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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 1996 Candace Camp. Todos os direitos reservados.

ESCÂNDALO, N.º 145 - Fevereiro 2013

Título original: Scandalous

Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá

Publiado em português em 2007

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2548-2

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Um

 

Havia um homem nu à porta da sua casa.

Priscilla estava sentada na sala, a ler um livro, quando ouviu algumas pancadas fortes na porta da entrada. Levantou-se de um salto, um pouco alarmada, visto que era bastante tarde para receber visitas. Além disso, a pessoa que batia parecia impaciente. Acendeu um candeeiro a óleo e correu para a porta. Quando a abriu, encontrou aquele homem. Não usava nenhuma roupa e tinha a pele coberta de suor e arranhões. Respirava agitado.

Ficou a olhar para ele. Pela primeira vez na sua vida, ficou sem palavras.

Era um homem muito alto, que parecia encher o alpendre de Evermere Cottage. Priscilla nunca vira tanta pele junta, toda ela bronzeada, musculada e intensamente masculina.

O homem olhou para ela. Parecia aturdido e exausto.

– Ajude-me! – murmurou.

Depois caiu no chão, inconsciente.

Priscilla deixou escapar um grito e baixou-se para tentar levantá-lo, mas pesava demasiado e a sua pele nua e húmida escorregava-lhe entre os dedos.

A porta do escritório do seu pai abriu-se e Florian Hamilton assomou a cabeça. Tinha o cabelo despenteado, devido à sua mania de passar os dedos por ele quando estava absorto nos seus pensamentos.

– O que foi esse ruído? – perguntou. – Está aí alguém?

A sua voz interrompeu a paralisia temporária de Priscilla.

– Está tudo bem, papá. Eu encarrego-me de tudo.

Voltou para o alpendre para avaliar o problema. O homem estava estendido no chão, de lado. A maior parte do seu peito e dos seus braços estava dentro da casa, e as suas pernas compridas e o resto do seu peito, no alpendre. Era evidente que não conseguia movê-lo sozinha.

Perguntou-se quem seria e o que faria ali, nu e inconsciente. Pensou que podia tratar-se de uma brincadeira. Parecia algo típico de Philip ou de Gid. No entanto, não achava que nenhum dos seus irmãos fosse capaz de lhe enviar um homem nu a casa, nem que tivessem conseguido convencer alguém a que o fizesse. Mas apenas porque estavam no início da Primavera e estava bastante frio, sobretudo de noite. Chegou à conclusão, para seu pesar, de que não podia ser uma brincadeira.

Observou a cara do homem. Os seus traços estavam muito marcados. Tinha o queixo largo e as maçãs do rosto salientes, uma boca firme e carnuda e um nariz comprido e direito. Não era exactamente bonito, era demasiado duro. Mas emanava força, inclusive no seu estado. Com os olhos fechados, tinha um aspecto indefeso que a fez sentir um aperto no coração. Inclinou-se para o olhar de perto.

Fizera a barba há pouco tempo. Tinha a pele suave e mais bronzeada do que o habitual naquela época. Tinha um arranhão no queixo e outro na testa. O seu cabelo era denso, castanho avermelhado, como mogno polido. Caía-lhe uma madeixa pela face. De forma inconsciente, estendeu a mão para lha afastar. Ele gemeu e deitou-se de costas.

Priscilla desceu a vista pelo seu peito largo musculado, ligeiramente coberto de pêlos escuros, e pelo seu estômago plano. Começou a descer ainda mais...

– Mas, então!

Priscilla sobressaltou-se ao ouvir a voz do seu pai. Virou-se, franzindo o sobrolho.

– Assustaste-me!

Florian não lhe prestou atenção. Estava a olhar, atónito, para o homem que jazia aos seus pés.

– Quem é este tipo?

– Não faço a mínima ideia. Abri a porta e estava aqui.

– Mas o que faz no chão?

– Desmaiou.

Florian ergueu os sobrolhos.

– Não tem ar de ser dos que desmaiam, pois não? E o que faz vestido assim?

– Papá...!

– Oh! Desculpa. Pressuponho que também não sabes.

Inclinou a cabeça, observando atentamente o homem.

– Parece que não se divertiu muito, eh? – comentou.

Priscilla voltou a olhar para o seu visitante.

– Parece que andou a correr nu por entre silvas – viu algumas manchas escuras que não vira antes. – Olha, também tem cortes!

– É verdade! – Florian subiu os óculos e inclinou-se para o ver mais de perto. – Eu diria que esteve metido numa luta ou algo do género, para além de ter andado por entre as silvas – olhou para a sua filha com curiosidade. – É misterioso, não é? O que achas que terá acontecido? E o que faz aqui?

– Sim – respondeu Priscilla. – Isto parece um livro de mistério.

– Achas que sim? – parou de repente. – Será que Philip... Não, de certeza que não.

Priscilla sorriu. A fama do seu irmão era bem conhecida.

– Não, eu também não acredito.

De repente, ouviram uma exclamação. Uma mulher alta e magra estava nas escadas. Vestia uma camisa de dormir de algodão, de mangas compridas, um xaile à volta dos ombros e o cabelo coberto com um barrete, que escorregara, deixando ver várias madeixas atadas com panos, provavelmente numa tentativa de o frisar. Tinha os olhos esbugalhados.

– Está morto? – sussurrou.

– Não. Está só inconsciente.

A mulher susteve a respiração e levou a mão ao peito, num gesto tão dramático que Priscilla se perguntou como se teria comportado se se encontrasse diante de um cadáver. Florian, que nunca vira a menina Pennybaker vestida para a noite, ficou a olhar, boquiaberto, para ela, embora o seu traje não tivesse chamado a atenção de Priscilla.

Aproximou-se para observar mais de perto o homem que estava estendido no chão.

