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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2000 Candace Camp. Todos os direitos reservados.

UN VÉU DE MISTÉRIO, N.º 175 - Fevereiro 2013

Título original: A Stolen Heart

Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá

Publicado em português em 2009

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2549-9

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Prólogo

 

Paris, 1789

 

Lady Chilton afastou as cortinas da janela do quarto e espreitou para a escuridão da noite. Tremeu ao ver o brilho das tochas ao longe. Era o povo. Tinha a certeza disso. Ouvira o alarido no dia anterior, vira-os a avançarem pelas ruas como uma besta enorme e amorfa ávida de sangue.

Afastou-se da janela, entrelaçando as mãos nervosamente. Emerson, o seu marido, estava convencido de que a sua família não corria nenhum perigo, mas Simone tinha as suas dúvidas. Ao fim e ao cabo, ela era francesa e pertencia à aristocracia que o povo decidira aniquilar. O facto de estar casada com um inglês não era nenhuma garantia.

Simone pensou nas crianças. O que aconteceria às crianças se os sans-culottes fossem à casa?

Por um instante, permaneceu de pé, indecisa. Era uma mulher muito bonita, com grandes olhos castanhos e cabelo preto e lustroso. No entanto, a sua fina tez estava pálida como a cal e tinha os olhos esbugalhados devido ao medo.

Finalmente, com um leve soluço, Simone aproximou-se da cómoda e tirou a caixa de jóias. Depois, tirou rapidamente o conteúdo e guardou-o num saco de veludo.

A sua amiga era de confiança. Ao fim e ao cabo, ia confiar-lhe o bem-estar dos seus próprios filhos. Mais tarde, se sobrevivesse, Simone voltaria a encontrar-se com eles.

Abriu o fundo falso da caixa de jóias e tirou três pequenos objectos. Embora possuíssem um valor relativo, para ela eram os mais importantes, pois pertenciam aos seus filhos. Eram dois medalhões com retratos em miniatura dela e de Emerson. A condessa oferecera-os às meninas nos Natais do ano anterior. O terceiro objecto era um anel enorme de desenho estranho, preso a um fio de ouro. Tinha centenas de anos, pois era o anel dos condes de Exmoor. Só os herdeiros ao título podiam usá-lo. Agora pertencia a Emerson, embora ele não costumasse usá-lo. Algum dia, passaria para o seu filho.

Simone dirigiu-se para a secretária, tirou a pena do tinteiro e começou a escrever um bilhete. Nunca tivera muito jeito para redigir cartas e o bilhete ficou estranho e quase ilegível. Mesmo assim, serviria para que o conde e a condessa soubessem o que acontecera. Depois de acabar, pô-la no saco com as jóias.

Simone saiu do quarto e desceu até ao quarto das crianças. No andar de baixo, conseguiu ouvir a voz de Emerson, impaciente enquanto tentava explicar aos seus sogros porque deviam abandonar Paris o mais depressa possível. Simone abanou a cabeça. Os seus pais ainda pareciam incapazes de reagir face ao cataclismo que virara o seu mundo ao contrário. Paralisados pelo medo, limitavam-se a manter uma atitude passiva e a recusar-se a aceitar. Mas Simone e Emerson não podiam deixá-los para trás. Na verdade, era por isso que ainda lá estavam. Mas Simone recusava-se a permitir que os seus filhos morressem por culpa da teimosia dos seus pais.

Era por isso que tencionava enviar as crianças para longe. Confiaria as suas vidas à sua amiga mais querida, que se iria embora para a segurança de Inglaterra no dia seguinte. As jóias serviriam para cobrir os gastos, se fosse necessário. Mais tarde, se ela não conseguisse sobreviver, essas jóias seriam, pelo menos, o último presente que pudera dar aos seus filhos.

Simone limpou as lágrimas. Não queria que as crianças a vissem chorar, de modo que esboçou um sorriso antes de entrar no quarto. A ama já estava a deitá-las, mas Simone indicou-lhe que se retirasse, anunciando que ela própria se encarregaria de as pôr na cama.

Ao observá-las, sentiu um nó na garganta. O mais velho era John, de sete anos, um menino robusto e moreno de sorriso travesso e encanto natural irresistível. Simone inclinou-se para lhe beijar a testa e, depois, aproximou-se de Marie Anne, a do meio. Marie Anne tinha os olhos azuis e inocentes do seu pai e um cabelo ruivo que, ao princípio, surpreendera os seus pais, visto que Emerson era loiro e Simone tinha o cabelo preto. Mas a condessa explicara que era habitual que, entre os Montford, nascesse alguém ruivo de vez em quando.

