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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2002 Candace Camp. Todos os direitos reservados.

CORAÇÕES SELVAGENS, N.º 1 - Fevereiro 2013

Título original: So Wild a Heart

Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá.

Publicado em português em 2004

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2552-9

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Um

 

A mulher estendeu os braços para ele e olhou-o com os olhos abertos e suplicantes, a boca contorcida num sorriso mortal. Estava pálida, com a roupa e a pele encharcadas. As algas escuras envolviam-lhe o peito e pareciam arrastá-la para as águas turbulentas...

– Dev! Socorro! Salva-me!

Os seus gritos estridentes rasgaram a escuridão da noite.

Ele tratou de agarrá-la. A mão dela estava a poucos centímetros, mas não a conseguia alcançar. Esticou-se o mais possível, estirando cada fibra do seu corpo e, apesar do seu esforço, ela continuou fora do seu alcance.

Estava a afogar-se nas escuras águas, os olhos fechavam-se-lhe...

– Não! – gritou ele, tratando desesperadamente de alcançá-la. – Não! Deixa-me ajudar-te!

Dev abriu os olhos. Ao princípio, sentiu-se algo aturdido, mas pouco a pouco foi recuperando o entendimento. Tinha voltado a sonhar com ela.

– Jesus Cristo!

Começou a tremer, sentia-se gelado até aos ossos. Ao olhar em volta, demorou um pouco a perceber onde estava. Tinha adormecido sentado no seu quarto, envolto no seu robe. Sobre a pequena mesa que havia ao lado da sua cadeira, encontrou uma garrafa de conhaque e um copo. Agarrou a garrafa e serviu um pouco de licor. A mão tremia-lhe tanto que a garrafa começou a chocar contra o rebordo do copo.

Tomou um golo da bebida e sentiu como o potente líquido lhe aquecia a garganta. Então, passou as mãos pelo seu escuro cabelo preto e tomou outro golo.

– Porque não me disseste? – murmurou. – Ter-te-ia ajudado.

Apesar da ajuda do conhaque, continuava com frio, pelo que se levantou e dirigiu-se para a cama com passos cambaleantes. Quanto tinha bebido nessa noite? Não se lembrava. Evidentemente, tinha sido mais que suficiente, dado que tinha adormecido naquela cadeira em vez de percorrer os poucos centímetros que o separavam da cama. Não era de estranhar que tivesse tido pesadelos.

Meteu-se na cama e tapou-se com as mantas. Lentamente, entre o conhaque e o calor da cama, a sua temperatura foi-se normalizando. Todavia, Devin suspeitava que a sua sensação de frio tinha mais a ver com o persistente e incómodo pesadelo do que com a temperatura ambiente.

Tinham-se passado anos. Julgara que depois de tanto tempo o sonho desapareceria, mas continuava a produzir-se com frequência ao longo dos meses, pelo menos duas ou três vezes por ano. Devin esboçou um trejeito de tristeza. Não parecia capaz de guardar um cêntimo no bolso, mas, no entanto, aquele sonho mau continuava a acompanhá-lo durante anos.

Os tremores cessaram e os olhos começaram a fechar-se. Pelo menos, depois de todos estes anos, conseguia voltar a adormecer depois de ter aquele sonho.

A primeira vez que o teve, tinha ficado acordado toda a noite. Talvez o tempo não conseguisse fechar todas as feridas, mas, quiçá com a ajuda do conhaque, podia fazer com que se esquecesse mais facilmente. Com um ligeiro suspiro, adormeceu.

 

 

Várias horas depois, quando o sol estava já bem alto, o pajem de Devin despertou-o suavemente.

– Milord, Milord. Lamento despertá-lo, senhor, mas Lady Ravenscar e Lady Westhampton estão lá em baixo, senhor, e perguntam por si.

Devin abriu um olho e olhou com malevolência para o seu servente, que se mantinha ao lado da cama.

– Desaparece – murmurou suavemente.

– Sim, Milord, compreendo-o. Sei que é muito cedo, mas Milady ameaça subir e despertá-lo ela mesma. Parece-me a mim que ter de refrear fisicamente a mãe de Milord excede os meus deveres.

Devin suspirou e voltou a fechar o olho. Então, pôs-se de barriga para cima.

– Vem a chorar ou em tom de guerra?

– Não lhe vi sinal algum de lágrimas, senhor. Eu diria que vem... decidida. Além disso, trouxe Lady Westhampton.

– Mmm... É mais difícil quando a minha irmã concerta forças com ela.

– Efectivamente, Milord. Preparo-lhe a roupa?

Devin resmungou. Sentia-se muito mal. A cabeça às voltas, o corpo dorido e a boca com um sabor tão mau como o de um caixote do lixo.

– Onde estive ontem à noite, Carson?

– Não estou certo de lhe poder responder, senhor – replicou o servente. – Creio que o senhor Mickleston esteve consigo.

– O Stuart? – repetiu Devin.

