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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

A rapariga nova

Título original: The New Girl

© 2019, Daniel Silva

© 2020, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Tradutor: Filipa Velosa

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: Hazel Lam, HarperCollins Design Studio

Imagem da capa: Andy Freer / Getty Images

1ª edição: Março 2020

 

ISBN: 978-84-9139-458-7

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Créditos

PREFÁCIO

PRIMEIRA PARTE SEQUESTRO

1 GENEBRA

2 NOVA IORQUE

3 NOVA IORQUE

4 NOVA IORQUE

5 ASTARA, AZERBAIJÃO

6 TELAVIVE

7 TELAVIVE–NETANYA

8 NETANYA

9 NEJD, ARÁBIA SAUDITA

10 NEJD, ARÁBIA SAUDITA

11 NEJD, ARÁBIA SAUDITA

12 JERUSALÉM

13

14 JERUSALÉM-PARIS

15 PARIS

16 PARIS

17 PARIS-ANNECY

18 GENEBRA

19 GENEBRA

SEGUNDA PARTE RENÚNCIA

20 GENEBRA-LYON

21

22 PARIS-LONDRES

23 KENSINGTON, LONDRES

24 MAYFAIR, LONDRES

25 KENSINGTON, LONDRES

26 ALTA SABOIA, FRANÇA

27 ALTA SABOIA, FRANÇA

28 AUVÉRNIA-RÓDANO-ALPES

29 AREATZA, ESPANHA

30 PARIS-JERUSALÉM

31 TELAVIVE-PARIS

32 PARIS

33 MAZAMET, FRANÇA

34 CARCASSONNE, FRANÇA

35 DÉPARTEMENT DU TARN, FRANÇA

TERCEIRA PARTE ABSOLVIÇÃO

36 SUDOESTE DE FRANÇA-JERUSALÉM

37 TELAVIVE

38 EILAT, ISRAEL

39 JERUSALÉM

40 JERUSALÉM

41 NOVA IORQUE-BERLIM

42 BERLIM

43 BERLIM

44 BERLIM

45 BERLIM

46 GOLFO DE AQABA

47 GOLFO DE AQABA

48 NOTTING HILL, LONDRES

49 VAUXHALL CROSS, LONDRES

50 HARROW, LONDRES

51 EPPING FOREST, ESSEX

52 MOSCOVO

53 KREMLIN

54 MOSCOVO-WASHINGTON-LONDRES

QUARTA PARTE ASSASSÍNIO

55 FRINTON-ON-SEA, ESSEX

56 NÚMERO 10 DE DOWNING STREET

57 OUDDORP, PAÍSES BAIXOS

58 AEROPORTO DE HEATHROW, LONDRES

59 NÚMERO 10 DE DOWNING STREET

60 WALTON-ON-THE-NAZE, ESSEX

61 NOTTING HILL

62 EATON SQUARE, BELGRAVIA

63 EATON SQUARE, BELGRAVIA

64 EATON SQUARE, BELGRAVIA

65 EATON SQUARE, BELGRAVIA

66 EATON SQUARE, BELGRAVIA

67 NÚMERO 10 DE DOWNING STREET

68 AEROPORTO CIDADE DE LONDRES

69 FRINTON-ON-SEA, ESSEX

70 FRINTON-ON-SEA, ESSEX

71 ESSEX-AEROPORTO CIDADE DE LONDRES

72 AEROPORTO CIDADE DE LONDRES

73 MAR DO NORTE

74 ROTERDÃO

75 ROTERDÃO

76 NÚMERO 10 DE DOWNING STREET

77 OUDDORP, PAÍSES BAIXOS

78 OUDDORP, PAÍSES BAIXOS

79 RENESSE, PAÍSES BAIXOS

QUINTA PARTE VINGANÇA

80 LONDRES-JERUSALÉM

81 LANGLEY-NOVA IORQUE

82 TIBERÍADES

NOTA DO AUTOR

AGRADECIMENTOS

Se gostou deste livro…

 

 

 

 

 

 

Para os cinquenta e quatro jornalistas assassinados em todo o mundo em 2018. E, como sempre, para a minha mulher, Jamie, e para os meus filhos, Nicholas e Lily.

 

 

 

 

 

 

O que está feito, não pode ser desfeito.

Macbeth (1606), Ato V, Cena 1.

PREFÁCIO

 

 

 

 

 

Em agosto de 2018 comecei a trabalhar num romance sobre um jovem príncipe árabe que empreendia uma cruzada para modernizar o seu país, no qual imperava a intolerância religiosa, e assim favorecer alterações profundas no Médio Oriente e no mundo islâmico no seu conjunto. Porém, dois meses depois, pus de lado o manuscrito quando Mohammed bin Salman, o príncipe que servia de modelo à minha personagem, foi acusado de estar implicado no brutal homicídio de Jamal Khashoggi, dissidente saudita e colaborador do Washington Post. Certos elementos de A rapariga nova baseiam-se claramente em acontecimentos relacionados com a morte de Khashoggi. Tudo o mais acontece exclusivamente no mundo imaginário no qual habitam Gabriel Allon e os seus aliados e inimigos.

PRIMEIRA PARTE

SEQUESTRO

 

1

GENEBRA

 

 

 

 

 

Foi Beatrice Kenton a primeira a pôr em causa a identidade da rapariga nova. E fê-lo na sala de professores, às três e um quarto da tarde de uma sexta-feira do fim de novembro. Reinava um ambiente festivo e ligeiramente irreverente, como quase sempre à sexta à tarde. É uma verdade de La Palice dizer que em nenhuma profissão se aguarda o fim da semana de trabalho com tanta expectativa como entre os docentes, mesmo entre os docentes de estabelecimentos tão elitistas como o Colégio Internacional de Genebra. Conversava-se animadamente sobre os programas para o fim de semana. Beatrice permanecia calada porque não tinha nenhum e não lhe apetecia falar disso com os seus colegas. Tinha cinquenta e dois anos, era solteira e a sua única família resumia-se a uma tia velhota e rica que lhe concedia asilo no verão na sua propriedade de Norfolk. A sua rotina de fim de semana consistia numa visita ao Migros e num passeio pela beira do lago pelo bem da sua cintura, que, à semelhança do Universo, não parava de se expandir. As segundas-feiras de manhã eram um oásis no meio de um deserto de solidão.