Simone teve de engolir em seco à medida que se aproximava de Alexandra, a mais nova. Com os seus dois aninhos, era uma delícia. Alegre e gordinha, estava sempre a rir-se ou a balbuciar. Era igual a Simone quando tinha aquela idade, com os seus caracóis pretos, os seus olhos castanhos vivazes e os seus risinhos contagiantes. Simone pegou em Alexandra ao colo e apertou-a contra ela. Depois, sentou-se no chão com o resto das crianças.

– Venho para vos dizer que vão de viagem – explicou animadamente, esperando não revelar a sua inquietação. – Irão a Inglaterra ver o avô e a avó.

Falou-lhes da sua amiga, que eles conheciam e de quem gostavam, e explicou-lhes que Emerson e ela iriam ter com eles mais tarde. Ainda que, normalmente, falasse com as crianças em francês, dessa vez, fê-lo em inglês.

– Deverão falar apenas em inglês – avisou, – e não em francês, porque se farão passar por filhos deles. Não vos parece divertido?

John olhou para ela solenemente.

– É por causa do povo, não é?

– Sim – admitiu Simone. – É por isso que vão com ela. É menos perigoso. Cuida das meninas, John, e certifica-te de que não se metem em problemas. Não as deixes falar em francês, nem sequer quando estiverem sozinhos. Posso confiar em ti?

– Cuidarei delas – assentiu o pequeno.

– Ainda bem. És o meu homenzinho. Agora, dar-vos-ei algumas coisas que terão de levar. Nunca as tirem.

Simone pôs o fio com o anel a John, introduzindo-o por baixo da camisa para que não se visse. Depois, fez o mesmo com as meninas, escondendo os medalhões sob a gola dos seus vestidos. As crianças tinham as suas roupas mais simples vestidas, as que costumavam usar para brincar. Era o melhor que podia fazer, disse Simone para si, para esconder as suas origens aristocráticas. Rapidamente, pôs mais algumas roupas nas suas pequenas capas e atou-as para que formassem trouxas.

– Agora temos de descer as escadas sem fazer barulho – declarou.

– Podemos despedir-nos do papá? – perguntou Marie Anne, com uma expressão angustiada.

– Não, está a falar com os avós. Não podemos incomodá-los.

Simone sabia que Emerson ficaria furioso com ela, mas era melhor assim. O seu marido poderia proibir aquela viagem, pensando que as crianças estariam mais seguras ao seu lado.

– Agora, crianças, agarrem nas trouxas e não se afastem de mim, aconteça o que acontecer. Seremos silenciosos.

John e Marie Anne assentiram, embora Simone percebesse a incerteza das suas expressões. Saíram em silêncio do quarto e desceram as escadas em bicos de pés. Simone conduziu-os para a porta lateral da casa. Uma vez lá, fez uma pausa com a mão na maçaneta e respirou fundo. John e Marie Anne permaneciam agarrados à sua saia.

Finalmente, Simone abriu a porta e perdeu-se na noite com os seus filhos.

Um

 

Londres, 1811

 

Alexandra Ward olhou de soslaio para o homem que estava com ela na carruagem. Parecia prestes a desmaiar. Tinha a cara branca como a cal e o lábio superior cheio de suor.

– Não se preocupe, senhor Jones – replicou num tom agradável, tentando acalmar os seus receios. – Tenho a certeza de que o seu patrão nos receberá de bom grado.

Lyman Jones fechou os olhos e emitiu um leve gemido.

– A menina não conhece lorde Thorpe. É um homem muito... muito reservado.

– Como a grande maioria... Mas isso não quer dizer que sejam maus empresários. Não vejo porque não havia de estar interessado em reunir-se com alguém que acabou de assinar um contrato excelente para enviar o chá da sua empresa para a América.

Na verdade, Alexandra surpreendia-se por Thorpe não ter ido ao seu escritório para a conhecer e assinar o contrato pessoalmente naquela mesma manhã. Thorpe não assistira a nenhuma das reuniões de Alexandra com Lyman Jones, o seu agente.

– Não... não sei como vocês fazem as coisas na América, menina Ward – replicou Jones, cuidadosamente. – Mas, aqui, os cavalheiros não costumam participar activamente em assuntos de negócios.

– Refere-se aos membros da nobreza?