– Meu Deus! – exclamou, corando. – Meu Deus! Está... Está...

– Sim, eu sei – disse Priscilla num tom cortante. – O que temos de decidir é o que fazemos com ele.

– Mas não deverias... Não é uma visão adequada para uma rapariga solteira. Deverias vir comigo e deixar que o teu pai se encarregue dele.

– Sozinho? Pesa demasiado.

Não teve de lhe recordar o que ambas sabiam: que o seu pai não estava habituado ao trabalho físico. Normalmente, empregava o seu considerável intelecto na ciência. Era um perito em vários campos e cientistas de todo o mundo pediam-lhe a sua opinião. Mas, fisicamente, não era nenhum Hércules.

A menina Pennybaker, que vivia com eles desde que Priscilla tinha quatro anos, conhecia Florian Hamilton tão bem como a sua filha. De facto, costumava ser ela quem se encarregava de o fazer sair do escritório, pelo menos, duas vezes por dia para comer e quem encontrava sempre o seu cachimbo ou os seus óculos quando os perdia. Sabia tão bem como Priscilla que o seu hóspede inesperado poderia continuar no chão, quando se levantassem na manhã seguinte, e que Florian passaria a noite toda acordado, a tentar inventar uma máquina que servisse para o transportar.

– Sim, é claro, mas não é decente que...

Parou e, com um sorriso de triunfo, tirou o xaile. Em seguida, aproximou-se do homem com os olhos semicerrados e cobriu-lhe as ancas.

– Já está! – exclamou, satisfeita. – Continua sem ser muito decente, mas é melhor do que nada.

Priscilla conteve um sorriso.

– Obrigada. Agora vamos organizar-nos. Papá, agarra-o por um braço e eu agarro-o pelo outro. Consegues empurrá-lo pelos pés, Penny?

A outra mulher, aniquilada, olhou para ela, perante a ideia de tocar em qualquer parte do corpo do homem.

– Achas que devemos colocá-lo em casa?

– Já está quase lá dentro. Só temos de o colocar todo para podermos fechar a porta.

– Quer dizer... parece-te prudente? – olhou para ele com desconfiança. – Parece-me um rufia. Pode assassinar-nos a todos.

– Isso é verdade! – conveio Florian. – Não sabemos nada dele, excepto que parece que esteve envolvido numa luta.

– Uma luta! – repetiu a menina Pennybaker, horrorizada.

– Sim. Está cheio de arranhões e contusões.

A menina Pennybaker atreveu-se a ver mais de perto o seu visitante e franziu o nariz.

– Além disso, está molhado.

– Devia estar a suar. Mas, a julgar pelo estado das suas pernas, também é provável que tenha atravessado alguns riachos – disse Priscilla.

Os três olharam para os pés e as barrigas das pernas do homem. Estava cheio de lama e os pêlos molhados colavam-se à pele. A menina Pennybaker afastou-se rapidamente.

– Tens razão – disse Florian. – Sempre disse que não te escapava nenhum pormenor. Parece que esteve metido na água até aos joelhos. Terá atravessado um riacho pouco profundo, talvez o Slough – baixou-se e tirou-lhe uma folha húmida do pé. – Parece que também passou por um sítio onde há faias. Eu diria que veio pelos bosques de este.

– Mas continuamos sem saber quem é, nem o que andou a fazer – recordou-lhes a menina Pennybaker, nervosa. – Não parece uma boa pessoa.

Priscilla observou o seu rosto.

– Bom, talvez não seja muito amável, mas também não parece um monstro. Eu diria que é... – inclinou a cabeça. – Não sei, bastante duro. Isso não tem de ser mau.

– Mas esteve envolvido numa luta!

– E se o atacaram? – perguntou Priscilla. – Teria o direito de se defender. Não creio que um homem nu se dedique a atacar as pessoas.

– A não ser que seja louco, não – conveio Florian.

A menina Pennybaker susteve a respiração.

– Oh, não! Acha que é possível que tenha fugido de um manicómio?

– Se calhar, é o primo demente de algum vizinho, que o tinha fechado no sótão – brincou Florian.

– Acha que é possível? – perguntou a governanta. – Isso foi o que aconteceu a uma pobre mulher, num livro que li. Lorde Comfrey tinha um tio louco, que fugiu do torreão e...

– Não – respondeu Priscilla, a sorrir. – Parece-me muito pouco provável. O mais certo é que lhe tenham roubado a roupa. Mas fugiu, atravessando o bosque, passou por algum riacho pouco profundo dos que há em Ridley Bottoms e chegou até aqui. Provavelmente, viu a luz da nossa casa e veio pedir ajuda. Se tivesse más intenções não teria batido à porta. Teria dado a volta à procura de uma janela aberta.

A menina Pennybaker olhou à sua volta, nervosa.

– Talvez devêssemos fechar as janelas.

– Bateu à porta – reconheceu Florian. – Até o ouvi do escritório. Tenho a impressão de que era alguém que procurava ajuda, mais do que um ladrão.

– Então, se alguém o perseguia – interveio Priscilla – é melhor que o coloquemos em casa, não vos parece? É melhor do que ficar aqui a falar dele.

– Tens razão – disse Florian. – Bom, vamos lá!

Priscilla inclinou-se e levantou o braço esquerdo do homem. Tinha a pele cheia de suor e, quando o levantou, teve uma sensação estranha. Nunca tinha tocado na pele nua de um homem, excepto quando segurava os seus irmãos pelos braços, e tocar naquele desconhecido musculado era algo muito diferente.

O seu pai levantou o seu outro braço e a menina Pennybaker, com uma expressão de desagrado, agarrou-o pelos pés. Mesmo assim, os três não conseguiram levantá-lo por completo. Voltaram a largá-lo e fecharam os olhos ao ouvir o ruído que fez ao bater no chão.