Então, julgou recordar que o seu amigo lhe fizera uma visita. Parecia ser que Stuart fora extremamente generoso com a carteira, o que explicava a ressaca. Provavelmente, teriam percorrido metade dos tugúrios de Londres na noite anterior, para comemorar a sua boa fortuna... e sem dúvida teriam desperdiçado metade dela.

Devin sentou-se com alguma dificuldade e retirou as pernas da cama. Então, esperou que a sensação de náusea se dissipasse.

– De acordo, Carson. Prepara-me a roupa e pede que nos tragam água quente para me barbear. A minha mãe disse o que pretendia?

– Não, senhor. Falei eu mesmo com ela mas mostrou-se muito reticente quanto ao propósito da sua visita. Apenas me transmitiu que tinha de o ver com muita urgência.

– Sem dúvida – replicou ele, olhando para o seu ajudante. – Bom, acho que o que preciso neste momento é de uma boa chávena de chá.

– Com certeza, senhor. Eu mesmo a trarei.

 

 

Trinta minutos depois, impecavelmente vestido com um fato preto, uma camisa branca engomada e um lenço de seda amarrado debaixo do queixo à moda vigente, Devin Aincourt, com todo o aspecto de um sexto Conde de Ravenscar, desceu as escadas.

Entrou no salão e viu a sua irmã, uma atraente mulher de quase trinta anos, com cabelo preto, olhos verdes e rasgos bem definidos, típicos da família Aincourt. Ao ouvir a porta a abrir-se, a jovem levantou os olhos e sorriu.

– Dev!

– Rachel – respondeu ele, com um sorriso afectuoso nos lábios apesar da forte dor de cabeça que padecia. A sua irmã era uma das poucas pessoas que realmente apreciava. Quando se virou para olhar para a sua progenitora, o sorriso do seu rosto esfumou-se. – Mãe – acrescentou, fazendo uma vénia. – Um prazer inesperado...

– Ravenscar – replicou a mulher, tratando-o com a formalidade com que sempre lidara com toda a gente, inclusive a própria família. – Congratulo-me por ver-te com vida. Dada a reacção dos teus criados ao ver-nos, estava a começar a interrogar-me se te encontraríamos vivo.

– Ainda estava a dormir. Os meus serventes mostram-se sempre compreensivelmente avessos a tirar-me da cama.

– É quase uma da tarde – reclamou a sua mãe, levantando as sobrancelhas.

– Exactamente.

– És um pagão, embora não seja disso que te quero falar.

– Já imaginava. Então, qual o assunto que te trouxe a este antro de iniquidade? Deve ser muito urgente.

– Suponho que essa é a ideia que tu tens de uma piada.

– Muito leve, admito – disse Ravenscar, em tom aborrecido.

– O que aqui me traz é o teu casamento.

– O meu casamento? – perguntou Devin, surpreendido. – Temo não possuir nenhuma notícia a tal respeito.

– Pois deverias. Necessitas casar-te imediatamente. Há já tempo que deverias ter encontrado a mulher adequada, mas como não te deste ao trabalho, eu fi-lo por ti.

– Tu também, Rachel? – perguntou à sua irmã.

– Dev... – sussurrou ela, com voz triste. Parecia envergonhada.

– Não sejas estúpida – interrompeu-a Lady Ravenscar, secamente. – Falo a sério, Devin. Deves casar-te, e rápido, ou ficarás na mão dos teus credores.

– Não creio que isso tenha acontecido ainda.

– Não falta muito. A tua propriedade está num estado miserável. Darkwater está, literalmente, a cair sobre as nossas cabeças. Saberias isso se fizesses um esforço para visitar as tuas terras.

– Ficam muito longe e não gosto de visitar lugares que estão prestes a cair.

– Oh, sim... Para ti é muito fácil fazer piadas – replicou Lady Ravenscar. – Não és tu que tens de viver lá.

– Não me parece que tu tenhas de viver lá – replicou ele. – De facto, parece-me que neste momento estás a residir em Londres, não é verdade?

– Tenho uma casa arrendada para a temporada – disse-lhe a sua mãe, com um tom da mais profunda humilhação. – Antes tínhamos uma casa na cidade, um lugar lindo onde podia dar as festas mais elegantes. Agora, só me permito alugar uma casa por dois meses, e é tão pequena que quase não posso dar um jantar para mais de oito pessoas. Não organizo uma festa em condições há anos.

– Podias viver comigo – disse-lhe Rachel.

– Já abusei o suficiente da caridade do teu marido. Tenho de agradecer ao Richard e a ele pelas roupas que uso. Isso já é bastante sem que tenha de me dar abrigo também. Essa responsabilidade é de Devin. É ele o Conde de Ravenscar.

– Estás a dizer-me que tenho de me casar para te dar uma casa na cidade?

– Não sejas obtuso, Devin. Não te fica bem. Tens um dever para comigo e para com o teu apelido. E contigo mesmo, para dizer a verdade. O que vai acontecer com Darkwater? Com o apelido Aincourt? É teu dever casares-te e ter herdeiros. De que outra maneira vai ter continuidade o nome e o título? E a casa? Está de pé desde que a Rainha Isabel era uma criança. Vais permitir que caia na mais completa ruína?