– Sim – Lyman Jones achara muito difícil lidar com a menina Ward enquanto as negociações duraram. Parecia-lhe estranho falar de negócios com uma mulher... Sobretudo, com uma mulher como Alexandra Ward. Corpo escultural, cabelo preto e esplêndido, olhos castanhos expressivos e tez suave como o veludo.

– Receio que não esteja habituada a tais distinções – admitiu Alexandra. – Nos Estados Unidos, um cavalheiro mede-se mais pelos seus actos do que pela sua origem – depois de uma pausa, acrescentou com curiosidade: – Esse Thorpe é um cabeça-de-vento? Suponho que a sua fortuna será herdada. Mesmo assim, pergunto-me como terá conseguido conservá-la.

– Oh, não, menina! – protestou Jones. – Eu não disse que o senhor não se preocupa com os seus negócios. Simplesmente, não é bem visto que um cavalheiro se ocupe do... bom, do dia-a-dia dos seus assuntos financeiros.

– Entendo. Trata-se de uma questão de aparência, então.

– Suponho que sim. Mas lorde Thorpe é um empresário excelente. Na verdade, ganhou grande parte da sua fortuna sozinho, na Índia.

– Ah... – os olhos de Alexandra brilharam com interesse. – Por isso tenho tanta vontade de o conhecer pessoalmente. A sua colecção de tesouros hindus é célebre e eu adoro esse tipo de coisas. Até escrevi algumas cartas ao senhor Thorpe... quer dizer, a lorde Thorpe, sobre esse assunto.

Alexandra achou prudente não mencionar que pedira permissão a lorde Thorpe para ver a sua colecção quando estivera em Inglaterra, naquele mesmo ano, e ele se recusara. Na verdade, esse fora um dos motivos que a tinham impulsionado a escolher a Companhia de Chá Burchings para negociar o contrato. A companhia tinha uma reputação excelente, é claro. Alexandra nunca teria tomado uma má decisão financeira simplesmente para satisfazer um capricho pessoal. No entanto, descobrir que o dono da Burchings era Thorpe, cuja colecção tanto desejava ver, constituíra um bónus agradável.

– Dizem que essa colecção é impressionante – indicou Jones. – Embora eu nunca a tenha visto, certamente.

– Nunca? – Alexandra olhou para ele, surpreendida.

– Não. Às vezes, levei documentos a casa do senhor e vi alguns objectos no hall. Mas, normalmente, lorde Thorpe prefere ir para o escritório para falar dos seus negócios.

O carro parou à frente de um edifício impressionante de pedra branca. Lyman Jones espreitou pela janela.

– Já chegámos – indicou, num tom de voz nervoso. Depois, virou-se para Alexandra, lançando-lhe um olhar quase suplicante. – De certeza que quer seguir em frente com isto, menina Ward? Lorde Thorpe não gosta de visitas. É provável que se recuse a receber-nos ou que nos repreenda.

– Calma, senhor Jones – replicou Alexandra, tentando dar-lhe um pouco de coragem. – Garanto-lhe que lidei com mais do que um velho resmungão. E, normalmente, costumo lidar bastante bem com eles.

– Mas ele não é nenhum...

– Seja o que for, tenho a certeza de que conseguirei lidar com ele. Se se zangar, dir-lhe-ei que a culpa foi toda minha.

Com resignação, Jones abriu a porta e saiu da carruagem. Depois, virou-se para ajudar Alexandra. Respirando fundo, bateu duas vezes à porta da casa.

Um instante depois, um criado foi abri-la. Olhou para Jones e, depois, para Alexandra, antes de se afastar com desinteresse para os deixar entrar.

– Venho ver lorde Thorpe – anunciou Lyman.

– Aguardem aqui – pediu o criado laconicamente antes de se retirar, deixando-os no hall.

Alexandra olhou à sua volta. Por baixo dos seus pés, o chão de madeira estava coberto por um tapete grosso cor de vinho no qual aparecia representada uma cena de caça, onde um homem com turbante atirava uma lança a um tigre. Na parede, via-se uma máscara de elefante de prata e, por baixo, um baú de madeira em cuja tampa aparecia uma cena de jardim esculpida, com duas donzelas hindus de pé entre as árvores lânguidas.

Alexandra baixou-se para observar o baú de perto e ouviu um som suave de passos a aproximar-se. Levantou a cabeça e quase não conseguiu reprimir um grito de prazer. O homem que acompanhava o criado tinha a tez acobreada e olhos pretos enormes. Estava vestido de branco desde o turbante até aos sapatos de sola mole. Enquanto Alexandra o observava fascinada, ele juntou as mãos à altura do peito e fez uma reverência educada.

