aspecto tem.

– Ora, consigo imaginá-lo perfeitamente – respondeu Megan. – Tem ar de inglês, claro. É loiro e muito pálido e tem a pele quase morta... De certeza que tem uma expressão altiva, como se olhasse por cima do ombro para todos, com a arrogância e o desdém de quem algum dia será duque de Broughton. E, certamente, tem os olhos de um azul muito frio.

– Achas que se sente culpado pelo que fez a Dennis?

– Não sei. A única coisa que quero é que pague por isso até ao dia da sua morte.

– O que tencionas fazer? Como vais descobrir o que aconteceu? Como vais prová-lo?

– Bom, é essencial que fale com os outros ingleses que estiveram lá. O senhor Barchester, é claro, e o outro, Julian Coffey.

O seu irmão embarcara há dez anos numa expedição para a Amazónia chefiada por um explorador americano chamado Griswold Eberhart. Na única carta que tinham recebido depois da sua partida, Dennis dizia que outros membros da expedição já tinham ficado doentes ou desertado quando começaram a explorar a Amazónia e que só restava ele e o capitão Eberhart. Dennis parecia, contudo, contente por terem tido a sorte de encontrar um grupo de ingleses, igualmente dizimado, com que tinham decidido unir as suas forças.

O grupo inglês era formado por três homens: Andrew Barchester, Julian Coffey e Theo Moreland. Os três eram «homens excelentes», dizia-lhes Dennis, sobretudo, Theo Moreland, que era só quatro anos mais velho do que ele e que, nas suas próprias palavras, era «muito engraçado».

Alguns meses depois, Frank Mulcahey recebera um breve bilhete formal de Theo Moreland em que o informava da morte do seu filho e lhe expressava as suas condolências. Mas fora Andrew Barchester quem escrevera para lhe oferecer um relato mais detalhado da morte de Dennis e quem lhes dera a notícia inesperada de que Dennis fora morto pelo próprio Theo Moreland.

– O que o pai dizia não era muito explícito – disse Megan.

– Além disso, passaram dez anos. Talvez o pai tenha esquecido alguns detalhes.

– Infelizmente, suponho que o senhor Barchester também. Porém, tenho de falar com ele.

– E Moreland? – insistiu Megan. – Vais interrogá-lo?

– Duvido que queira falar comigo. Vive naquela mansão cheia de lacaios. Tenho a certeza de que uma desconhecida não conseguirá lá entrar.

– Outras vezes, estiveste muito tempo a espiar uma casa até a pessoa com que querias falar sair e, então, abordaste-a quando ia entrar na carruagem – recordou-a Deirdre.

Megan sorriu e uma covinha apareceu na sua face.

– É verdade que não tenho vergonha. Mas, por enquanto, pelo menos, acho que será melhor não o fazer. Esse homem não vai admitir que é um assassino. Tenho de encontrar um subterfúgio. Tenho de entrar na casa e espiá-lo. Se roubou alguma coisa a Dennis, como o pai suspeito, é provável que a tenha na casa. Se conseguir encontrá-la, terei uma prova... E poderei usá-la para o pressionar. Com um pouco de sorte, conseguirei fazê-lo confessar de algum modo.

– Como?

– Às vezes os homens são muito faladores quando estão bêbados. Lembro-me de um tipo de Tammany Hall que me contou alguns segredos. Costumava embebedar-se na taberna de O’Reilly e consegui fazer com que me contratassem como taberneira.

– Lembro-me de que o pai quase teve um ataque quando descobriu como tinhas conseguido essa história.

– A julgar pela sua reacção, qualquer um teria pensado que me tinha disfarçado de mulher da rua. E não fiz nada, excepto servir bebidas. E não mostrei mais os seios do que muitas senhoras elegantes que vi de vestido de noite.

– Não sei como tens coragem. Eu teria morrido de vergonha. E teria tido tanto medo que não teria conseguido entrar. Os homens não eram atrevidos? Até mesmo, sabes, violentos?

– Sobrevivi. O facto de conviver com repórteres durante anos ajudou-me.