– Tenho a certeza de que o título terá continuidade.

– Oh, sim, se não te importares que esse malandro do Edward Match herde o teu título. Um primo terceiro... E asseguro-te que não faz a mais pequena ideia nem de como conduzir-se a si próprio.

– Eu diria que tu achavas que sou eu o que não se sabe conduzir a si próprio.

A sua mãe olhou-o com severidade.

– E assim é, mas pelo menos tu estás em linha directa. E não pareces uma doninha. Dói-me pensar que possa haver um Ravenscar que possa parecer um roedor. Apesar do que se possa dizer da nossa família, pelo menos os Condes de Ravenscar sempre foram muito bem parecidos.

– Então, isso quer dizer que esperas que eu seja o bode expiatório da família, não é assim?

– Não há necessidade de tanto dramatismo. Não é que não se faça todos os dias. As uniões por amor são para as classes mais baixas. As pessoas como nós estabelecem alianças. Isso foi o que fizemos o teu pai e eu, e olha para as tuas irmãs. Casaram-se como deve ser. Não protestaram, fizeram exactamente o que a família necessitava. E tu, como chefe de família, não podes fazer menos do que elas.

– No entanto, é precisamente fazer menos o que faço melhor.

– Não julgues que mudas de assunto com as tuas piadas – indicou-lhe a sua mãe apontando-o com o indicador.

– Bem vejo – disse Dev, olhando a sua mãe com tristeza.

– Desde que recebeste a tua herança, não fizeste mais do que esbanjá-la. Como podes acreditar não ser tu quem se deve encarregar de recuperá-la?

– Mãe, isso não é justo! – exclamou Rachel. – Bem sabes que todos os Condes desbarataram todo o seu dinheiro. O Dev não tem a culpa toda. Se bem te lembras, na verdade foi o papá quem vendeu a casa da cidade.

– Lembro-me muito bem, obrigada. Tens razão. O forte dos Aincourt não foi administrar o dinheiro. Por isso sempre tiveram de contrair bons casamentos.

Devin massajou as frontes, onde a dor era mais intensa.

– E com quem queres que me sacrifique? Espero que não seja com essa desgastada da filha dos Winthorpe.

– Vivian Winthorpe! Claro que não. Com a herança que lhe deixa o pai, mal conseguirias pagar as tuas dívidas. Além de que os Winthorpe nunca acederiam a unir o nome deles ao teu. Não poderiam suportar o escândalo. Não podes esperar que um pai entregue a sua filha a um homem que... bem, que mantém a relação que tu manténs há anos – acrescentou Lady Ravenscar, com desdém.

– Então, com quem? Suponho que com uma viúva.

– Tenho a certeza que serias capaz de a conquistar se te dispusesses a isso – afirmou a mãe, sem demasiada paixão, – mas requereria uma atenção constante e, francamente, duvido que fosses capaz.

– Já vejo que tens uma fé assombrosa em mim.

– A rapariga em que pensei é perfeita. Tem uma grande fortuna e o seu pai está maravilhado com a união. Parece que lhe apetece bastante que a sua filha seja Condessa. Devias ter visto como lhe brilharam os olhos quando lhe falei de Darkwater. Parece não querer outra coisa do que restaurar uma velha mansão.

– Estás a falar de uma londrina?

– Não. De uma norte-americana.

– Como? Queres que me case com uma herdeira norte-americana?

– É uma situação perfeita. O pai dela conseguiu amealhar uma quantidade de dinheiro absurda com o comércio de pele ou algo do estilo e está desejoso de o gastar numa propriedade como a nossa. Este homem morre por ter um título. Além de que, como não vivem aqui, nada sabem da tua má reputação.

– Espantas-me. Queres que me prenda à filha de um caçador de peles, alguém que não sabe falar bem e que provavelmente não terá noção de que garfo usar. Sem dúvida, terá o aspecto de alguém que acaba de sair da selva.

– Não faço ideia do aspecto que tem nem de como se comporta – replicou Lady Ravenscar, – mas estou certa que Rachel e eu a podemos polir. Se for um completo desastre, bem, tenho a certeza que lhe agradará viver em Derbyshire com o seu pai, pondo Darkwater em ordem. Sinceramente, Devin, não percebes que qualquer um que seja gente neste país sabe que vives em pecado? Como mãe, dói-me ter de te dizer isto, mas nenhuma inglesa respeitável estaria disposta a casar contigo.

Devin não respondeu. Sabia tão bem quanto a sua mãe que aquelas palavras eram completamente certas. Desde que se fizera adulto, levava uma vida que escandalizava a maioria das pessoas da sua classe social. Algumas damas não estavam dispostas a recebê-lo na sua casa e a maioria das outras só o faziam porque, apesar de tudo, era um Conde.

Afortunadamente, ele não tinha nenhum desejo de se misturar com a maioria dos membros da aristocracia, pelo que a desaprovação que lhe mostravam lhe era completamente indiferente. Além de que, há já anos, aceitara que a sua mãe partilhasse a opinião do resto da sociedade sobre ele, tal como o seu pai antes de falecer.