Fundado por um organismo de cooperação internacional extinto há muito tempo, o Colégio Internacional de Genebra prestava serviço aos filhos da comunidade diplomática da cidade. A escola secundária, na qual Beatrice dava aulas de redação em língua inglesa, educava estudantes de mais de cem países diferentes. Entre os funcionários, a diversidade também imperava. O chefe de pessoal fazia questão de promover a convivência entre os funcionários — cocktails informais, jantares nos quais cada participante levava um prato, idas ao campo —, mas, na sala de professores, o tribalismo corriqueiro tendia a impor-se. Os alemães juntavam-se com os alemães, os franceses com os franceses e os espanhóis com os espanhóis. Nessa sexta-feira à tarde, a senhora Kenton era a única súbdita britânica presente para além de Cecelia Halifax, do departamento de História. Cecelia tinha uma juba preta e selvagem e as opiniões políticas da praxe, que fazia questão de explicar à senhora Kenton à primeira oportunidade. Aliás, também lhe contava pormenores da tórrida aventura que mantinha com Kurt Schröder, o génio da Matemática de Hamburgo que, calçado com as sempre eternas Birkenstock, tinha renunciado a uma lucrativa carreira de engenheiro para ensinar crianças de onze anos a fazer contas de multiplicar e dividir.

A sala de professores situava-se no rés-do-chão do château do século XVIII que servia como secretaria. As suas janelas com vitrais davam para o pátio da frente onde, naquele preciso instante, os privilegiados alunos do Colégio Internacional de Genebra estavam a entrar para a parte de trás de carrões de luxo de fabrico alemão com matrícula diplomática. Cecelia Halifax, tão loquaz como de costume, estava especada ao lado de Beatrice e palrava sobre um escândalo ocorrido em Londres: algo relativo ao MI6 e a um espião russo. Beatrice mal a ouvia. Estava a observar a rapariga nova.

Como todos os dias à hora da saída, a rapariga — de doze anos e já muito bela, quase etérea, com os seus expressivos olhos castanhos e cabelo asa de corvo —, era uma das últimas a sair. Para consternação de Beatrice, o colégio não impunha aos alunos o uso de farda, apenas um código indumentário ao qual alguns dos discípulos mais contestatários desobedeciam sem sanção oficial alguma por parte da direção. A rapariga nova não. Ia tapada da cabeça aos pés com dispendiosos tecidos de lã e de xadrez como os que se viam na loja Burberry do Harrods. Trazia uma pasta de pele em vez de uma mochila de nylon e sabrinas de verniz reluzentes. A rapariga nova era muito educada e modesta. Mas não era só isso, pensava Beatrice. Parecia farinha de outro saco. Era régia. Sim, era essa a palavra. Régia…

Tinha chegado duas semanas após o início do trimestre de outono. Não era o ideal, mas também não era algo invulgar num estabelecimento como o Colégio Internacional de Genebra, onde os pais dos alunos iam e vinham como as águas do Ródano. David Millar, o diretor, tinha-a impingido na terceira turma de Beatrice, na qual já havia dois alunos a mais. A cópia da ficha de inscrição que lhe deu era breve inclusive para os parâmetros do colégio. Afirmava que a nova aluna se chamava Jihan Tantawi, que era de nacionalidade egípcia e que o seu pai era empresário, não diplomata. O seu percurso escolar era banal. Era considerada inteligente, mas de modo algum sobredotada. Um passarinho pronto para levantar voo, escreveu David numa nota pejada de otimismo escrita na margem. Com efeito, o único aspeto do percurso digno de nota era o parágrafo dedicado às «necessidades especiais» da aluna. Pelos vistos, a privacidade era uma preocupação prioritária para a família Tantawi. A segurança, rascunhou David, era fulcral.

Daí que nessa tarde, e em todas as que se seguiram, o pátio contasse com a presença de Lucien Villard, o eficaz chefe de segurança do colégio. Lucien, importado de França, era um veterano do Service de la Protection, a unidade da polícia nacional encarregue da segurança dos dignatários estrangeiros e dos altos funcionários do governo francês. O seu anterior destino fora o Palácio do Eliseu, onde tinha feito parte da escolta pessoal do presidente da república. David Millar servia-se do impressionante currículo de Lucien como garantia da importância que o colégio concedia à segurança. Jihan Tantawi não era a única aluna com necessidades especiais nessa área.

Porém, ninguém chegava e saía do colégio como a rapariga nova. A limusina Mercedes preta que a transportava era própria de um chefe de Estado ou de potentado. Beatrice não era nenhuma especialista em automóveis, mas tinha a impressão de que aquele carro era blindado e tinha vidros à prova de bala. Atrás seguia um segundo veículo, um Range Rover ocupado por quatro brutamontes carrancudos, de casacos escuros.

— Quem é que achas que é? — perguntou Beatrice enquanto via os dois veículos afastar-se.

Cecelia Halifax pareceu desconcertada.

— O espião russo?

— A rapariga nova — respondeu Beatrice com impaciência, e acrescentou com um toque de dúvida: — A Jihan.

— Dizem que o pai dela é dono de meio Cairo.

— Quem é que diz isso?

— A Verónica.

Verónica Álvarez era uma espanhola com pelo na venta pertencente ao departamento de Arte e a fonte de coscuvilhices menos fiável da escola, só ficando atrás da própria Cecelia.

— Diz que a mãe é família do presidente egípcio. Sua sobrinha. Ou talvez seja prima…

Beatrice viu que Lucien Villard atravessava o pátio.