A menina Pennybaker contornou-o e segurou-lhe na cabeça, enquanto Priscilla e o seu pai puxavam os seus braços. Por fim, quando conseguiram colocá-lo na casa até à cintura, Priscilla levantou-lhe as pernas e virou-o, para que pudessem fechar a porta.

Os três ficaram imóveis durante um momento, a observar o desconhecido, que continuava inconsciente.

– O que vamos fazer agora com ele? – perguntou Florian.

– Poderíamos levá-lo para o quarto que há ao lado da cozinha.

O seu pai assentiu.

– Muito bem, mas tenho a certeza de que deve haver uma forma mais fácil de o levar. Poderíamos movê-lo com mais comodidade se tivéssemos a alavanca adequada. Quanto acham que pesará?

Ficou pensativo, a avaliar o problema, e Priscilla apressou-se a intervir.

– Podemos deitá-lo em cima de uma manta, empurrando-o. Assim poderemos arrastá-lo, não achas?

– É claro – disse Florian, a sorrir. – Sempre foste muito prática, querida. Não sei a quem terás saído.

– Provavelmente a um antepassado distante – respondeu Priscilla, piscando um olho, enquanto abria o armário do hall para tirar uma manta.

Estendeu-a no chão e os três conseguiram rodar o homem até o colocarem em cima. Depois, foi-lhes bastante fácil arrastá-lo pelo chão de madeira encerada, embora os três estivessem esgotados quando conseguiram levá-lo para o pequeno quarto. Priscilla endireitou-se e olhou para a cama. Não sabia como poderiam subi-lo.

– Acho que é melhor deixá-lo no chão por agora – disse Florian. – É possível que recupere a consciência e se deite na cama sozinho.

Priscilla assentiu, franzindo o sobrolho.

– Não te deu a impressão de que estava demasiado quente?

– Sim – conveio Florian. – É possível que tenha febre.

– Se calhar levantou-se a meio de um delírio – interveio a menina Pennybaker. – Isso também poderia explicar porque está nu.

– Pressuponho. Se tivesse muita febre poderia ter arrancado a roupa para se refrescar.

– A febre faz essas coisas – garantiu a menina Pennybaker. – É possível que tenha saído da cama e começado a correr a meio da noite.

– Bom, se for assim, é melhor chamarmos um médico. Talvez devesse ir procurar o doutor Hightower.

– Não! – protestou Priscilla. – Se houver alguém perigoso lá fora, é melhor não voltarmos a abrir a porta.

– Sim, tens razão.

– Penny e eu sempre cuidámos de Philip e Gid quando tinham febre. Pressuponho que também poderemos cuidar deste homem. Se piorar, chamaremos o médico.

– Está bem. Acho que é melhor confirmar se as janelas estão todas fechadas.

Priscilla assentiu com uma expressão ausente, ajoelhando-se no chão, junto do desconhecido. Pôs-lhe a mão na testa. Estava a arder. A menina Pennybaker foi à cozinha buscar um candeeiro a óleo e Priscilla pôde ver que tinha o rosto ruborizado. Movia-se continuamente, virando a cabeça. Apercebeu-se de que tinha a nuca pegajosa.

– É sangue! – exclamou, olhando para a mão. – Sabia que se passava algo estranho. Alguém lhe bateu na nuca, com bastante força. Vai buscar água e um pano, Penny. Temos de lhe limpar a ferida.

– Meu Deus, meu Deus! – exclamou a governanta, abanando a cabeça. – Eu não gosto nada disto.

– Claro que não. É evidente que alguém maltratou este homem. Olha! – levantou um dos seus braços. – Vês as marcas vermelhas que tem à volta dos pulsos? Eu diria que o ataram. Olha para os tornozelos. Têm as mesmas marcas.

A menina Pennybaker ficou a olhar, assombrada.

– Priscilla! Como sabes essas coisas?

– Gid ficou com as mãos assim daquela vez que esteve a brincar aos piratas e deslizou do telhado com uma corda.

– É verdade – olhou para o convidado com incerteza. – Esteve atado! Pensei que essas coisas só aconteciam nos livros.

Priscilla encolheu os ombros.

– Bom, parece que também acontecem no mundo real de vez em quando, não achas? Certamente, parece que aconteceram a este homem.

– Sim, mas quero dizer que não é algo que possa acontecer a alguém que conheçamos. Põe-me nervosa. Tenho a certeza de que é um rufia.

– Seja o que for, tem febre e está frio aqui. Tenho a certeza de que chegaremos para ele se tentar atacar-nos.

A menina Pennybaker olhou, atemorizada, para os olhos cinzentos de Priscilla, que resplandeciam de humor.

– Está bem. Vamos lá! Pensarás que sou uma velha apreensiva, mas recorda o que te disse.

– Vá lá, Penny! Onde deixaste o espírito romântico?

– Com os cavalheiros. Este homem não parece um.

– Pressuponho que depois descobriremos se é um herói ou um vilão, mas, por agora, é melhor que nos encarreguemos de cuidar dele, não te parece? Traz também a tintura de iodo, está bem?

A menina Pennybaker foi à cozinha com certa hesitação e voltou um momento depois com uma bacia cheia de água e as coisas necessárias para curar uma ferida. Priscilla ensopou um pano e começou a limpar, cuidadosamente, a nuca do desconhecido. O homem gemeu, mas não acordou. Priscilla pôs algumas gotas de iodo numa gaze e esfregou a ferida com cuidado.

De repente, o homem abriu os olhos, praguejou e agarrou no pulso de Priscilla com dedos de aço.