– Na realidade, não sei porque te tens de preocupar com as carências sociais dessa mulher – acrescentou a mãe. – Sou eu a que poderia ver a minha posição social afectada por ter uma nora demasiado rústica.

– Permite-me que te lembre que sou eu que teria de estar legalmente unido a ela. Já a estou a ver... Demasiado feia para conseguir um marido, apesar de tanto dinheiro, com roupas fora de moda há dez anos e apenas um tema de conversa interessante na cabeça.

– Olha, Devin, acho que estás a exagerar...

– Achas? Então porque teve de vir a Inglaterra para achar marido, para encontrar alguém com uma propriedade meio desmoronada, uma herança desbaratada e suficientemente desesperado para casar-se com alguém por dinheiro? Olha, mamã, afianço-te que não consigo fazê-lo. De facto, não o farei. Encontrarei outro meio de me desenvencilhar. Sempre o fiz assim.

– Com o jogo? – acusou a sua mãe. – Empenhando o relógio e os botões de diamantes do teu avô? Oh, sim! Sei perfeitamente como sobreviveste nos últimos meses. Vendeste tudo o que possuía valor. Tivemos de prescindir de metade do pessoal de Darkwater. Levas um estilo de vida ruinoso, licencioso e extravagante, Devin, e esta é a consequência.

Devin voltou-se para a irmã, que permanecera em silêncio durante a maior parte da conversa.

– É isso que queres para mim, Rachel? Queres que me case com uma mulher que nunca vi, que tenha o mesmo casamento «feliz» que tu tens?

Rachel ergueu as costas e tratou de reprimir as lágrimas que lhe mareavam os olhos.

– Isso é cruel e injusto! O único que quero é a tua felicidade. Como poderás ser feliz se tiveres de deixar a tua casa e viver num andar de uma assoalhada? Tu sabes quanto dinheiro gastas, Devin. Atrevo-me a dizer que é muito mais do que Strong te envia da propriedade, e essa quantidade vai diminuir cada vez mais. Tens de investir dinheiro nas tuas terras para conseguir que continuem a dar lucro e isso é algo que nem o papá nem tu fizeram. Sei que quando o papá te tirou o dinheiro, te conseguiste arranjar com a tua habilidade para jogar às cartas e com o dinheiro que o Michael e o Richard te deram. No entanto, acho que não poderás fazer o mesmo pelo resto da tua vida.

Devin desviou o olhar, deixando que o seu silêncio fosse uma confirmação.

Finalmente voltou a falar.

– Lamento, Rachel. Não deveria ter dito isso – sussurrou. Então, voltou a olhar para a sua irmã e dedicou-lhe um sorriso cálido. – Tenho uma dor de cabeça terrível e isso faz-me ser muito sarcástico. Sei que tu sacrificaste a tua felicidade pelo bem da família.

– Que parvoíce! – exclamou Lady Ravenscar. – Rachel é uma das mulheres mais invejadas de Londres. Tem uma casa linda, um guarda roupa maravilhoso e uma renda mais do que generosa. Um bom número de mulheres daria tudo para fazer esse «sacrifício», como tu lhe chamas.

Devin e Rachel trocaram um olhar divertido. A felicidade para Lady Ravenscar consistia naquele tipo de coisas.

– Quanto a ti, Devin – prosseguiu a mulher, – não te estou a pedir que te ofereças a essa rapariga, apenas que consideres a sua proposta. Esta noite vou dar um jantar na minha casa e convidei-a. O mínimo que podes fazer é vir também para que a conheças.

Devin emitiu um grunhido. Um jantar na casa da sua mãe apetecia-lhe quase tanto como conhecer aquela americana.

– Eu também irei – comentou Rachel. – Diz-me que também vais, Dev.

– Está bem – afirmou ele sem vontade, – irei esta noite e conhecerei essa rapariga.

 

 

A «rapariga» estava naquele preciso momento a ter uma discussão com a sua família mais ou menos nos mesmos moldes, algo que muito teria surpreendido Lord Ravenscar.

– Papá – disse Miranda Upshaw com firmeza, – não penso casar-me com um homem que nunca vi, por mais que te apeteça deitar a mão a uma propriedade na Grã Bretanha. Parece-me algo completamente medieval.

Cruzou os braços sobre o peito e olhou para o pai implacavelmente. Miranda era uma mulher bonita, com grandes e expressivos olhos cinzentos e uma espessa mata de cabelo castanho. Tinha uma figura pequena e compacta, e um vestido de algodão fino que evidenciava as suas bonitas curvas. Porém, a sua personalidade era tão forte que, frequentemente, as pessoas tinham a impressão de que Miranda era uma mulher alta.

Joseph Upshaw olhou para a filha. Tal como ela, não era muito alto e estava tão acostumado a sair-se com a sua quanto ela, pelo que se tinham enfrentado em inúmeras ocasiões.

– Não te estou a pedir que te cases com ele já amanhã – disse-lhe, num tom de voz muito mais razoável. – O único que tens de fazer é ir a casa da sua mãe esta noite e conhecê-lo. Depois disso, podes levar o tempo que quiseres para te decidir.