– Senhor Jones? – perguntou, com um sotaque suave. – Lorde Thorpe esperava-o hoje? Lamento muito. Não tinha conhecimento da sua visita.

– Não, eu... – Lyman Jones falara muitas vezes com o mordomo de lorde Thorpe, mas a experiência era sempre enervante. – Trata-se de uma visita inesperada. Esperava apresentar o senhor à menina Ward. Naturalmente, se viemos num momento pouco propício, podemos...

Os olhos do mordomo desviaram-se para Alexandra. Ela, ao ver que Jones estragaria tudo, tomou as rédeas da situação, como costumava fazer sempre.

– Sou Alexandra Ward, senhor...

– O meu nome é Punwati, menina.

– Senhor Punwati. Fiz alguns negócios com a Companhia de Chá Burchings e esperava conhecer lorde Thorpe, aproveitando a minha estadia em Londres. Espero que não seja um incómodo excessivo.

– De certeza que lorde Thorpe estará muito interessado, menina Ward – respondeu o mordomo, inclinando-se levemente. – Dir-lhe-ei que está aqui e verei se tenciona receber visitas esta tarde.

– Obrigada – Alexandra recompensou-o com um sorriso que deslumbrara mais do que um homem.

Quando Punwati se retirou, tão silenciosamente como chegara, Jones sorriu, um pouco incomodado.

– Já lhe disse que lorde Thorpe é... diferente. Os seus criados são um pouco estranhos. O mordomo, como viu, é estrangeiro. Peço-lhe desculpas se se... eh, surpreendeu.

Alexandra ficou a olhar para ele, confusa.

– Mas de que fala? Não precisa de se desculpar. Isto é maravilhoso! Nunca tinha conhecido ninguém da Índia. Queria perguntar-lhe milhares de coisas, ainda que saiba que seria uma descortesia. E reparou naquela máscara tão magnífica? Olhe para o tapete. E o baú!

Os olhos de Alexandra brilhavam de entusiasmo. Observando-a, Jones disse para si que era ainda mais atraente do que pensara. Perguntou-se se a sua beleza acalmaria lorde Thorpe, um dos solteiros mais cobiçados de Londres.

– Ah... Senhor Jones... Punwati diz-me que trouxe uma visita consigo.

Jones deu um salto.

– Lorde Thorpe!

Alexandra, que estava junto do cofre, endireitou-se e virou-se para a voz. Quase ficou boquiaberta. Imaginara lorde Thorpe como um velho, solitário e provavelmente excêntrico. Mas o homem que estava no extremo oposto do hall devia ter cerca de trinta e muitos anos. Era alto, de ombros largos, com pernas compridas e musculadas. Vestia uma roupa elegante, mas sóbria. Avançou para eles e Alexandra reparou que lorde Thorpe não só era jovem, como também bonito. Tinha o cabelo castanho-escuro, maçãs do rosto altas, nariz aquilino e o queixo quadrado. A aparente dureza dos seus traços ficava mitigada pela sensualidade dos seus lábios carnudos. Os seus olhos eram grandes e inteligentes, rodeados por pestanas espessas e escuras.

– Lamento muito, senhor – começou a dizer Jones, assustado. – Sei que não devíamos ter vindo sem avisar, mas... pensei que quereria conhecer a menina Ward.

– Não imagino porquê – replicou lorde Thorpe arrastando as palavras, num tom repleto de sarcasmo.

– Por favor, lorde Thorpe, a culpa não foi do senhor Jones, mas minha – declarou Alexandra, rapidamente. – Ele não desejava trazer-me para sua casa, mas eu insisti.

– A sério? – Thorpe arqueou uma sobrancelha, num gesto de desdém educado que teria intimidado mais do que uma pessoa.

Alexandra mal reparou nisso. Estava mais concentrada na cor dos seus olhos, de um cinzento tão suave, que quase pareciam prateados, e no tremor que, de repente, começou a sentir nos joelhos.

– Sim. Bom, eu gosto de conhecer as pessoas com quem faço negócios.

– Negócios? – Thorpe mostrou-se sinceramente perplexo e virou-se para o seu empregado. – Não compreendo.

– Esta semana, negociei um contrato com a menina Ward – explicou Jones. – Acho que o mencionei. Com a Transportes Marítimos Ward, para levar o chá de Burchings para os Estados Unidos.

Thorpe olhou para Alexandra com uma expressão neutra.