Ficou gelada, a olhar para ele. Tinha os olhos verdes, como as folhas iluminadas pelo sol, claros e penetrantes. Pareciam chegar até à sua alma. Ficou imóvel. Mais uma vez, ficou sem palavras.

O homem semicerrou os olhos.

– Quem raios é você? – perguntou.

– Largue-a!

Priscilla esquecera-se da presença da sua antiga tutora, até ouvir a sua voz. Olhou para ela. Estava tão tensa que lhe tremia o corpo todo.

O homem virou-se para a menina Pennybaker e ficou boquiaberto.

– Meu Deus! Estou num manicómio!

Largou o pulso de Priscilla e levantou-se de um salto.

A menina Pennybaker inclinou-se para trás com um grito e Priscilla levantou-se para o agarrar.

O homem ficou muito pálido e cambaleou, antes de voltar a cair, inconsciente.

Priscilla foi mais rápida do que da primeira vez e segurou-o pela cintura. O homem caiu sobre ela e, durante um instante, sentiu-se imersa no seu calor e no seu cheiro. Mas não podia com ele e os dois caíram no chão.

– Priscilla! Estás bem, querida? – perguntou a menina Pennybaker, correndo para eles.

– Sim. Ajuda-me a tirá-lo de cima.

O homem estava estendido sobre ela, a esmagá-la contra o chão, mas turvava-a mais a sensação do seu corpo que a dos ladrilhos. Havia sensações que não vivera até então e eram desagradáveis, embora, ao mesmo tempo, estranhamente excitantes.

A menina Pennybaker puxou o seu ombro, enquanto Priscilla o empurrava por baixo, e as duas conseguiram voltar a pô-lo na manta. Priscilla ficou sentada durante um momento, tentando recuperar o fôlego.

– Tens a certeza de que estás bem? – perguntou a menina Pennybaker, nervosa.

– Sim – disse Priscilla, pegando nas ligaduras. – Segura-lhe na cabeça, está bem?

A governanta obedeceu, algo receosa, e Priscilla envolveu-lhe a cabeça com a ligadura. Em seguida, limpou-lhe os pulsos e os tornozelos, tentando não prestar demasiada atenção ao resto do seu corpo, e cobriu-os com ligaduras embebidas em iodo.

– Já está! – exclamou, levantando-se e contemplando o seu trabalho, satisfeita. – Já fiz tudo o que podia. Precisamos de outra manta para o tapar.

Agarrou na bacia. A água estava avermelhada pelo sangue. Foi à cozinha, seguida pela menina Pennybaker.

– Acho que teremos de o manter vigiado para ver como reage – comentou.

– Sim e para nos certificarmos de que não se levanta e decide assassinar-nos enquanto dormimos.

Priscilla sorriu.

– Acho que bastará fecharmos a porta. Mas é possível que precise de cuidados. Acho que vou ficar a vigiá-lo.

– Sozinha? Pensa no que poderia acontecer. Lembra-te do que acabou de fazer.

– Não me atacou.

– Agarrou-te no braço.

– Estava a magoá-lo e foi algo inconsciente. Não estava muito lúcido.

– Não podes ficar. É demasiado perigoso! – endireitou-se, decidida. – Ficarei contigo.

– Não sejas tola! Se quiseres, terei uma arma à mão. Um rolo da massa, por exemplo. Assim, poderei bater-lhe na cabeça se tentar estrangular-me.

– Não é altura para brincar.

– Não estou a brincar. Prometo-te que terei um rolo da massa à mão. Acho que é melhor do que uma faca, porque tenho bastante força, mas nunca apunhalei ninguém e não saberia como o fazer.

– Pelo menos, deixa-me ficar de guarda contigo – insistiu a governanta.

– Não podes. É necessário que durmas, para poderes ficar a vigiá-lo amanhã.

A mulher levou a mão ao pescoço, insegura.

– Não te preocupes – disse-lhe Priscilla. – Se não tentar atacar-me de noite, não creio que te ataque de dia. Além disso, o senhor Smithson e o meu pai estarão aqui amanhã.

– Então, o teu pai pode ficar a vigiá-lo de dia e eu ficarei contigo esta noite.

– O meu pai não saberia o que fazer com um doente. Em poucos minutos, começaria a inventar alguma experiência e este pobre homem morreria sem que ninguém se apercebesse.

A menina Pennybaker, que convivera com Florian Hamilton durante anos, teve de reconhecer que Priscilla estava certa. Mesmo assim, protestou fracamente durante alguns minutos, até que, finalmente, se deixou convencer e foi para a cama. Priscilla olhou para o seu paciente, que dormia profundamente no chão, e acompanhou a menina Pennybaker ao andar superior para procurar algumas mantas. De repente, ouviu alguém bater à porta.

Virou-se e começou a correr escada abaixo, mas o seu pai chegou à porta antes dela. Quando abriu, apareceram na soleira os homens mais suspeitos que Priscilla alguma vira na sua vida. Um deles era alto e de traços angulosos, e olhava à sua volta com os olhos semicerrados. O seu acompanhante era mais baixo e corpulento. Tinha os braços muito musculados e o seu nariz tinha o aspecto de ter sido partido mais de uma vez.

Priscilla escondeu, rapidamente, as mantas atrás das escadas, onde não pudessem vê-las, e aproximou-se da porta. Ao aproximar-se, apercebeu-se de que, pelo menos, um deles cheirava a álcool. Esperava que o seu pai não decidisse ser sincero com eles. Também pensou que se sentiria mais segura se tivesse um rolo da massa naquele momento.

– Sim? – perguntou Florian com voz gelada. – Tem noção das horas que são? Parece-me demasiado tarde para andarem a fazer visitas, não vos parece?

Priscilla esteve prestes a suspirar, aliviada. Evidentemente, o seu pai desconfiara imediatamente daqueles homens. As suas palavras tiveram o efeito desejado. O mais baixo pareceu encolher-se e o mais alto tirou a boina.