– Duvido que queira conhecê-lo. Provavelmente tem umas pernas de alicate e os olhos meio estrábicos e... será careca. Por que outra razão teria a sua mãe tanta vontade de casá-lo? Embora não tenha dinheiro, um Conde deveria ser um bom partido. De certeza que há homens abastados neste país que ficariam felicíssimos por vender as suas filhas em troca de um título.

– Estás a dizer que te estou a vender? – replicou o seu pai, indignado. – Que bonito falar assim de um homem que te está a tentar dar um dos melhores e mais antigos apelidos de Inglaterra! Se existe alguma venda pelo meio, acho que se pode dizer que eu sou o comprador.

– Mas eu não quero – reclamou Miranda, sabendo que o que o seu pai queria era tornar-se parente da aristocracia inglesa, cujas mansões e castelos admirara desde sempre. Joseph Upshaw morria de vontade de ter um.

– Como podes rejeitá-lo se nem sequer o viste? – perguntou-lhe. – É um Conde. E tu serias Condessa! Pensa só quão contente ficaria Elizabeth. Assim que esteja um pouco melhor, conto-lhe tudo. Ficará encantada.

– Tenho a certeza disso – respondeu Miranda.

A sua madrasta, Elizabeth, que era inglesa, estava ainda mais apaixonada que o seu pai pela ideia do seu casamento com um nobre. Ela própria procedia de uma boa família e tinha ido para Nova Iorque com o seu primeiro marido, igualmente nobre, que a tinha deixado só no Novo Mundo com uma criança pequena. O seu sonho era que a sua filha Veronica, que tinha catorze anos, vivesse no mundo da aristocracia britânica para assim poder encontrar um bom marido. O método mais rápido para consegui-lo era que Miranda se casasse com um dos seus membros para mais tarde poder facilitar a entrada de Veronica naquele ambiente selecto.

– Já sabes que gosto muito da Elizabeth – acrescentou Miranda. – Ela é a única mãe que conheci e sempre foi muito boa para mim. E também gosto muito da Veronica...

– Eu sei. Sempre foste como uma pequena mãe para essa menina.

– No entanto, isso não significa que vá casar-me com alguém só porque Elizabeth quer que Veronica entre na alta sociedade londrina.

– Essa não é a única razão. Ele tem uma grande propriedade em Derbyshire. E uma casa... Há que reconhecer que não é um castelo, mas é tão grande como se o fosse. Chama-se Darkwater. Não te parece que alia história e romance? O Conde de Ravenscar. Meu Deus, rapariga! Não te bate o coração?

– Claro que bate, papá. Eu serei a primeira a admitir que é um homem muito romântico, embora isso das «águas escuras» seja um pouco misterioso.

– Ainda melhor! De certeza que há fantasmas.

– Que bem.

– É óptimo, não é? – perguntou Joseph, sem querer notar a ironia no comentário da sua filha. – Essa casa foi construída por um dos melhores amigos e benfeitores de Henrique VIII. Ele construiu o edifício principal durante o reinado de Henrique. Então, quando o seu filho herdou a propriedade no reinado de Isabel I, acrescentou duas alas a ambos lados da mansão. É algo grandioso, mas está a cair num lamentável estado de ruína. A madeira apodreceu, os tapetes estão feitos trapos... E nós podemos restaurá-la! Imaginas que oportunidade? A casa, as terras, a propriedade inteira... Poderíamos devolver-lhe todo o seu esplendor.

– Soa magnificamente – comentou Miranda, com sinceridade.

As casas e propriedades eram um dos principais interesses da jovem. Durante os anos em que o seu pai lidara com John Jacob Astor, tinha entabulado muitas conversas com o astuto cavalheiro. Decidira seguir os seus conselhos e investira grande parte dos lucros do seu pai em negócios imobiliários em Manhattan. O risco tinha produzido um lucro enorme, que seguramente lhe proporcionaria ainda mais lucros no futuro. Precisamente por isso, pensar que poderia restaurar uma grande casa e devolver-lhe todo o seu antigo esplendor atraía-a profundamente. No entanto, o seu desejo não era tão forte que estivesse disposta a casar só para o concretizar.

– Até tem uma maldição – acrescentou o seu pai.

– Uma maldição? Estou certa de que é esplêndida.

– Com certeza que sim. É uma maldição maravilhosa. Havia uma abadia muito poderosa em Derbyshire, a abadia de Branton. Na época em que Henrique VIII se apoderou de todas as terras e bens da Igreja, apropriou-se da abadia e entregou-a ao seu bom amigo Edward Aincourt. O abade de Branton era um velho resmungão que não se rendeu facilmente. Enquanto o expulsavam da igreja, amaldiçoou o Rei e Aincourt. Amaldiçoou também as próprias pedras da abadia, dizendo que nada prosperaria nunca naquele lugar e que jamais alguém que vivesse entre aquelas pedras conheceria a felicidade.