– Trabalha na Transportes Marítimos Ward?

– Hum... A empresa pertence à minha família. E, ao contrário de si, eu prefiro participar activamente nos meus negócios.

– De modo que não aprova a minha forma de gerir os meus.

– Bom, é o seu negócio e pode fazer o que quiser com ele.

– Muito amável da sua parte – Thorpe fez uma leve reverência.

Alexandra lançou-lhe um olhar cheio de frieza e prosseguiu.

– No entanto, sempre pensei que os negócios correm melhor se os seus donos tiverem um papel activo neles. A menos, é claro, que o dono não esteja capacitado para isso – acrescentou, ao mesmo tempo que olhava para Thorpe com um ar de desafio.

Para sua surpresa, lorde Thorpe desatou a rir-se.

– Está a sugerir que eu não estou capacitado para gerir os meus negócios?

Lyman Jones deixou escapar um gemido e fechou os olhos.

– O senhor Jones sabe que valorizo a minha privacidade – prosseguiu Thorpe. – Não costumo deixar que todas as pessoas que fazem negócios com a minha empresa apareçam na minha casa.

– Hum... Sim, estou a ver que pensa que é superior ao resto dos humanos.

– Peço-lhe desculpa – replicou Thorpe, olhando para ela fixamente. Cada comentário daquela mulher era mais revoltante do que o anterior.

– Normalmente, dita qualidade não torna a pessoa agradável – declarou Alexandra, sem disfarces. – Mas isso não é da minha incumbência, certamente. O que quero saber é como é que a sua atitude influencia a sua companhia.

– Ah, sim, Burchings. Por um instante, pensei que começávamos a afastar-nos do assunto principal. Certamente, será uma honra para mim conhecer a sua opinião sobre a minha empresa.

– Vejo que está a ser sarcástico – replicou Alexandra. – Mas devo dizer-lhe que há quem valorize a minha opinião em questões de negócios.

– As pessoas dos Estados Unidos devem ser muito diferentes.

– Sim, são. Acho que lá valorizamos mais a honestidade.

– O descaramento, diria eu. Ou a falta de tacto.

– Na minha opinião, o «tacto» não é um elemento valioso para fazer negócios. Prefiro saber onde piso. O senhor, pelo contrário, prefere permanecer às escuras?

Por um instante, lorde Thorpe limitou-se simplesmente a olhar para ela. Depois, abanou a cabeça e emitiu um risinho.

– Deixa-me sem fala, minha querida menina Ward. Faz sempre negócios assim? Surpreende-me que tenha clientes.

Alexandra retribuiu o sorriso.

– Não – respondeu, com sinceridade. – O senhor tira-me especialmente do sério. Como mulher dedicada aos negócios, às vezes, tenho de perder muito tempo a discutir com os homens para que me aceitem em igualdade de condições.

– Em igualdade de condições? – os lábios de Thorpe curvaram-se. – Acho que isso seria pouco para si. Intuo que prefere uma submissão total à sua pessoa.

– Oh, não! – apressou-se a responder Alexandra. – Ao contrário de outras pessoas, não tenho inclinação alguma para a arrogância.

– Percebo a indirecta – murmurou Thorpe. Pensou que o propósito da visita daquela americana estranha já estava cumprido e que o encontro devia acabar. Mas, estranhamente, resistia a despedir-se dela. Não sabia se a menina Ward o irritava mais do que o excitava, mas desejava continuar a desfrutar da sua companhia.

– Agora que nos conhecemos, menina Ward, aceita beber uma chávena de chá comigo? – depois, virando-se para o atónito Jones, acrescentou: – Também está convidado, Jones... a não ser, claro, que tenha assuntos mais prementes no escritório.

– Oh, não, senhor! – exclamou Jones, corando de prazer face ao convite do seu chefe. – Quero dizer que tenho muito para fazer. No escritório há sempre trabalho. Mas acho que conseguirão sobreviver sem mim durante uma hora ou duas. Agradeço-lhe muito esta honra. Se tiver a certeza, claro...

– Naturalmente – replicou Alexandra, firmemente. – Aposto que lorde Thorpe tem sempre a certeza de tudo o que faz – virou-se para Thorpe. – Obrigada, senhor. Eu adorarei beber esse chá.

Thorpe tocou a campainha para avisar o mordomo e pediu que se servisse o chá na sala azul. Depois, acompanhou os seus convidados por um corredor longo até uma sala espaçosa, cujas paredes estavam decoradas com papel azul e branco. Alexandra dirigiu-se para uma série de quadros pequenos e coloridos.