— Sabes o que é que eu acho?

— O quê?

— Que alguém está a mentir.

 

 

E foi assim que Beatrice Kenton, aguerrida veterana em várias escolas privadas britânicas de meia-tigela, razão pela qual se tinha mudado de armas e bagagens para Genebra à procura do amor e de aventura sem encontrar nenhuma das duas coisas, decidiu investigar por sua conta e risco a verdadeira identidade da rapariga nova. Começou por introduzir o nome JIHAN TANTAWI no quadro branco do motor de pesquisa por defeito do seu navegador de Internet. Apareceram milhares de resultados no ecrã, mas nenhum deles correspondia à linda rapariguinha de doze anos que lhe entrava pela porta da sala de aula à terceira hora sem um único minuto de atraso.

A seguir, procurou em diversas redes sociais, mas também não encontrou rasto da aluna. Parecia ser a única rapariga da sua idade na face da Terra que não tinha uma vida paralela no ciberespaço. Beatrice considerava-o louvável, pois sabia em primeira mão os estragos que a troca incessante de mensagens instantâneas, tweets e fotografias causava no desenvolvimento emocional dos jovens. Lamentavelmente, essa conduta não afetava só as crianças. Cecelia Halifax era incapaz de ir à casa de banho sem publicar uma fotografia sua retocada no Instagram.

O pai, um tal Adnan Tantawi, era tão desconhecido como a filha no reino cibernético. Beatrice encontrou algumas referências a várias empresas (Tantawi Construction, Tantawi Holdings e Tantawi Development), mas nada sobre o homem em si. Na ficha de candidatura de Jihan constava uma morada muito chique na Route de Lausanne. Beatrice deu uma volta por lá num sábado à tarde. A casa ficava umas portas abaixo do domicílio do famoso industrial suíço, Martin Landesmann. Como todas as propriedades desse lado do lago Léman, estava rodeada por muros altos e vigiada por câmaras de segurança. Beatrice espreitou pelos barrotes da vedação e conseguiu ver um relvado impecável que se espraiava até ao pórtico de uma magnífica villa de estilo italiano. De imediato, um homem dirigiu-se a ela pelo caminho de acesso: sem dúvida, um dos brutamontes do Range Rover. Não fez tenção de ocultar a arma que trazia debaixo do casaco.

Propriété privée! — gritou num francês com acentuada pronúncia estrangeira.

Excusez-moi — murmurou Beatrice, e afastou-se à pressa.

A fase seguinte da sua investigação começou na segunda-feira posterior logo de manhã, quando se embrenhou numa observação atenta da aluna misteriosa que durou três dias. Reparou que Jihan, quando a docente a interpelava na aula, às vezes demorava a responder. Também constatou que não tinha feito amigos desde a sua chegada ao colégio, nem sequer tinha tentado. Por outro lado, enquanto tecia elogios falsos a uma redação insignificante, averiguou que Jihan possuía escassos conhecimentos sobre o Egito. Sabia que o Cairo era uma cidade grande atravessada por um rio, e pouco mais. Dizia que o seu pai era muito rico. Construía torres de habitação e arranha-céus. Mas, como era amigo do presidente egípcio, a Irmandade Muçulmana embirrava com ele. Era por isso que viviam em Genebra.

— Acho muito lógico — disse Cecelia.

— Parece é inventado — respondeu Beatrice. — Duvido que alguma vez tenha posto os pés no Cairo. De facto, nem sequer tenho a certeza de que seja egípcia.

Depois, prestou atenção à mãe, a qual se entrevia através das janelas fumadas da limusina, ou nas raras ocasiões em que se apeava do banco de trás do carro para receber Jihan no pátio. Tinha a tez e o cabelo mais claros do que a filha e era atraente, na opinião de Beatrice, mas nem por sombras tão bela como Jihan. De facto, custava-lhe encontrar alguma parecença com a rapariga e havia na sua relação uma notória frieza física. Nem uma só vez as tinha visto darem um beijo ou um abraço. Aliás, notava-se um claro desequilíbrio de poder entre elas. Era Jihan e não a mãe que dominava a cena.

Quando novembro deu lugar a dezembro e as férias de Natal se avizinhavam a passos largos, Beatrice arranjou maneira de marcar uma reunião com a hermética progenitora da sua aluna misteriosa, com o pretexto da nota de Jihan num exame de ortografia e vocabulário ingleses: a terceira mais baixa da turma, embora muito melhor do que a do jovem Callahan, o filho de um funcionário do corpo diplomático dos Estados Unidos cuja língua materna era presumivelmente o inglês. Redigiu um e-mail a marcar uma reunião com a senhora Tantawi quando lhe fosse mais conveniente e enviou-o para o endereço eletrónico que constava na ficha de inscrição. Passaram vários dias sem qualquer resposta, logo, voltou a enviá-lo. E então recebeu uma branda reprimenda de David Millar, o diretor. Parecia que a senhora Tantawi não desejava manter contacto direto com os professores de Jihan. Beatrice devia encaminhar quaisquer preocupações que albergasse a respeito da aluna para o diretor e David, por sua vez, fá-las-ia chegar à senhora Tantawi. Beatrice suspeitava que David estava a par da verdadeira identidade da rapariga, mas intuía que não devia tocar no assunto, nem sequer por portas travessas. Era mais fácil tirar nabos da púcara a um banqueiro suíço do que ao discretíssimo diretor do Colégio Internacional de Genebra.

Restava apenas Lucien Villard, o chefe de segurança do colégio de origem francesa. Beatrice fez-lhe uma visita numa sexta-feira à tarde, durante um furo. O gabinete de Villard ficava na cave do château, ao lado do que mais parecia uma arrecadação onde um russo manhoso e baixote fazia com que os computadores funcionassem. Lucien era magro mas robusto e tinha um aspeto juvenil apesar dos seus quarenta e oito anos. Metade das professoras estavam caidinhas por ele, incluída Cecelia Halifax, que tinha tentado em vão seduzi-lo antes de ter um caso com o seu génio matemático germânico amante de sandálias.