– Ena! É uma maldição impressionante – admitiu Miranda. Conhecendo o amor que o seu pai tinha pelo drama e o romance, não a surpreendia que considerasse uma casa em ruínas com uma maldição o lugar perfeito para a sua adorada filha viver. Para Joseph Upshaw, aquele lugar era um tesouro.

– Pois é. Dizem que Capability Brown desenhou o jardim original. Miranda, como podes sequer pensar em deixar escapar uma oportunidade como esta? Além de que não é só a casa e as terras que necessitam um bom investimento, é toda a propriedade. Tu poderias fazê-lo. Seria um dos teus projectos.

– Sim, tudo parece muito interessante, estou certa, mas sobra o pequeno pormenor de que para poder ter a casa, as terras e tudo o resto, teria de desposar um perfeito desconhecido.

– Mas quando te casasses com ele, já não o seria. Poderíeis ter um compromisso prolongado, se assim o desejares. Entretanto, poderíamos começar a trabalhar na casa.

– Papá, não me vou casar só porque tu estás aborrecido.

– Mas este seria o projecto de toda uma vida! Além de que não é que esteja aborrecido desde que vendi a minha parte ao senhor Astor. Sabes que há anos que quero deitar a mão a uma casa como esta... Miranda, não te estou a pedir que te cases com esse homem esta noite. O único que pretendo é que o conheças e vejas como é. Que consideres a possibilidade.

– Sim, mas depois começarás a perguntar-me o que me pareceu, depois quererás que vá ver a casa e...

– Miranda! Estás a dizer coisas horríveis sobre mim. Como se fosse capaz de acossar-te dessa maneira só para... Está bem – acrescentou, ao ver o modo como a sua filha o olhava. – Acossei-te algumas vezes, admito-o, mas desta vez não. Prometo-te. Só peço que o conheças. Não terá nada de mais ir a um jantar elegante e entabular uma conversa cortês com ele para que possas ver como é. Não poderias fazer isso por Elizabeth e por mim?

– Está bem. De acordo. Suponho que não há nada de mal em que o conheça. Porém, não te prometo nada. Percebeste?

– Perfeitamente! Claro que te percebi! – exclamou Joseph deliciado. Então, aproximou-se da filha e deu-lhe um bom abraço.

– Santo Deus! – disse uma voz vinda da porta. – O que aconteceu?

Ambos se viraram ao ouvir o som da voz da senhora Upshaw. Miranda sorriu à sua madrasta e Joseph olhou para a sua esposa com os olhos repletos de alegria. No seu tempo tinha sido uma bonita mulher, mas a inactividade tinha-a feito engordar, o que a fazia parecer muito mais velha do que realmente era. De facto, apesar de ter apenas mais dez anos do que Miranda, toda a gente achava que Elizabeth era a sua mãe.

– Elizabeth! – exclamou o seu marido. Rapidamente, aproximou-se dela e ajudou-a a sentar-se como se ela fosse demasiado idosa para o fazer ela própria. Na verdade, Elizabeth sofria há anos de doenças reais ou imaginárias e o seu marido encarregava-se sempre de a apresentar como uma mulher frágil. – Aconteceu algo extraordinário. Não te quis acordar esta manhã para te contar, sobretudo tendo em conta o mal que te sentias depois de atravessar o canal.

– Eu sei. Sempre me afectaram muito as travessias – murmurou Elizabeth. – Temo o regresso a Nova Iorque pelo mesmo motivo.

– Talvez não o tenhas de fazer – disse Joseph. – Ou pelo menos, durante algum tempo.

– Porquê? O que queres dizer?

– A Miranda pode casar-se com um Conde.

– Um Conde! – exclamou Elizabeth, erguendo-se com um interesse súbito.

– Papá! – disse Miranda, exasperada. – Já está! Disse-te que ia conhecer esse homem. Não tenho intenção alguma de me casar com ele.

– Mas é um Conde! – disse a sua madrasta, olhando-a com os olhos cheios de incredulidade. – Serias uma Condessa. Oh, Miranda, isso é muito mais do que alguma vez esperei.

Miranda suspirou, desejando do fundo do coração não ter permitido que o seu pai a convencera a conhecer aquele homem. A partir daquele momento, não teria apenas de enfrentar Joseph, mas também sua madrasta.

– Pensa bem... as festas, o casamento... – murmurou Elizabeth, com os olhos transbordantes de alegria. – Tem casa na cidade?

– Não, a Condessa disse-me ontem à noite que o seu marido a teve de vender. Creio que o seu filho, o Conde, tem uma pequena casa de solteiro, mas ela tem de alugar uma durante a temporada que passa em Londres. Parece ser algo que muito a incomoda.

– Suponho que sim. Ter de deixar a que, sem dúvida, devia ser uma magnífica casa para se conformar com uma alugada todos os verões... É uma pena que a festa de casamento não se possa celebrar numa grande casa. Contudo, tu podes comprar uma, querido. Ou seja, temos de ter uma casa em Londres se aqui vamos passar uma longa temporada e...

– Elizabeth, por favor – disse Miranda, muito suavemente. – Não me penso casar com o Conde de Ravenscar. Só disse que...

– Como? – perguntou-lhe a madrasta, incrédula. – O que disseste? Quem nomeaste?