– São Rajput? – inquiriu, referindo-se às ilustrações manuscritas de epopeias hindus que tinham florescido na Índia em tempos remotos.

Jones pareceu perplexo e Thorpe arqueou as sobrancelhas, surpreendido.

– Sim, comecei a coleccioná-los enquanto vivia na Índia. Conhece a arte hindu?

– Vi muito pouco – confessou Alexandra, – mas interessa-me muitíssimo – enquanto observava atentamente as pinturas, não sentiu o olhar de Thorpe sobre ela. Depois, ao virar-se e surpreendê-lo a olhar para ela, corou. Havia alguma coisa nos seus olhos que, repentinamente, a encheu de calor por dentro. Alexandra olhou para outro lado, procurando alguma coisa para dizer para disfarçar a sua reacção.

– Eu... comprei alguns objectos. Um pequeno Buda de jade, algumas esculturas de marfim e um xaile de caxemira, é claro. Mas nos Estados Unidos não abundam os produtos hindus.

– Gostaria de ver a minha colecção depois do chá?

O rosto de Alexandra iluminou-se, fazendo com que Thorpe sustivesse a respiração.

– Oh, sim, não há nada que eu gostasse mais de fazer – Alexandra sentou-se enquanto o mordomo entrava com o chá e depositava a bandeja na mesa, mas continuou a falar com entusiasmo. – Tenho de lhe confessar uma coisa. Essa foi uma das razões pelas quais convenci o senhor Jones a trazer-me aqui hoje. Esperava poder dar uma olhadela a algum dos seus tesouros hindus. Ouvi falar tanto da sua colecção...

– A sério? – Thorpe estudou Alexandra. Nunca conhecera nenhuma mulher que se mostrasse tão entusiasmada com os seus objectos hindus.

– Oh, sim! Na verdade, escrevi-lhe há alguns meses, quando descobri que viria para Londres. Pedi-lhe para me deixar ver a sua colecção, mas recusou-se.

– Sim? Que desconsiderado da minha parte – Thorpe franziu o sobrolho. – Mas não lembro de ter... Um instante, sim, recebi uma carta de um tipo dos Estados Unidos. Mas não se chamava Alexander Ward?

– Alexandra. As pessoas costumam cometer esse erro. Estranham que uma mulher se interesse pelos objectos artísticos.

– E mais que escreva cartas a desconhecidos com a intenção de marcar um encontro.

– E o que queria que fizesse? – inquiriu Alexandra, com os seus olhos castanhos furiosos. – Que pedisse ao meu tio ou ao meu primo para escreverem por mim, como se eu fosse incapaz de redigir uma carta com um mínimo de coerência?

– Não se trata da sua capacidade, menina Ward. Uma mulher tem de ter cuidado. Proteger-se...

– Proteger-se de quê? Da rudeza de uma carta como a que me enviou, recusando-se a receber-me? – Alexandra emitiu um risinho. – Tive uma desilusão, certamente, mas não corri para a cama cheia de pena e desespero. Já me recusaram coisas antes, garanto-lho.

– Isso é difícil de acreditar – indicou Thorpe, sorrindo. – Por favor, permita-me compensar a minha rudeza mostrando-lhe tudo aquilo que desejar ver.

Continuaram a conversar um pouco, enquanto bebiam o chá acompanhado de bolos. Finalmente, Jones regressou ao seu escritório, depois de Thorpe lhe ter assegurado que ele próprio se encarregaria de levar a menina Ward a casa na sua própria carruagem.

– Sabe? – perguntou Thorpe, enquanto oferecia o braço a Alexandra para lhe mostrar a colecção. – O facto de ficar e de percorrer estas divisões a sós comigo não é um comportamento recomendável para uma jovem senhora.

– Não? – Alexandra esbugalhou os olhos, com um ar de inocência fingida. – Tem o costume de atacar as jovens indefesas que visitam a sua casa?

– É claro que não. Embora eu não pense que é indefesa.

– Então, não tenho nada a recear, pois não? O senhor, que é um cavalheiro preocupado com o bem-estar das mulheres, quererá, sem dúvida, proteger-me.

– Tem uma língua de víbora, minha querida menina Ward.

– Oh, o que é que disse, senhor?

Lançou-lhe um olhar carregado de ironia e, depois, virou-se para uma das divisões, arrastando-a consigo. Depois, segurando-a pelos antebraços, olhou para ela directamente nos olhos, tão perto que o seu rosto encheu todo o campo de visão de Alexandra. Ela sentiu que os olhos brilhantes e prateados dele perfuravam os dela, sentiu o calor do seu corpo e a força das suas mãos.