– Desculpe o incómodo, mas trata-se de uma emergência.

– A sério? – perguntou Florian, com incredulidade.

– Sim, andamos a perseguir um louco perigoso e pensámos que poderia ter vindo para aqui.

– Um louco, aqui? Parece-me muito pouco provável.

– Estávamos a levá-lo para casa da sua família e, de repente, ficou violento e fugiu.

– Portanto, perderam a pista da pessoa que se pressupõe que estavam a escoltar? – perguntou Florian, com desagrado.

– Não tivemos a culpa – protestou o homem mais baixo. – Poderia ter acontecido consigo.

– Talvez, mas não aconteceu. Talvez porque não esvaziei uma garrafa de gin.

As suas palavras serviram para acalmar o homem, que desviou a vista. Florian observou-os com curiosidade, como se estivesse a examinar uma espécie estranha de insectos, até o silêncio se tornar tenso.

– Bom – disse, por fim, – receio não poder fazer nada por vocês. Terão de continuar à procura.

– Não viu ninguém?

– Foi o que acabei de dizer, não foi? Ou duvidam da minha palavra? – acrescentou, com ironia. – Quase me sinto inclinado a pensar que foram vocês quem fugiram de um manicómio, ou, talvez, que beberam demasiado. Agora, peço-lhes que se retirem. Estão a assustar a minha filha.

Priscilla pôs-se atrás do seu pai, tentando comportar-se com timidez. O mais alto dos homens fez uma careta. Não parecia decidido a partir, mas não teve escolha, visto que Florian estava a fechar a porta. Depois, trancou-a e virou-se, sorrindo à sua filha.

– Gostaste da minha representação? – sussurrou.

– Excelente! – respondeu Priscilla, a sorrir. – Durante um momento, recordaste-me o velho duque.

– Na verdade, estava a tentar imitar o primo do meu pai, mas contento-me com que me compares com Ranleigh.

– Fico contente que tenhas decidido protegê-lo.

– Não creio que aqueles dois tipos o procurem para nada bom. Ainda não sei se o nosso convidado é um rufia, como diz Penny, mas não é preciso muita imaginação para perceber que aqueles dois homens, sim, são – parou, pensativo. – Pergunto-me o que terá acontecido.

– Talvez descubramos quando o nosso visitante acordar. Há alguns minutos, recuperou os sentidos, mas tentou levantar-se e voltou a desmaiar.

– Sim, parece que é apreciador de desmaiar.

– Acho que encontrei o motivo. Tem uma ferida na nuca. Tinha o cabelo cheio de sangue.

– Portanto, bateram-lhe na cabeça?

– Também descobri outra coisa. Esteve com os pés e as mãos atados. Tem queimaduras de corda nos pulsos e nos tornozelos.

Florian ergueu os sobrolhos.

– Portanto, esteve cativo. Isto está a ficar interessante. Quem achas que seriam aqueles homens? E quem será ele? Tratar-se-á de uma rixa entre malfeitores ou será um inocente perseguido com fins perversos? Até é possível que seja verdade que é louco.

– Não me pareceram muito sinceros e duvido que os contratassem nalgum manicómio.

– Se for louco e sendo forte, podem ter-se visto obrigados a contratar valentões profissionais. Disse algo enquanto estava acordado?

– Só me perguntou quem era. Depois, ao ver a senhora Pennybaker com aquelas coisas na cabeça, disse que estava num manicómio. Então pôs-se de pé e voltou a desmaiar.

Florian riu-se e passou a mão pelo cabelo.

– Não podemos expulsá-lo a meio da noite e naquele estado, embora eu não goste da ideia de ter um desconhecido em casa. Embora pressuponha que não constitui uma ameaça séria, se desmaiar cada vez que se levantar.

– Provavelmente, não – conveio Priscilla. – De qualquer forma, tenho intenção de ficar a vigiá-lo a noite toda.

– Para quê?

– Não tem apenas uma ferida na cabeça. Também tem muita febre. Será melhor mantê-lo vigiado, pelo menos, durante algumas horas. Se piorar, teremos de chamar o médico.

– Fico contigo – murmurou Florian, franzindo o sobrolho. – Pode ser perigoso.

– Como tu mesmo disseste, está demasiado fraco para se levantar, portanto dificilmente poderá fazer-me mal. Além disso, prometi a Penny que estarei armada.

– Pode saber-se o que vais utilizar como arma?

– Tinha pensado num rolo da massa.

– Talvez seja melhor usares isto – disse, tirando uma pistola antiga do bolso.

– A pistola do avô? O que fazes com isso?

– Pensei que era melhor abrir a porta armado.

– Então, agarraste na velha pistola e carregaste-a?

– Oh, não, está descarregada! Não tenho munição e não tenho a certeza de que funcione, mas parece bastante ameaçadora.

– Sim, a não ser que se descubra a armadilha.

– Podes sempre virá-la e dar-lhe uma coronhada. Da forma como o coitado está, acho que será o suficiente.

Priscilla agarrou na pistola e guardou-a no bolso da saia.

– Está bem.

– De qualquer forma, deveria ficar contigo.

– Não digas tolices! Consigo defender-me e tenho a pistola. Além disso, não vais estar muito longe. Posso sempre gritar.

– Isso é verdade.

Priscilla despediu-se do seu pai com um beijo e olhou para ele, divertida, enquanto ele voltava a correr para o seu escritório, provavelmente já a pensar na experiência que tinha em mãos. Virou-se e entrou na cozinha.

Um braço agarrou-a de repente, imobilizando-a. Ao mesmo tempo, uma mão tapou-lhe a boca.