— Posso dar-lhe uma palavrinha acerca da rapariga nova? — perguntou Beatrice apoiando-se com uma indiferença fingida na ombreira da porta aberta do gabinete.

Lucien olhou-a friamente por cima da secretária.

— Da Jihan? Porquê?

— Porque estou preocupada com ela.

Lucien pousou um molho de papéis sobre o telemóvel que descansava em cima do mata-borrão. Beatrice não podia afirmá-lo com toda a certeza, mas pareceu-lhe que era um modelo diferente do que costumava usar.

— Eu é que tenho de me preocupar com a Jihan, professora Kenton, é o meu dever, não o seu.

— Ela não se chama assim, pois não?

— De onde é que tirou essa ideia?

— Sou professora dela. Os professores veem coisas.

— Talvez não tenha lido a chamada de atenção na ficha da Jihan relativa aos falatórios e mexericos. Aconselho que siga essas instruções. De outro modo, ver-me-ei obrigado a tratar do assunto com o Monsieur Millar.

— Desculpe, não pretendia…

Lucien levantou uma mão.

— Não se preocupe, senhora Kenton. Isto fica entre nous.

Duas horas mais tarde, quando os filhotes da elite diplomática mundial atravessaram a saracotear-se o pátio da frente do château, uma vigilante Beatrice espreitava pelos vitrais da janela da sala de professores. Como de costume, Jihan foi das últimas a sair. Não, Jihan não, pensou. A rapariga nova… Atravessou o pátio de paralelepípedos com um passo ligeiro, a balouçar a pasta dos livros, alheia à presença de Lucien Villard ao seu lado. A mulher esperava-a junto da porta aberta da limusina. A rapariga nova passou por ela sem sequer lhe dirigir o olhar e entrou para o banco de trás. Foi a última vez que Beatrice a viu.

 

2

NOVA IORQUE

 

 

 

 

 

Sarah Bancroft compreendeu que tinha cometido um erro fatal no instante em que Brady Boswell pediu outro martíni Belvedere. Estavam a jantar na Casa Lever, um exclusivo restaurante italiano na Park Avenue decorado com uma pequena parte da coleção de ilustrações de Warhol do seu proprietário. O restaurante fora escolhido por Brady Boswell, diretor de um modesto mas reputado museu de St. Louis que vinha a Nova Iorque duas vezes por ano para assistir aos leilões mais relevantes e degustar as delícias gastronómicas da cidade, normalmente à custa de outros. Sarah era a vítima perfeita. Quarenta e três anos, loura, olhos azuis, inteligente e solteira. E, o mais importante, era do conhecimento geral no incestuoso mundo artístico de Nova Iorque que tinha acesso a um poço sem fundo de dinheiro.

— De certeza que não queres outro? — Boswell levou o copo aos lábios húmidos.

Tinha a palidez de um salmão grelhado mal passado e o cabelo grisalho meticulosamente penteado. A gravata estava torta, como tortos estavam também os óculos de armação de tartaruga, por trás dos quais pestanejavam uns olhos ávidos de expectativa.

— Odeio beber sozinho, a sério.

— É uma da tarde.

— Não bebes ao almoço?

Já não, embora tivesse muita vontade de renunciar ao seu voto de abstinência matutina.

— Vou a Londres — balbuciou Boswell.

— Sim? Quando?

— Amanhã à tarde.

E já vais tarde, pensou Sarah.

— Tu estudaste lá, não é verdade?

— No Courtauld — respondeu ela na defensiva. Não lhe apetecia passar o almoço a recordar o seu currículo, que, tal como as suas despesas, era sobejamente conhecido no mundo da arte nova-iorquina. Pelo menos, em parte.

Licenciada pela Faculdade de Dartmouth, Sarah Bancroft tinha estudado História da Arte no famoso Instituto de Arte Courtauld de Londres e posteriormente tinha-se doutorado em Harvard. A educação, totalmente financiada pelo seu pai, banqueiro de investimentos no Citigroup, fez com que conquistasse o lugar de comissária no The Phillips Collection de Washington, onde lhe pagavam uma miséria. Deixou o museu em circunstâncias pouco claras e, como um Picasso comprado em leilão por um misterioso colecionista japonês, desapareceu de cena. Durante esse período trabalhou para a CIA e participou em duas missões secretas de alto risco às ordens de um lendário agente israelita chamado Gabriel Allon. Agora trabalhava oficialmente no MoMA de Nova Iorque, onde se encarregava de supervisionar a principal atração do museu: uma espantosa coleção de obras modernas e impressionistas avaliada em cinco mil milhões de dólares que tinha pertencido à falecida Nadia al-Bakari, filha do investidor saudita Zizi al-Bakari, um homem fabulosamente rico.

O que explicava em grande parte o motivo pelo qual estava a almoçar com um sujeito como Brady Boswell. Há pouco, Sarah tinha acedido a emprestar várias obras de menor importância da coleção ao Museu de Arte do Condado de Los Angeles e Brady Boswell queria ser o próximo da lista. Era pouco provável que assim fosse e ele sabia-o. O seu museu carecia da relevância e do pedigree necessários. Daí que, depois de pedir finalmente o almoço, Boswell estivesse a adiar a rejeição inevitável ao falar de coisas sem importância. Para Sarah era um alívio. Não gostava de conflitos. Tivera conflitos que chegavam para uma vida inteira. Aliás, duas vidas.

— No outro dia ouvi uma cusquice sobre ti.

— Só uma?

Boswell sorriu.

— E o que dizia essa cusquice?

— Que tinhas dois empregos.

Treinada na arte do engano, Sarah dissimulou sem esforço o seu mal-estar.

— Ai sim? Em que sentido?

Boswell inclinou-se para a frente e baixou a voz.