– O Conde de Ravenscar – respondeu Joseph. – É esse o homem de quem falamos como futuro esposo de Miranda... Mmm... para que o conheça, claro. Chama-se Devin Aincourt.

– Meu Deus! – sussurrou Elizabeth, pondo-se de pé. – Não te podes casar com esse homem. É um diabo!

Dois

 

Aquelas palavras deixaram pai e filha sem palavras. Então, Elizabeth corou um pouco e tornou a sentar-se.

– Quero dizer... Bem, não creio que seja uma boa ideia que Miranda se case com ele. É... Bem, tem uma reputação indesejável.

– Conhece-lo, querida? – perguntou-lhe o seu marido.

– Oh, não. Ele estava muito acima das pessoas com que eu me relacionava, claro, mas ouvi falar muito dele. Toda a gente ouviu falar dele. Tem uma reputação escandalosa. Isso antes de ser Conde, claro. Nessa altura, era o seu pai quem detinha o título.

– E o que é que ele tinha? – perguntou-lhe Miranda, com curiosidade. – O que é que fazia?

– Oh, o que fazem habitualmente os jovens nobres – replicou Elizabeth vagamente. – Não é o tipo de coisas adequadas para que escutes.

Miranda fez um gesto de desaprovação.

– Oh, Elizabeth, não sejas assim. Tenho vinte e cinco anos e não sou nada envergonhada. Garanto-te que não vou desmaiar de surpresa.

– Sim, o que é que ele fez, Elizabeth? – perguntou-lhe o esposo.

– Bem, jogava e... relacionava-se com pessoas indesejáveis.

Miranda e seu pai esperaram cheios de expectativa. Quando viram que ela não dizia nada mais, Miranda, muito desiludida, perguntou-lhe:

– Isso é tudo?

– Era... segundo se dizia... um Don Juan. Seduzia jovens mulheres... Levava-as pelo mau caminho – acrescentou Elizabeth, ruborizando-se vivamente enquanto se abanava com o lenço.

– Pois! – exclamou Joseph, rindo. – Gostaria de vê-lo tentar alguma coisa com Miranda. E, se vai casar com ela, acho que não devemos preocupar-nos se lhe vai arruinar a reputação.

– Suspeito que a Elizabeth está mais preocupada com a sua infidelidade, papá – apontou Miranda.

– Infidelidade? Contigo? Gostaria de vê-lo tentar! Confia em mim, querida Elizabeth. Eu assegurar-me-ei de que saiba o que se espera dele.

– Não se espera nada dele – afirmou Miranda. – Não penso casar com ele.

– Claro, querida, não a menos que tu queiras – replicou Joseph. – Mas, Lizzie, isso foi há anos. Era apenas um rapaz, então. Muitos homens comportam-se desse modo quando são uns rapazolas, mas regeneram-se à medida que vão crescendo.

– Sim, eu sei – observou Elizabeth. Contudo, a sua expressão demonstrava que continuava muito preocupada.

– Além de que nos certificaríamos que tudo estaria bem acordado antes de que Miranda se casasse com ele. Não permitiríamos que um esbanjador pusesse em perigo a fortuna de Miranda.

– Eu não estava precisamente a pensar na fortuna – replicou Elizabeth, com certa aspereza, – mas na sua felicidade.

– Eu sei – disse Miranda, sentando-se no sofá ao lado da madrasta, muito emocionada pela sua preocupação. – E aprecio-o muito. De verdade.

– Miranda pode defender-se de qualquer homem – comentou Joseph, muito confiante.

– Claro que posso – observou Miranda, com um sorriso nos lábios. – E isso inclui-te a ti, papá. Tira da ideia que me vais fazer mudar de opinião. Só acedi a conhecer esse tal Conde – acrescentou, apertando ligeiramente a mão de Elizabeth, – e não tenho intenção de casar com ele, garanto-te.

– Ainda não o viste – respondeu Elizabeth, com uma expressão preocupada. – É o tipo de homem que consegue fazer qualquer um mudar de opinião.

– Bonito, não é? – perguntou Joseph. – Bem, isso parece-me bem, não concordas, Miranda?

– E encantador. Ou pelo menos é o que julgo – concluiu Elizabeth.

– Isso foi há catorze anos – comentou Miranda. – Catorze anos de um estilo de vida desregrado podem mudar radicalmente qualquer um.

– Isso é verdade – afirmou Elizabeth, alegrando-se um pouco.

– De qualquer modo, não me vou deixar influenciar por uma cara bonita. Podem ter a certeza. Não se lembram do aspecto tão angelical daquele Conde italiano? Não me senti nada tentada pela sua proposta.

– Eu sei. Ainda consigo ver a cara de espanto que fez quando o rejeitaste.

– Este fará uma cara idêntica – disse Miranda, muito segura de si mesma. – Já vereis.