– Sabes? – perguntou Thorpe, tratando-a por tu. – Às vezes, até um cavalheiro pode perder o controlo à frente de uma jovem bonita.

Alexandra teve o pressentimento disparatado de que ia beijá-la ali mesmo e compreendeu, assustada, que tal ideia lhe produzia mais excitação do que medo.

– Mas tenho a certeza de que nunca perde o controlo – replicou, incomodada com o tremor que ouviu na sua própria voz.

– Não cometa a burrice de pensar tal coisa. Se falasse com as senhoras de Londres, saberia que me consideram capaz de fazer tudo. Eu, minha ingénua menina Ward, sou a ovelha negra da família. Não posso ser deixado a sós com as raparigas.

– É uma sorte que eu não seja uma rapariga inglesa, mas uma mulher americana que aprendeu há muito tempo a rejeitar os cuidados não desejados, não lhe parece?

– Certamente – Thorpe aproximou-se mais. – E, diga-me, os meus cuidados seriam não desejados?

Alexandra respirou fundo, sentindo que o seu coração acelerava. Era-lhe difícil pensar com os olhos de Thorpe fixos nos dela.

– Não – respondeu ofegante, enquanto se apertava contra ele.

Dois

 

– Não! – repetiu Alexandra, horrorizada pelo que estivera prestes a fazer. Afastou-se de lorde Thorpe, entrando na divisão enquanto tentava acalmar-se. – Que... que tolices está a dizer?

Ele seguiu-a, mas não voltou a tocar nela, como ela temera. Alexandra olhou para a divisão. A julgar pela secretária e pelas estantes repletas de livros, identificou-a como o escritório de lorde Thorpe. Numa das paredes, via-se um revólver e uma espada. Mais à frente, no canto, descansava uma estranha armadura de cota de malha com placas metálicas e o pescoço rodeado de uma faixa de veludo vermelho.

– É uma armadura hindu? – inquiriu Alexandra com um interesse sincero, aproximando-se para a examinar. Tentou não pensar na sensação que as mãos de lorde Thorpe tinham produzido na sua pele.

– Sim. Pertenceu a um oficial do século passado – explicou ele com calma, como se não tivesse acontecido nada. – O revólver foi-me oferecido por um rajá.

– A sério?

Lorde Thorpe assentiu.

– Casualmente, acompanhava-o numa caçada e matei um tigre que quase o devorou. Deu-me o revólver e algumas bagatelas em sinal de gratidão. Na verdade, as bagatelas eram safiras e rubis.

– Está a gozar comigo.

– Não. Vendi as jóias e comprei o meu primeiro terreno.

– Uma plantação de chá?

Thorpe assentiu, surpreendido por estar a falar-lhe dos seus primeiros anos na Índia. Pouca gente sabia das suas experiências naquele país.

– Continuei a investir em mais terrenos, até que, finalmente, adquiri uma propriedade que ligava o resto da minha plantação ao mar. Tinha uma linda praia de areia branca. Um dia, a passear, encontrei uma pedra redonda. Ao apanhá-la, vi que não era como o resto das pedras. Era um rubi em bruto.

– E estava ali, na areia? – perguntou Alexandra, estupefacta.

– Sim. Foi a maior surpresa da minha vida – Thorpe sorriu, recordando o calor do sol sobre os seus ombros, o rumor do fluxo, os batimentos acelerados do seu coração enquanto observava a pedra. – Na praia, havia uma nervura. Comecei a explorá-la e, desse modo, a plantação de chá ficou em segundo plano no meu negócio.

– Portanto, possui uma mina de rubis?

– Eram safiras, na sua maioria. Mas vendi-a antes de regressar a Inglaterra. Conservei a plantação porque tinha um bom supervisor. A mina, pelo contrário... Bom, penso, tal como a menina, que os negócios não podem ser bem geridos se não se participar pessoalmente neles.

– Teve uma vida muito excitante – com razão, disse Alexandra para si, estava rodeado por aquela aura de perigo.

Thorpe encolheu os ombros.

– Na verdade, não me pareceu tão excitante naquele tempo – aproximou-se do cofre e, depois de o abrir, extraiu dois embrulhos de tecido fino. Depois, pô-los em cima da mesa e abriu o primeiro. Sobre o veludo descansava um colar com fileiras de diamantes e sete peças independentes de ouro.