— Dizem que és a assessora secreta do KBM para questões artísticas — disse num sussurro cúmplice. KBM eram as iniciais, reconhecidas internacionalmente, do futuro rei da Arábia Saudita. — E que foste tu que o deixaste gastar quinhentos milhões de dólares nesse Leonardo de autoria duvidosa.

— Não é um Leonardo de autoria duvidosa.

— Então é verdade!

— Não sejas ridículo, Brady.

— Ou seja, nem negas nem confirmas — respondeu ele com receio.

Sarah levantou a mão direita como se se dispusesse a fazer um juramento solene.

— Não sou, nem nunca fui a assessora artística do Khalid bin Mohammed.

Boswell não pareceu muito convencido. Enquanto comiam os antipasti, finalmente veio à tona o assunto do empréstimo. Sarah adotou uma atitude imparcial antes de o informar que de forma nenhuma emprestaria nem um só quadro da coleção Al-Bakari.

— Pode ser um Monet ou dois? Ou um do Cézanne?

— Lamento, mas está fora de questão.

— E um Rothko? Têm tantos que não lhe sentiriam a falta.

— Brady, por favor.

Acabaram de almoçar sem mais contratempos, e despediram-se no passeio de Park Avenue. Sarah decidiu regressar a pé até ao museu. Por fim, tinha chegado o inverno a Manhattan depois de um dos outonos mais quentes de que se lembrava. Só os céus sabiam o que o ano novo traria. O planeta parecia andar aos solavancos de um extremo ao outro. E ela também: infiltrada na guerra global contra o terror um dia, e no seguinte comissária de uma das melhores coleções de arte do mundo. Na sua vida não havia meio-termo.

Porém, ao chegar à East Fifty-Third Street, de repente apercebeu-se de que estava aborrecida de morte. Era a inveja do mundo dos museus, verdade seja dita. Mas a coleção Nadia al-Bakari, apesar de todo o glamour e alvoroço que a sua inauguração tinha despertado inicialmente, mal precisava de cuidados. Sarah era pouco mais do que a sua atraente carta de apresentação. E ultimamente almoçava com demasiada frequência com tipos como Brady Boswell.

Enquanto isso, a sua vida privada definhava. Fosse qual fosse a razão, apesar da sua apertada agenda de angariações de fundos e receções, não tinha conseguido conhecer um homem cuja idade e trajetória profissional lhe conviessem. Conhecia muitos de quarenta e poucos anos, sim, mas esses não tinham interesse nas relações a longo prazo — meu deus, como odiava aquele chavão — com uma mulher da mesma idade. Os homens de quarenta e poucos anos queriam uma ninfa núbil de vinte e três, uma daquelas criaturas lânguidas que desfilavam por Manhattan munidas de leggings e tapetes de ioga. Sarah receava ser a segunda esposa. Em momentos menos bons, via-se de braço dado com um ricaço de sessenta e três anos que pintava o cabelo e levava regularmente injeções de botox e testosterona. Os filhos do seu primeiro casamento considerá-la-iam uma intrusa e desprezá-la-iam. Depois de prolongados tratamentos de fertilidade, ela e o velhote do marido conseguiriam ter um único rebento que Sarah criaria sozinha depois de o seu marido falecer tragicamente na sua quarta tentativa de escalar o Evereste.

O zunzum de pessoas no vestíbulo do MoMA animou-a. A coleção Nadia al-Bakari estava no primeiro piso. O seu escritório, no terceiro. O registo telefónico mostrava doze chamadas não atendidas. O de sempre: pedidos de entrevistas, convites para cocktails e inaugurações de galerias, e um repórter de um tabloide à caça de mexericos.

O último telefonema era de um tal Alistair Macmillan. Pelos vistos, o senhor Macmillan queria ver a coleção em privado após a hora de fecho do museu. Não tinha deixado informação de contacto. Mas pouco importava: Sarah era uma das poucas pessoas no mundo que tinham o seu número privado. Hesitou antes de ligar. Não tinham voltado a falar desde Istambul.

— Estava a ver que nunca mais retribuías o telefonema. — O sotaque era uma combinação de Arábia e Oxford. O tom era calmo, com um laivo de cansaço.

— Estava a almoçar — respondeu Sarah sem se alterar.

— Num restaurante italiano da Park Avenue com uma criatura de nome Brady Boswell.

— Como é que sabes?

— Dois dos meus homens estavam sentados numas mesas mais à frente.

Sarah não reparara neles. Evidentemente, a sua habilidade para a contravigilância tinha-se deteriorado nos últimos oito anos fora da CIA.

— Arranjas-me isso? — perguntou Macmillan.

— O quê?

— A visita privada à coleção Al-Bakari, claro.

— Não é boa ideia, Khalid.

— O mesmo que me disse o meu pai quando lhe propus conceder às mulheres do meu país o direito de conduzir.

— O museu fecha às cinco e meia.

— Nesse caso, espera por mim às seis.

 

3

NOVA IORQUE

 

 

 

 

 

O Tranquillity, que tinha fama de ser o segundo maior iate de recreio do mundo, dava que pensar inclusive aos seus mais acérrimos defensores no Ocidente. O futuro rei viu-o pela primeira vez, ou era o que se dizia, do terraço da casa de verão que o seu pai tinha em Maiorca. Cativado pela elegância das linhas do iate e pelas suas luzes de navegação características em azul néon, despachou de imediato um emissário para perguntar se estava à venda. O proprietário, um oligarca russo chamado Konstantin Dragunov, soube ver a oportunidade que lhe surgia e pediu quinhentos milhões de euros pelo barco. O futuro rei aceitou na condição de que o russo e o seu extenso séquito abandonassem o iate de imediato. Assim o fizeram, servindo-se do helicóptero de bordo, incluído também no preço da venda. O futuro rei que, a seu modo, era um implacável homem de negócios, passou uma fatura exorbitante ao russo pelo combustível.