Megan esforçara-se muito para que a respeitassem na profissão. Tivera de conquistar tudo o que conseguira, desde a primeira oportunidade para escrever um artigo ao seu novo emprego. Sabia desde o começo que não podia mostrar fraqueza alguma ou corria o risco de os outros a usarem como prova de que as mulheres não serviam para jornalistas.

Não contara a Deirdre muitas das suas experiências, pois sabia que a teriam assustado ao ponto de talvez as contar ao seu pai. E embora Frank Mulcahey estivesse orgulhoso dela e disposto a enfrentar qualquer pessoa que se atrevesse a insinuar que a sua rapariga não era tão boa jornalista como qualquer outro, nunca deixava de a bombardear com avisos acerca da sua segurança. Se se tivesse informado de algumas das suas mais famosas façanhas, Megan não teria estranhado se aparecesse no jornal disposto a dar um bom sermão ao director por a pôr em perigo.

– Mas esse tipo de coisas não servem neste caso – disse Megan à sua irmã. – Não sei que taberna é que Theo Moreland frequenta, se é que vai alguma vez a um sítio tão plebeu. Certamente, vai beber a um clube de cavalheiros, onde as mulheres não entram. O que tenho de fazer é entrar na casa. Portanto, vou pedir trabalho como empregada – Deirdre deixou cair a batata que estava a cortar e ficou a olhar para a sua irmã. Depois, desatou a rir-se alegremente. – De que te ris? – perguntou Megan, indignada. – É uma boa ideia.

– Tu? Empregada? Não, cozinheira – disse Deirdre ao fim de um momento, quando finalmente conseguiu parar de se rir e limpou as lágrimas. – Essa é boa.

– Achas que não consigo limpar ou cozinhar? – perguntou Megan, pondo as mãos na cintura. – Não seria a primeira vez. Quando tu eras pequena, limpava e cozinhava.

– Pode ser... quando Mary Margaret fazia estalar o chicote. Mas foi há muitos anos.

– Mas não me esqueci de como se faz. Estou a cortar batatas, não estou?

– Sim, mas olha para o monte de cascas que tens à frente – Deirdre apontou para a folha de jornal estendida sobre a mesa, entre elas. À frente de Megan havia um punhado de cascas de batata. Do outro lado da mesa, à frente de Deirdre, havia um monte três vezes maior.

– Tu começaste primeiro que eu – disse Megan e, ao ver como a sua irmã olhava para ela, continuou. – Está bem, não sou tão rápida como tu. Mas eles não perceberão.

– Despedir-te-ão em dois dias. Mesmo que seja apenas por seres respondona. Conheço-te, Megan Mulcahey, e não suportas receber ordens.

– Nisso tens razão. Mas terei de me aguentar. Não vejo outro modo de entrar na casa. Além disso, limpar as divisões dar-me-á a oportunidade perfeita para procurar o que Moreland roubou a Dennis – fez uma pausa e olhou para a sua irmã com uma certa indecisão. – Embora me pergunte o que eram essas coisas que Dennis... eh... procurava...?

– Não sei mais nada sobre elas. Não voltei a ver Dennis desde aquela noite. Não faço ideia do que procura com tanto afinco. Sei que, na verdade, não acreditas que Dennis me visitou.

– Não acho que estejas a mentir – apressou-se a dizer a sua irmã. – Sei que achas que Dennis apareceu... É só que me parece... bom... é...

– Eu sei. É demasiado sobrenatural para ti. Tu acreditas nas coisas tangíveis e isso não é mau. Tu lidas com factos no mundo prático. Eu sei. Mas, Megan... eu não estou louca.

– Deirdre! Eu não queria...! – exclamou Megan, procurando a mão da sua irmã.

– Não, sei que não achas que estou louca. Mas há muitos que pensariam que estou se soubessem algumas coisas que vi e ouvi. Mas eu sei o que vi. Era Dennis e falou comigo. Não sei se estava ali, comigo, no quarto, ou se era um sonho. Mas sei que era ele e sei que estava desesperado. Quer recuperar o que lhe roubaram. Significa muito para ele. E foi pedir-nos ajuda.