Dois

 

Priscilla debateu-se, tentando libertar-se, mas o braço que a segurava era demasiado forte. Pensou na pistola que o seu pai lhe dera, que não lhe servia de nada no fundo do bolso. Subestimara o seu paciente e amaldiçoou-se por ter sido tão confiante.

– Quem raios é você? – sussurrou o homem ao seu ouvido. – O que faço aqui? Onde está a minha roupa?

Priscilla emitiu um som de irritação. Não sabia como aquele homem esperava que falasse se estava a tapar-lhe a boca.

– Tirarei a mão – prosseguiu – se me prometer não gritar. Um grito e estrangulo-a, entendido?

Priscilla assentiu. O homem afrouxou lentamente a mão com que lhe tapava a boca e pô-la no pescoço. Priscilla tremeu. Podia sentir os músculos do seu corpo contra as costas e não deixava de pensar que estava nu.

– Responda – disse o homem ao seu ouvido.

Priscilla pigarreou.

– O meu nome é Priscilla Hamilton e estamos em Evermere Cottage. Quanto ao que você faz aqui, esperava que mo explicasse quando recuperasse os sentidos.

– Hamilton? – repetiu. – Não a conheço.

– Não. Nem eu a si. A única coisa que sei é que desmaiou à nossa porta há aproximadamente meia hora.

– Porquê?

Priscilla teve a impressão de que o homem falava consigo mesmo, mais do que com ela.

Tirou-lhe a mão do pescoço e levou-a à cara. Cambaleou um pouco e apoiou-se na parede, afrouxando a mão com que lhe segurava os pulsos.

Priscilla soube que era o melhor momento. Deu-lhe uma pisadela forte e adiantou-se com todas as suas forças. O homem deixou escapar um som de dor e surpresa, e largou-a. Voltou a tentar agarrá-la imediatamente, mas era demasiado tarde. Priscilla tirou a pistola antiga e apontou-lha.

O homem ficou boquiaberto.

– É uma deles, não é?

– Uma de quem? Fique contra a parede. Agora sou eu quem faz as perguntas.

O homem apoiou-se na parede, mais para se segurar do que para obedecer à ordem. Estava muito pálido e tinha a testa coberta de suor. A julgar pela expressão da sua cara, Priscilla suspeitava de que tinha a cabeça a andar à roda. Semicerrou os olhos. Sentia-se bastante incomodada na companhia de um homem nu, embora ele não parecesse dar muita importância à sua falta de roupa.

Não queria olhar para ele, mas era-lhe difícil olhar noutra direcção. Não conseguiu evitar fixar-se na largura dos seus ombros e nos músculos do seu peito. Nunca vira um homem nu, mas não acreditava que nenhum dos seus conhecidos se parecesse com ele. Os corpos ossudos dos seus irmãos eram completamente diferentes do do desconhecido e inclusive Alec, que fazia muito desporto, era bastante magro.

Mas aquele homem, que era quase trinta centímetros mais alto do que ela, não estava magro absolutamente. O seu corpo parecia esculpido em granito e não lhe sobrava nem um grama. Nunca pensara que o corpo de um homem pudesse ser tão intrigante. Desceu o olhar e afastou os olhos, corando. Alegrou-se que o homem tivesse os olhos fechados.

– Acho que é melhor que se sente enquanto falamos. Caso contrário, voltará a desmaiar.

O homem abriu os olhos e olhou para ela.

– Perdi os sentidos, não foi?

– Sim. Já duas vezes.

O homem abanou a cabeça com incredulidade.

– O que se passa comigo? – levou a mão à cara. – Estou a suar imenso e a ver tudo a andar à roda.

Olhou para Priscilla como se ela fosse a culpada.

– Suspeito que isso se deve ao corte que tem na cabeça e ao facto de ter febre. Agora recomendo-lhe que volte para o quarto e se deite na cama – indicou as mantas, que tinham caído no chão. – Pode tapar-se com aquilo.

O homem virou-se, inclinou-se com cuidado e pegou numa das mantas. Enrolou-se nela e caminhou lentamente pela cozinha, para o quarto. Quando se deixou cair na cama, teve de conter um gemido. Priscilla não conseguiu evitar sentir pena.

– Lamento – disse-lhe. – Dar-lhe-ia um pouco de láudano, mas não é conveniente quando se tem uma ferida na cabeça.

– Não entendo. Porque me trouxe a manta? Porque me ligou a cabeça?

– Porque não haveria de o fazer? Está ferido, e... Bom, precisava de uma manta. Qualquer pessoa teria feito o mesmo.

– Não está a trabalhar para eles?

– Não sei a quem se refere, mas não trabalho para ninguém.

– Não sei como se chamam. Os dois tipos que me ataram. O bêbedo e o outro.

– Um homem alto e magro, com uma cicatriz?

– Sim, exactamente. Que relação tem com ele?

– Absolutamente nenhuma. Há pouco, esteve aqui, com outro homem que parecia ter bebido bastante, e perguntaram por si.

O desconhecido olhou, confuso, para ela.

– Não me denunciou?

– Não. O meu pai disse-lhes que não tinha visto ninguém. Não lhe pareceram de confiança.

– Portanto, não trabalha para eles – tranquilizou-se. – Ainda bem. Então, porque me apontou a pistola?

– Permita-me recordar-lhe que foi você que me atacou quando entrei na cozinha. Na verdade, parece-me que tive uma boa ideia ao vir com a pistola, tendo em conta que não sei nada de si.

– Tem razão – passou a mão pela testa. – Desculpe. Comportei-me de forma... muito pouco educada – teve um calafrio e enrolou-se mais na manta. – Sinto-me muito estranho.

– Tem febre. Quanto tempo passou atado? Esteve... sempre vestido assim?

O homem baixou a vista.