Confiava, quiçá ingenuamente, que a compra do iate permanecesse em segredo até que encontrasse uma forma de explicá-la ao seu pai, mas, ainda mal tinham passado quarenta e oito horas da venda da embarcação, e já um tabloide londrino publicava, com uma minúcia espantosa, a notícia da transação, provavelmente com a colaboração do próprio oligarca russo. A imprensa oficial do país do futuro rei — ou seja, a Arábia Saudita — fez vista grossa, mas as redes sociais e a blogosfera underground gritaram a notícia aos quatro ventos. Devido à descida do preço do petróleo, o futuro rei tinha imposto medidas de austeridade rigorosas aos seus mimados súbditos, que tinham visto diminuir bruscamente o seu nível de vida, até aí tão confortável. Até na Arábia Saudita, onde a ganância real era um traço permanente da vida política nacional, caiu mal essa mostra de cobiça do príncipe herdeiro.

O seu nome completo era Khalid bin Mohammed bin Abdulaziz Al Saud. Fora criado num exuberante palácio do tamanho de um quarteirão e andara num colégio reservado aos membros varões da família real e a seguir em Oxford, onde estudou economia, andou atrás das mulheres ocidentais e bebeu grandes quantidades de álcool, embora isso fosse proibido pela sua religião. O seu desejo era ficar no Ocidente mas, quando o seu pai subiu ao trono, regressou à Arábia Saudita para assumir o cargo de ministro da Defesa, uma conquista notável para um homem que jamais vestira uma farda militar, nem empunhara outra arma que não fosse um falcão.

O jovem príncipe lançou pouco depois uma guerra custosa e devastadora para atalhar a influência iraniana no vizinho Iémen e impôs um bloqueio sobre o novo-rico Qatar, mergulhando assim a região do Golfo numa crise profunda. Mas, sobretudo, dedicou-se a conspirar e a maquinar dentro da corte real para prostrar os seus rivais, tudo com a bênção do seu pai, o rei. Envelhecido e atacado pela diabetes, o monarca sabia que o seu reinado não duraria muito. Na Casa de Saud era costume que um irmão sucedesse a outro. O rei, no entanto, rompeu com a tradição ao designar o seu filho príncipe herdeiro e sucessor ao trono. Aos trinta e três anos, o príncipe converteu-se em governante de facto da Arábia Saudita e chefe de uma família cuja fortuna superava o trilião de dólares.

Não obstante, o futuro rei sabia que a riqueza do seu país era em grande parte uma miragem; que a sua família tinha esbanjado imenso dinheiro em palácios e quinquilharias; e que dali a vinte anos, quando se completasse a transição dos combustíveis fósseis para as fontes renováveis de energia, o petróleo do subsolo da Arábia Saudita valeria tão pouco como a areia que o cobria. Deixado à sua sorte, o Reino voltaria a ser o que tinha sido antes: um deserto habitado por nómadas em guerra permanente.

Para evitar esse futuro calamitoso para o seu país, resolveu arrastá-lo do século VII para o século XXI. Com ajuda de uma consultora americana, congeminou um plano económico que denominou em tom grandioso, O Caminho a Seguir. O plano idealizava uma economia moderna impelida pela inovação, pelo investimento estrangeiro e pela iniciativa privada. Os seus cidadãos mimados já não poderiam contar com empregos na administração pública e benesses vitalícias. Teriam de trabalhar para ganhar a vida e estudar outras coisas para além do Corão.

O príncipe herdeiro tinha consciência de que a força de trabalho daquela nova Arábia Saudita não podia ser composta unicamente por homens. As mulheres também seriam chamadas a participar, o que implicava que as amarras religiosas que as mantinham num estado praticamente de escravatura teriam de se afrouxar. Concedeu-lhes o direito de conduzir automóveis, há muito proibido, e permitiu que assistissem a eventos desportivos, onde estivessem homens presentes.

Não se conformou, no entanto, com essas pequenas reformas. Queria reformar a própria religião. Propôs fechar a conduta que enchia de dinheiro a expansão global do wahabismo, a versão puritana do Islão sunita imperante na Arábia Saudita, e dificultar o apoio privado dos seus cidadãos a grupos terroristas jihadistas como a Al-Qaeda e o ISIS. Quando um importante colunista do New York Times descreveu o perfil do jovem príncipe e das suas aspirações, os ulemás — o poder clerical saudita— fervilharam de raiva sagrada.

O príncipe herdeiro mandou prender uns quantos exaltados religiosos e, imprudentemente, também alguns moderados. Prendeu igualmente defensores da democracia e dos direitos das mulheres e qualquer um que cometesse a insensatez de o criticar. Inclusive mandou deter mais de uma centena de membros da família real e da elite empresarial saudita e encerrar o Hotel Ritz-Carlton. Aí, em quartos sem porta, foram submetidos a brutais interrogatórios, às vezes às mãos do próprio príncipe herdeiro. Todos foram libertados passado um tempo, mas só depois de entregarem ao todo mais de 100 000 milhões de dólares. O futuro rei alegou que esse dinheiro procedia de chantagens e subornos, e deu por terminada aquela forma de fazer negócios no Reino.

Exceto, claro está, no que respeitava ao futuro rei, que continuou a acumular riqueza a uma velocidade vertiginosa e a esbanjar rios de dinheiro. Comprava o que lhe apetecia ou simplesmente apropriava-se daquilo que não podia comprar. Quem se negava a ceder à sua vontade recebia um envelope que continha uma única bala de calibre 45.

O que deu lugar a uma reconsideração geral da opinião que se tinha dele. Sobretudo, no Ocidente. KBM era mesmo um reformista, perguntavam-se políticos e especialistas no Médio Oriente. Ou era só mais um xeque do deserto, ávido de poder, que prendia os opositores e enriquecia à custa do povo? Propunha-se mesmo modernizar a economia saudita? Retirar o apoio institucional da sua monarquia ao fanatismo e ao terrorismo islâmicos? Ou tentava apenas impressionar os meninos finos de Georgetown e Aspen?