– Não sei o que pensar – disse Megan. – Custa-me acreditar nessas coisas, mas sei que não estás louca nem és uma mentirosa e, enquanto houver alguma possibilidade de Dennis voltar da tumba para nos pedir ajuda, farei tudo o que puder por ele. E aceitarei toda a ajuda que possas dar-me, mesmo que proceda de um sonho.

– Oxalá pudesse ajudar-te – Deirdre suspirou. – Queria que estas coisas não fossem sempre tão duvidosas. Todas as noites, quando vou para cama, rezo para ter novamente notícias dele, para que nos diga como podemos ajudá-lo.

Megan mal sabia como responder à sua irmã. A fé inquebrável de Deirdre nas suas visões espantava-a e suscitava-lhe uma certa inveja. Devia ser reconfortante, pensava, viver sem dúvidas. Receava nunca ter essa sensação. Aparentemente, toda a sua vida estava cheia de dúvidas.

Continuaram a falar até acabarem de cortar as batatas. Depois, Deirdre pô-las a cozer e deu uma olhadela à carne que estava no forno. Megan subiu para se lavar antes de jantar e depois sentou-se para anotar num caderno tudo o que sabia sobre Broughton House.

Tinha por costume ir anotando as suas ideias quando escrevia uma história. Isso ajudava-a a planear os seus actos, assim como a meditar sobre o relato e a ter um registo o mais preciso possível das suas entrevistas. Com os anos, transformara-se num hábito bem enraizado.

Finalmente, desceu para jantar e descobriu com surpresa que o seu pai ainda não regressara. Depois de esperarem um pouco, Deirdre e ela sentaram-se a comer. De vez em quando davam uma olhadela ao relógio e entreolhavam-se, cheias de preocupação.

O seu pai ainda não chegara quando acabaram de jantar e Megan ajudou Deirdre a lavar e a secar a loiça enquanto conversavam, cada vez mais inquietas.

Finalmente, ouviram que a porta se abria e viram o seu pai a entrar a assobiar.

– Boa noite! – cumprimentou Frank Mulcahey, sorrindo enquanto tirava o chapéu.

– Onde estiveste? – perguntou Megan. – Estávamos preocupadas contigo.

– Preocupadas? Não havia motivo. Estive a investigar.

– A investigar? – Megan arqueou uma sobrancelha ao ver o seu pai aproximar-se, embora não conseguisse evitar sorrir. – É isso que lhe chamas? – cheirou o ar. – Cheira-me a cerveja.

– Sim, bom, foi na taberna que estive a investigar – respondeu ele. – Ainda há jantar para o vosso pobre e velho pai? Estou cheio de fome.

– Portanto, estiveste a investigar numa taberna? – perguntou Megan, com ironia, quando se sentaram à mesa da cozinha e Deirdre tirou a comida do forno.

– Não, mas foi lá que fiz as minhas pesquisas – Frank piscou um olho à sua filha.

– O que queres dizer? Que pesquisas?

– Estive a pensar em como vais entrar nessa mansão para apanhar esse velhaco – abanou a cabeça. – Fui dar uma olhadela à casa e é verdade que é imponente.

– Nisso tens razão – disse Megan. – Estava a dizer a Deirdre que acho que o melhor é tornar-me empregada. Numa casa tão grande, precisarão de muitos empregados. Eu diria que precisam sempre de alguém.

– E eu disse-lhe que não duraria um semana – disse Deirdre, sentando-se.

– Consigo fazê-lo.

– Se te contratarem. Tu não tens ar de empregada. Para começar, és demasiado bonita. E, além disso, não tens maneiras de criada – continuou Deirdre.

– Posso fingir – replicou Megan. – Vou vestir o vestido mais velho que tiver.

– Sim, mas nada pode esconder o brilho dos teus olhos – disse o seu pai e deu-lhe uma palmadinha carinhosa na face. – Não te preocupes, rapariga, eu tenho uma ideia melhor.

– Qual? – perguntaram Deirdre e Megan em coro.

– Bom, ontem à noite fui a todas as tabernas dos arredores de Broughton House. Esta tarde, voltei e, pelos vistos, acertei em cheio. Há um lacaio da casa que vai beber todas as noites, se conseguir escapulir-se. Chama-se Paul e é um rapaz muito falador.