– Sim, acho que sim. Não recordo quando... Não sei, acordei e estava assim, com os pés e as mãos atados. Estavam lá de guarda e revezavam-se. Primeiro um e depois o outro. Mas era muito difícil manter a noção do tempo. Acho que foram vários dias. Pareceu-me uma eternidade – voltou a estremecer. – Está frio aqui? Tenho muito frio.

– Vou buscar outra manta.

Priscilla foi à cozinha. Não tinha muito medo, porque o desconhecido parecia demasiado fraco para lhe fazer mal, mas teve o cuidado de não lhe virar as costas. Voltou e atirou-lhe a manta, com o cuidado de não se aproximar muito.

De qualquer forma, o homem não parecia interessado em atacá-la. Enrolou-se na segunda manta e sentou-se, a tremer.

– Importa-se? Acho que tenho de me deitar.

Recostou-se, de lado, na cama e fechou os olhos.

– Espere! – pediu Priscilla, inclinando-se para olhar para ele. – Ainda não me disse o que lhe aconteceu. Porque o perseguiam aqueles homens?

– Não sei – os dentes tremiam-lhe e aninhou-se. – Está muito frio.

Priscilla hesitou. Depois guardou a pistola no bolso e correu até à cozinha. Voltou alguns segundos depois com mais mantas. Antes de entrar na cozinha, abriu a porta e olhou à sua volta de fora.

O homem continuava na cama, mas deitara-se de costas e estava destapado, com os braços abertos. Aproximou-se com prudência. Estava suado, mas pensou que, de qualquer forma, deveria tapá-lo. Aproximou-se, sentindo uma certa culpa.

Disse para si que era estúpida por se sentir culpada, mas não conseguia evitá-lo. Provavelmente, porque lhe custava resistir à tentação de baixar a vista e observar o que tentara não ver desde que abrira a porta.

Disse para si que, na realidade, sentia curiosidade. Nunca vira directamente. Conforme lhe diziam, uma verdadeira dama não sentiria curiosidade por algo do género, mas decidira, há bastante tempo atrás, que não tinha a alma de uma verdadeira dama. As tarefas próprias das damas pareciam-lhe bastante chatas e o que mais gostava de fazer, aquilo com que ganhava a vida, também não podia considerar-se uma ocupação adequada para uma menina.

O seu amor secreto era a escrita. Não gostava de escrever diários, nem crónicas de viagens, nem os poemas que seria de esperar de uma jovem, mas histórias de aventuras. Não havia nada de que gostasse mais do que imaginar um ambiente desconhecido e pôr nele um herói que tivesse de enfrentar inúmeros perigos. Os livros tinham-na transportado para lugares que sabia que nunca conheceria e tinham-lhe apresentado personagens notáveis que sabia que deviam existir em algum lugar.

Toda a sua vida fora bastante aprazível, mas nos seus sonhos vivia as aventuras mais emocionantes. Não lhe bastava lê-las, outras se formavam na sua mente. De modo que começara a escrever, criando uma espécie de homens perfeitos que só existiam na sua imaginação. Homens que não ficavam nas suas propriedades a envelhecer e a caçar raposas. Os homens da sua mente, os que saíam da sua pena, eram quase todos valentes e arrojados. Alguns eram canalhas e outros eram boas pessoas, mas todos procuravam algo. Um tesouro, a verdade, um parente perdido... Eram homens que arriscavam tudo.

O homem que estava deitado diante dela poderia ter passado por um deles. Tinha o aspecto físico necessário: era alto, de aparência agradável, forte e misterioso, e estava em perigo. Parecia-lhe exactamente o que um herói faria num dos seus livros: bater a uma porta para se esconder dos seus perseguidores. Naturalmente, estaria vestido, mas nunca podiam prever-se os pormenores todos na vida real. Aquele homem era o mais parecido que chegara a conhecer com os que habitavam nos seus livros. Não era de admirar que sentisse curiosidade.

Obviamente, as heroínas dos seus livros não teriam jamais concebido a ideia de olhar para um homem nu. Eram as mulheres decentes que a sociedade esperava, embora se metessem em confusões em que uma verdadeira dama não se colocaria. No entanto, Priscilla sabia que ela não era como as suas heroínas. E sentia verdadeira curiosidade pela anatomia masculina.

Pensou no que poderia acontecer se o homem acordasse e a surpreendesse a observá-lo, mas nem mesmo assim foi capaz de desviar o olhar. Corou profundamente.

Então, os homens eram assim! Parecia-lhe muito estranho, muito diferente. No entanto, havia algo fascinante naquilo. Ao olhar para ele, tinha uma sensação estranha e sentia a necessidade indecente de lhe tocar. Obviamente, não iria fazê-lo.

O homem agitou-se na cama e Priscilla saltou. Apressou-se a tapá-lo com uma manta, recordando-se que estava doente e que precisava de ajuda. Pôs-lhe a mão na testa. Estava a arder.

Foi à cozinha, buscar outra bacia de água e um pano, e voltou para junto do seu paciente. Humedeceu o pano e pô-lo na testa. Depois voltou para ir buscar um frasco de xarope que a sua amiga Anne lhe dera da última vez que Philip tivera febre. Recordava que resultara muito bem. Encontrou-o no fundo de um armário. Deitou uma colher num copo de água.

Voltou para junto do seu paciente. Estava a agitar-se, inquieto, e já baixara a manta até à cintura. Murmurou algo ininteligível, enquanto Priscilla se ajoelhava no chão, ao seu lado.

– Consegue sentar-se? – perguntou-lhe. – Trouxe-lhe um xarope.

Ao ver que não acordava, deu-lhe algumas palmadinhas no ombro com precaução. Tinha a pele a arder.

– Acorde, por favor!

O homem abriu os olhos e virou a cabeça. Parecia ter o olhar nublado.