Por motivos que Sarah era incapaz de explicar aos seus amigos e colegas do mundo das artes, inicialmente ela incluía-se entre o grupo dos céticos. Daí que se tivesse mostrado reticente quando Khalid pediu para a ver durante uma das suas visitas a Nova Iorque. Acabou por aceitar, mas só depois de consultar a divisão de Segurança de Langley, que a vigiava de longe.

Reuniram-se numa suíte do Hotel Four Seasons, sem escoltas, nem assistentes. Sarah lera os inúmeros artigos elogiosos que o Times tinha publicado sobre KBM e tinha visto fotografias suas envergando a túnica e o toucado tradicional dos sauditas. Todavia, de fato inglês feito à medida, apresentava um aspeto bem mais imponente: era eloquente, culto, sofisticado e transmitia segurança em si próprio e poder. E dinheiro, claro. Uma quantidade de dinheiro inimaginável. Pensava investir uma pequena parte da sua fortuna — explicou a Sarah — em adquirir uma coleção de pintura de primeira classe. E queria que ela fosse sua assessora.

— O que é que pensa fazer com os quadros?

— Pendurá-los num museu que vou construir em Riade. Será o Louvre do Médio Oriente — respondeu ele pomposamente.

— E quem visitará esse Louvre?

— Os mesmos que visitam o Louvre de Paris.

— Turistas?

— Sim, pois claro.

— Na Arábia Saudita?

— Porque não?

— Porque os únicos turistas que podem entrar no seu país são os peregrinos muçulmanos que visitam Meca e Medina.

— Por agora — respondeu ele com ênfase.

— Porquê eu?

— Não é a conservadora da coleção Nadia al-Bakari?

— A Nadia era uma reformista.

— Tal como eu.

— Lamento — respondeu Sarah. — Não me interessa.

Um homem como Khalid bin Mohammed não estava acostumado a que lhe dissessem que não. Perseguiu Sarah implacavelmente: com telefonemas, flores e presentes esplêndidos que ela nunca aceitava. Quando Sarah por fim deu o braço a torcer, fez questão de não receber remuneração pelo seu trabalho. Embora sentisse curiosidade pelo homem conhecido como KBM, o seu passado não lhe permitia aceitar nem um só real da Casa de Saud. Para além disso, pelo seu bem e pelo do príncipe, a sua relação seria estritamente confidencial.

— Como devo chamá-lo? — perguntou ela.

— Sua Alteza Real bastará.

— Experimente outra vez.

— Khalid está bem?

— Muito melhor.

Compraram expeditamente e sem restrições em leilões e vendas privadas: pintura do pós-guerra, impressionistas, antigos mestres… Não negociavam mal. Sarah dizia um preço e um dos acólitos de Khalid tratava do pagamento e dos preparativos da transferência. Saciaram a sua voracidade aquisitiva com a maior discrição possível e a cautela de dois espiões. Ainda assim, o mundo da arte não demorou a perceber que havia um novo agente entre eles, sobretudo depois de Khalid desembolsar a gritante quantia de quinhentos milhões de dólares pelo Salvator Mundi de Leonardo. Sarah aconselhou-o a não o fazer. Nenhum quadro, argumentou, salvo quiçá a Mona Lisa, valia tanto dinheiro.

Enquanto criava a coleção, passou muitas horas na companhia de Khalid, a sós. Ele falava-lhe dos seus planos para a Arábia Saudita, utilizando-a às vezes como caixa de ressonância. Pouco a pouco, o ceticismo de Sarah foi-se diluindo. Khalid, dizia-se, era um frasco imperfeito. Mas se era capaz de promover uma mudança autêntica e duradoura na Arábia Saudita, o Médio Oriente e o mundo islâmico em geral não voltariam a ser os mesmos.

Tudo isso mudou, no entanto, com Omar Nawwaf.

Nawwaf era um destacado jornalista e dissidente saudita que tinha pedido asilo em Berlim. Muito crítico com a Casa de Saud, sentia especial aversão a Khalid, que considerava um charlatão que se dedicava a sussurrar palavras ocas ao ouvido dos ocidentais crédulos, enquanto enchia os bolsos e prendia os seus opositores. Há dois meses, Nawwaf tinha sido brutalmente assassinado e esquartejado no consulado saudita em Istambul.

Enfurecida, Sarah Bancroft juntou-se a quem cortara relações com o promissor príncipe saudita que respondia às iniciais KBM.

— És como todos os outros — disse-lhe numa mensagem de voz. — E é verdade, Sua Alteza Real, espero que apodreças no inferno.

 

4

NOVA IORQUE

 

 

 

 

 

O primeiro anúncio ouviu-se poucos minutos depois das cinco da tarde. Num tom cortês, recordava aos visitantes que o museu fecharia em breve e convidava-os a dirigirem-se à saída. Às 17h25, já todos tinham obedecido, exceto uma senhora com um aspeto algo distraído que não se conseguia afastar de A Noite Estrelada de Van Gogh. Os seguranças fizeram-na sair amavelmente para a rua nesse fim de tarde e a seguir percorreram o museu, sala por sala, para se assegurarem de que não ficava lá dentro nenhum espertinho disposto a roubar um quadro.

Às 17h45 indicaram que estava tudo em ordem. A essa hora, a maioria do pessoal administrativo já tinha saído. Por conseguinte, ninguém presenciou a chegada à West Fifty-Third Street de uma comitiva de três SUV pretos com matrícula diplomática. Khalid, de fato de negócios e sobretudo escuro, saiu do segundo e, atravessando rapidamente o passeio, aproximou-se da entrada. Sarah, depois de hesitar um momento, deixou-o passar. Entreolharam-se na penumbra do vestíbulo antes de Khalid lhe estender a mão. Ela não a aceitou.

— Surpreende-me que te tenham deixado entrar no país. A verdade é que não nos deveríamos ver, Khalid.