– Ah, sim? E o que descobriste? – Megan inclinou-se para ele.

– Primeiro, descobri que lorde Raine está a viver em Broughton House.

– Lorde Raine? E quem é esse?

– O homem que procuramos.

– Pensava que se chamava Moreland – disse Megan.

– Sim, bom, mas parece que tem título por ser o herdeiro do duque de Broughton. Enquanto o seu pai for vivo, é outro tipo de lorde: o marquês de Raine. Não me perguntem porquê. Custou-me descobrir que o nosso Paul estava a falar do vilão que procuramos. De qualquer modo, vive nessa casa, o que é uma sorte para nós, porque confesso-te, menina, que me preocupava ter vindo até aqui para descobrir que estava noutro lugar qualquer.

– Sim, eu também estava um pouco preocupada.

– Segundo dizem, não parece que tencione ir-se embora nos próximos meses.

– Ainda bem.

– Melhor ainda é o que Paul me contou. Parece que estão desesperados para encontrar um preceptor para os dois filhos mais novos da família. Um preceptor... ou uma preceptora.

– Uma preceptora? – Megan olhou para ele com espanto. – Mas, pai, insinuas que me torne preceptora. Não falarás a sério!

– Porquê? É muito mais provável que os convenças de que és professora do que empregada.

– Sempre foste a melhor da turma – disse Deirdre e acrescentou: – Bom, quero dizer que tiravas as melhores notas. Mas, como estavas sempre a meter-te em confusões com as freiras, nunca tinhas as honras.

– Sim e estiveste na melhor escola de freiras de Nova Iorque – acrescentou Frank. – Aprendeste Latim e História e estudaste todos esses escritores que citas a toda a hora. A única coisa que tens de fazer é aguentar algumas semanas. Não é que vás ser professora para sempre.

– Sim, mas não tenho experiência, nem recomendações. Não me aceitarão.

– É muito fácil inventá-las, tendo em conta que todas as tuas referências procedem da América, não achas? Demorariam semanas a receber resposta de qualquer pessoa cujo nome lhes desses. E não podem esperar. Precisam de alguém agora.

– Mas, embora invente as melhores referências, porque haviam de contratar uma americana? Tem de haver muitas inglesas dispostas a aceitar o emprego e que tenham referências daqui, de Londres.

– Parece que já tentaram quase todas. Esses rapazes têm uma certa... reputação.

– O que estás a dizer? São tão maus que afugentam todas as suas amas?

– Todas as suas amas e depois a todas as suas professoras quando cresceram.

– Cresceram? Quantos anos têm?

– Já são suficientemente crescidos para que, segundo Paul, qualquer outra família os tivesse mandado para Eton. Mas pelos vistos os Moreland são um pouco estranhos. Acho que devem ter uns doze ou treze anos.

– Treze anos? E o que tenho de fazer com eles?

– Ora, não terás nenhum problema. Tu não és uma inglesa pacóvia. Cresceste entre rapazes. Faz o mesmo que fizeste com Sean e Robert, dá-lhes um bom soco quando ficarem brutos.

– Mas, pai, são aristocratas ingleses. Não posso dar-lhes um soco quando me apetecer.

– Vá lá, Megan. Tu consegues aguentar meninos malcriados. Fá-lo-ás muito bem.

– Mas não quererão contratar uma mulher para ensinar os seus queridos filhinhos se são tão velhos – arguiu Megan.

– Estou a dizer-te que estão desesperados. Além disso, segundo parece, a duquesa é um pouco estranha. Paul diz que é uma livre-pensadora. Acredita no sufrágio feminino. Na igualdade entre os sexos e tudo isso.

– Uma duquesa? Pai, acho que esse tipo estava a gozar contigo.

– Bom, só há um modo de descobrir, não achas? – Mulcahey sorriu para a sua filha.

Megan, que nunca deixava passar um desafio, endireitou os ombros.

– Tem razão. Enfim, será melhor ir dormir se amanhã vou pedir trabalho como professora.