– O quê? – passou a língua pelos lábios gretados. – Tenho muito calor. Onde estou?

– Em Evermere Cottage – respondeu Priscilla com calma. – Já lhe disse. Não se lembra?

O homem abanou a cabeça, lentamente, e voltou a humedecer os lábios.

– Tenho sede.

– Já lhe trago água, mas antes tem de tomar isto. Ajudá-lo-á a recuperar. Consegue sentar-se?

O homem assentiu, mas só conseguiu endireitar-se um pouco, apoiando-se nos cotovelos. Priscilla segurou-lhe na cabeça com uma mão enquanto lhe levava o copo aos lábios. O homem começou a beber com avidez, mas afastou-se, fazendo uma careta.

– O que raios é isto? Está a tentar matar-me?

– Não, é um xarope para baixar a febre. Tem de o tomar. Eu sei que tem um sabor horrível, mas é necessário que beba mais um pouco.

– Nem pensar!

Priscilla olhou para ele com determinação. Não era em vão que enfrentava os seus irmãos há vários anos.

– Sim! – respondeu-lhe com firmeza. – É necessário. Abra a boca.

– Quero água! – respondeu ele com a mesma obstinação.

A sua expressão parecia-se tanto com a de um menino zangado que Priscilla não conseguiu conter a gargalhada.

– Trar-lhe-ei água assim que tomar o remédio.

O homem olhou para ela durante um bocado. Ela devolveu-lhe o olhar com tranquilidade. Por fim, deu-se por vencido.

– Está bem.

Bebeu o copo de um gole e depois deixou-se cair na cama, torcendo a boca de forma expressiva.

– Sabe a veneno. Quem a contratou?

– Ninguém me contratou. Estou a tentar ajudá-lo porque quero, mas devo dizer que está a obrigar-me a repensar a minha decisão.

O homem sorriu fracamente e Priscilla foi buscar um copo de água. Quando voltou, viu que o desconhecido voltara a fechar os olhos. Deixou o copo em cima da cómoda e voltou para junto da cama. Suava com profusão e voltara a tirar a manta. Priscilla compô-la e depois sentou-se num banco, ao seu lado. Molhou o pano na bacia e refrescou-lhe a cara.

A água fria pareceu apaziguá-lo um pouco, embora continuasse a abanar a cabeça e a murmurar palavras ininteligíveis. Baixou a manta várias vezes com impaciência. A febre continuava a aumentar.

Priscilla recordou que, quando os seus irmãos tinham muita febre, lhes fazia fricções no peito, mas era-lhe um pouco violento fazê-lo a um desconhecido. No entanto, passado um pouco, decidiu que não tinha escolha. Mergulhou o pano na água, torceu-o e começou a esfregá-lo no peito, descendo para o estômago. Quando aqueceu, voltou a mergulhá-lo na água fria e recomeçou.

O pano era fino e podia sentir na palma da mão a forma dos seus músculos e a dureza das suas costelas e da sua clavícula. Sentiu um estremecimento estranho no abdómen. Uma veia pulsava-lhe no pescoço e sentiu a tentação de lhe tocar. Finalmente, fê-lo com um dedo. Tinha a pele muito suave, apesar da força do seu corpo. A sua pulsação batia contra o dedo de Priscilla, firme e rápida, fazendo com que a dela também acelerasse.

Afastou a mão, surpreendida com as sensações estranhas que sentia. Nunca sentira uma ansiedade como a que sentia quando lhe passava o pano pelo peito, nunca sentira aqueles apertos no abdómen. Era, ao mesmo tempo, estranho, excitante e agradável.

Voltou a humedecer o pano na água fria e esfregou-lhe novamente o peito. O seu paciente gemeu e virou-se para ela, afastando a manta mais uma vez. Priscilla abanou a cabeça e começava a subir outra vez quando o seu olhar caiu sobre o mesmo membro para o qual se atrevera a olhar antes de esguelha. Parou, sobressaltada.

Mudara.

Agora era mais comprido e grosso, e parecia estar a levantar-se. Pestanejou e afastou a mão. Começou a lavar-lhe novamente o peito, sem conseguir deixar de pensar no que acabara de ver. Quando desceu para o estômago, viu um movimento. Parou, surpreendida, e voltou a passar-lhe o pano pelo abdómen. Novamente, a masculinidade do seu paciente moveu-se e pareceu aumentar.

Olhou para a sua cara. Continuava adormecido, com os olhos fechados, mas parecia mais relaxado.

Voltou a humedecer os lábios. Priscilla olhou para ele. Então, sem saber muito bem porquê, mergulhou um dedo no copo de água e levou-lho aos lábios. Sentiu o seu fôlego na mão e, novamente, um bando de borboletas pareceu bater as asas no seu estômago.

Priscilla mergulhou novamente o dedo na água e passou-o pelos lábios do homem. Ele adiantou a língua, e de repente, abriu os olhos. Olhou para ela sem a reconhecer, como antes, e sorriu.

– Eu gosto disso – levantou a mão e acariciou-lhe a face. – Quanto é?

– O quê? – perguntou Priscilla, desconcertada.

– A noite – disse ele em voz baixa. – Tu – desceu a mão pelo seu peito até lhe tocar nos seios. – Hum...! Madame Chang sabe sempre escolhê-las.

Priscilla corou ao aperceber-se do que o homem pensava. Tomara-a por uma mulher da noite, alguém cujos favores podia comprar.

– Espere!

Afastou-lhe a mão e começou a levantar-se, mas ele reteve-a, segurando-a pelo pulso.

– Espera! Não te vás embora – pôs-lhe uma mão atrás da nuca, puxando-a para si. – Não entendes? Eu quero-te.

– Você está equivocado. Está... está a delirar.