Ele continuou com a mão estendida.

— Eu não matei matar o Omar Nawwaf — disse com calma. — Tens de acreditar em mim.

— Antes acreditava. Tal como muitas pessoas neste país. Gente importante. Gente inteligente. Acreditávamos que eras diferente, que ias mudar o teu país e o Médio Oriente. E enganaste-nos a todos.

Khalid retirou a mão.

— O que está feito, não pode ser desfeito, Sarah.

— Nesse caso, o que é que estás aqui a fazer?

— Julguei ter sido bem claro ao telefone.

— E eu julguei ter sido bem clara quando pedi para não voltares a ligar.

— Ah, sim, lembro-me disso. — Tirou o seu telemóvel do bolso do casaco e mostrou a última mensagem de Sarah.

E é verdade, Sua Alteza Real, espero que apodreças no inferno…

— Aposto que não fui a única que te deixou uma mensagem parecida.

Khalid voltou a guardar o telefone.

— Não, mas a tua magoou-me mais.

Aquilo espicaçou a curiosidade de Sarah.

— Porquê?

— Porque confiava em ti. E porque pensava que entendias a dificuldade que ia ser mudar o meu país sem o mergulhar no caos político e religioso.

— Isso não te dá o direito de assassinar uma pessoa só porque te criticou.

— Não é assim tão simples.

— Ah, não?

Ele não respondeu. Sarah percebeu que algo o apoquentava, algo mais do que a humilhação que a sua queda em desgraça lhe teria feito sentir.

— Posso vê-la?

— A coleção? Vieste mesmo por causa disso?

Khalid pareceu levemente ofendido.

— Sim, claro.

Sarah conduziu-o escadas acima até à ala Al-Bakari. O retrato de Nadia, pintado muito após a sua morte no deserto Rub’ al-Khālī da Arábia Saudita, estava pendurado à entrada.

— Ela é que era autêntica — afirmou Sarah. — Não uma farsante como tu.

Khalid olhou-a com fúria antes de erguer o olhar para o retrato. Nadia estava sentada no canto de um longo sofá, vestida de branco, com um colar de pérolas à volta do pescoço e os dedos cheios de ouro e diamantes. Por cima do seu ombro, a esfera de um relógio brilhava como a lua. Havia orquídeas junto dos seus pés descalços. O estilo era uma hábil mistura de pintura clássica e contemporânea. O desenho e a composição, impecáveis.

Khalid deu um passo para o retrato e observou o canto inferior direito da tela.

— Não tem assinatura.

— O artista nunca assina as suas obras.

Ele apontou para a placa informativa colocada junto ao quadro.

— Também aqui não aparece o nome.

— Desejava permanecer no anonimato para não ofuscar a retratada.

— É famoso?

— Em certos círculos.

— Conhece-lo?

— Sim, claro.

Khalid voltou a observar o quadro.

— Posou para ele?

— A verdade é que a pintou de memória.

— Nem sequer usou uma fotografia?

Sarah negou com a cabeça.

— Extraordinário! Devia admirá-la muito para pintar algo tão bonito. Infelizmente, não tive o prazer de a conhecer. Era muito famosa, em jovem.

— Mudou muito após a morte do pai.

— O Zizi al-Bakari não morreu. Foi assassinado a sangue frio no Porto Velho de Cannes por um pistoleiro chamado Gabriel Allon. — Khalid olhou-a nos olhos um instante antes de entrar na primeira das quatro salas dedicadas ao impressionismo. Aproximou-se de um Renoir e contemplou-o com inveja. — Estes quadros deveriam estar em Riade.

— A Nadia confiou-os de maneira permanente ao MoMA e nomeou-me a mim conservadora da coleção. Vão ficar onde estão.

— Talvez permitas que os compre.

— Não estão à venda.

— Tudo está à venda, Sarah.

Sorriu fugazmente. Sarah notou que lhe custava. Khalid parou à frente do quadro seguinte, uma paisagem de Monet. Depois, passeou o olhar pela sala.

— Nenhum Van Gogh?

— Não.

— Que estranho, não achas?

— O quê?

— Que uma coleção como esta tenha essa carência tão evidente.

— É difícil conseguir um Van Gogh.

— Não é isso que as minhas fontes me dizem. De facto, sei de fonte segura que o Zizi foi proprietário durante um tempo de um Van Gogh pouco conhecido intitulado Marguerite Gachet no seu toucador. Comprou-o a uma galeria de Londres. — Observou Sarah atentamente. — Queres que continue?

Ela não disse nada.

— A galeria é propriedade de um tal Julian Isherwood. No momento da venda trabalhava lá uma americana. Ao que parece, o Zizi simpatizou com ela. Convidou-a para o acompanhar no seu cruzeiro anual de inverno pelas Caraíbas. O seu iate era bem mais pequeno do que o meu. Chamava-se…

Alexandra — interrompeu-o Sarah, e, logo de seguida, perguntou: — Desde quando é que sabes disso?

— Que a minha assessora artística é uma agente da CIA?

Era. Já não trabalho para a Agência. Nem para ti.

— E o que é que me dizes dos israelitas? — perguntou Khalid com um sorriso. — Achas mesmo que teria permitido que te aproximasses de mim sem me informar primeiro sobre os teus antecedentes?

— E ainda assim fizeste questão de me perseguir.

— Efetivamente, assim foi.

— Porquê?

— Porque sabia que um dia me poderias ajudar, e não só com a minha coleção de arte. — Passou junto dela e parou à frente do retrato de Nadia. — Sabes como entrar em contacto com ele?

— Com quem?

— Com o homem que pintou este quadro sem que uma só fotografia guiasse a sua mão. — Assinalou o canto inferior direito da tela. — E cujo nome deveria figurar aqui.

— És o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Para que é que precisas de mim para entrares em contacto com o chefe do serviço de espionagem israelita?

— A minha filha — respondeu Khalid. — Alguém levou a minha filha.