– É lindo. Parece muito antigo – Alexandra inclinou-se para o ver de perto.

– Sim. Chama-se satratana. Cada uma das peças representa um planeta no sistema astrológico hindu.

– Fascinante... – murmurou ela. – É uma obra de arte linda.

Thorpe desdobrou o outro embrulho, mostrando um colar incrível de safiras e diamantes, com um medalhão no meio.

– São da sua mina? – inquiriu Alexandra.

Thorpe reprimiu um sorriso. As mulheres que tinham visto o colar com antecedência tinham reagido de forma diferente, querendo pô-lo no pescoço. Mas supôs que não devia surpreender-se por uma mulher como a menina Ward mostrar mais interesse na origem das jóias.

– Sim.

– Um presente para a sua esposa, talvez?

– Não sou casado. Nem tenciono oferecer este colar a ninguém – respondeu ele, com aspereza. – Acha que, se fosse casado, me teria insinuado a si na minha própria casa? Deve considerar-me um ser muito rasteiro.

Alexandra encolheu os ombros.

– Não o conheço, senhor. Pensei que, se fosse um desses homens capazes de se aproveitarem de uma mulher sozinha, o facto de estar casado não o limitaria. Não me parece que seja assim, certamente, embora não possa dizê-lo com certeza.

Ele fez uma careta.

– Hum... – murmurou, enquanto devolvia as jóias ao cofre. – Nunca morde a língua, eh?

– Tento não o fazer. E o rubi original? – perguntou Alexandra, mudando de assunto. – Ainda o tem?

– Sim. Gostaria de o ver?

– Muito. Se não se importar de mo mostrar, claro.

Thorpe procurou de novo no cofre e tirou um pequeno saco. Depois, abriu-o para extrair o rubi em bruto.

– Receio que não seja tão impressionante como o colar. Não está cortado. Deixei-o tal como estava.

Ela esboçou um sorriso de aprovação.

– Eu teria feito o mesmo.

Thorpe passou-lhe o rubi e Alexandra segurou-o na palma da mão, observando-o de ângulos diferentes. Finalmente, devolveu-lho e ele voltou a guardá-lo na caixa. Depois, virou-se para ela. Normalmente, não costumava mostrar às visitas mais do que já tinham visto e, às vezes, nem sequer isso. Mas sentiu o súbito desejo de continuar a mostrar mais coisas a Alexandra. Segurou no seu braço.

– Acompanhe-me ao andar de cima. Mostrar-lhe-ei a sala hindu.

Subiram pela escada larga e sinuosa até ao andar de cima. Thorpe acompanhou-a para o interior de uma divisão e ela emitiu um suspiro de prazer. Toda a sala era dedicada à Índia. No chão estendia-se um tapete cor de vinho. Nas paredes, junto de outra espada, havia vários retratos realistas de homens com roupa hindu. Uma mesinha baixa de madeira lavrada, um cofre de bronze, e vários pedestais e estantes continham ainda mais tesouros. Alexandra viu estátuas de animais diversos esculpidas em marfim e jade, assim como figurinhas de deuses, deusas e heróis hindus.

– São lindas – murmurou, passando o dedo por uma das estátuas. – E esta faca? – acrescentou, enquanto pegava numa pequena faca curva com o punho em forma de tigre. – É estranho que dotassem uma arma concebida para a destruição de tanta beleza.

Thorpe observou-a enquanto ela estudava os numerosos objectos. Uma luz interior parecia iluminar o seu rosto, tornando-o ainda mais bonito. Perguntou-se se Alexandra brilharia assim, com olhos suaves e emocionados, enquanto fazia amor. Pensou, sentindo um súbito calor na barriga, que gostaria de o descobrir.

Alexandra largou a faca com um suspiro e olhou à sua volta mais uma vez.

– Todos os objectos são deliciosos – depois, acrescentou, sorrindo: – Agradeço-lhe muito que me tenha deixado vê-los, lorde Thorpe.

– Foi um prazer.

– Obrigada. Tenho de me ir embora. A minha tia e a minha mãe estarão à minha espera.

– Veio para Londres com elas? – perguntou Thorpe, enquanto saíam da sala e desciam pelas escadas.

– Sim. A minha mãe resistia a vir, mas não podia deixá-la para trás. E a tia Hortênsia nunca me teria perdoado se tivesse vindo sem ela. Além disso, até na América temos regras a respeito do que uma jovem deve ou não fazer. Normalmente, acho mais fácil seguir tais regras se viajar com companhia.