 

 

Quando a sua mãe e a sua irmã se foram, Devin não pôde esquecer a herdeira americana. Por fim, acabou por agarrar no seu chapéu e sair de casa. Saiu para dar um passeio, esperando que o ar fresco o ajudasse a aclarar as ideias. Efectivamente, quando chegou ao apartamento de Stuart uns minutos mais tarde, sentia-se muito melhor. O pajem de Stuart abriu-lhe aporta, embora parecesse algo surpreendido quando Devin lhe pediu que acordasse o seu senhor.

Com um som de impaciência, Devin deixou-o para trás e subiu as escadas em direcção ao quarto de Stuart, enquanto o pajem o perseguia a correr, numa súplica ansiosa. O ruído despertou Stuart, pelo que, quando Devin abriu a porta, estava já sentado na cama, com uma expressão confundida e exasperada no rosto.

– Olá, Stuart.

– Santo Deus, Ravenscar! – replicou o seu amigo, sem apreciar nada a sua visita. – Que diabo estás a fazer aqui? Que horas são?

– São duas da tarde, senhor – comentou o criado, retorcendo as mãos. – Peço-lhe desculpa, senhor. Não pude evitar que entrasse aqui.

– Desaparece – replicou Stuart. – Não te estou a culpar. Ninguém consegue impedir Ravenscar de entrar em algum sítio. Traz chá. Não, é melhor café. Muito forte.

– Muito bem, senhor – cochichou o criado, à medida que saía do quarto.

– Quando o contrataste? – perguntou-lhe Devin, dirigindo-se a uma cadeira e sentando-se, sem cerimónia, nela. – É muito nervoso.

– Bem sei. Tem medo que o despida. E acho que o farei se persistir em arrumar mal os meus lenços. Sinto a falta de Rickman. Maldito seja esse Holingbroke por mo roubar.

– Não me parece que to tenha roubado. Creio que lhe ofereceu um salário.

– Não há lealdade – murmurou Stuart, com uma expressão triste no rosto. – Maldito sejas, Devin! Que te traz por cá? Tenho uma terrível dor de cabeça.

– Mmm... Eu também não me sinto demasiado bem, mas a minha mãe e a minha irmã visitaram-me há uma hora atrás.

– Isso não é pretexto para que me venhas ver a mim.

– A minha mãe quer que me case.

– Com alguém em particular?

–Com uma herdeira americana. É a filha de um comerciante de peles ou algo parecido.

– Uma herdeira, hum? Alguns nascem com sorte. Como se chama?

– Não faço ideia. Não tenho intenção de me casar com ela.

– Santo Deus! Porque não? Estás nas últimas. Toda Londres o sabe.

– Ainda não me rendi.

– Tens dívidas de jogo para com pelo menos três cavalheiros que conhecemos e sabes que o teu nome se verá manchado se não as saldas depressa. Ontem, tivemos de sair pela porta dos fundos, se bem te lembras, porque esse maldito cobrador estava à tua espera na porta principal. Se não pagares a essa classe de gente, claro que não arruinarás o teu nome, mas é um aborrecimento dar de caras com eles constantemente.

– Eu sei. É muito pior agora do que daquela vez que o meu pai me tirou a renda. Pelo menos, naquela altura toda a gente sabia que eu receberia uma herança quando ele morresse. Entre o que ganhava ao jogo e em mandar passear os que me pediam dinheiro, ia-me safando.

– Mas agora não é o mesmo, não é? Há anos que eu me sinto assim. Como todos sabem que sou o filho mais novo e não herdarei nada, não me concedem nem uma migalha. É muito injusto, mas o que se vai fazer. Os alfaiates são os piores. Como se não fosse suficiente que usemos os seus fatos.

– Isso é verdade – comentou Devin, sorrindo ligeiramente ao escutar a lógica do seu amigo. – São terrivelmente egoístas em querer que ainda por cima lhes pagues.

– Isso foi o que eu disse a esse Goldman, mas ele não fez mais do que insistir para que lhe pagasse. Por fim, tive de lhe dar umas poucas moedas para que calasse a boca. Talvez lhe pague amanhã, agora que ganhei esta aposta... Um momento, agora me lembro que ontem vi um bastão com o punho de ouro... Prefiro gastar o dinheiro nisso. De que serve pagar algo que já tens?

– Tens razão. Estou certo de que o Goldman será compreensivo.

– Oh, não – disse Stuart, sem compreender o sarcasmo que havia nas palavras de Devin. – Começará a gritar. Talvez tenha de começar a ir a outro alfaiate. É pena. Este tipo sabe fazer como ninguém os ombros dos meus capotes, tal como eu gosto... Por certo, porque disseste que tinhas vindo cá?

– Por causa da herdeira americana.

– Oh, sim. Queres dizer que te passa pela cabeça não aproveitar a oportunidade?

– A última coisa que quero agora é uma esposa.

– Sim. Normalmente só importunam. Porém, quando se tem o bolso vazio... Que vais fazer? Já acabaste com toda a tua fortuna. Tu mesmo mo disseste.

– Efectivamente. Os Condes de Ravenscar foram pouco precavidos ao longo dos anos. Inclusive o meu pai, apesar do bom soldado que era, gastava o dinheiro como se fosse água.

– Pois aí tens. Precisas de fazer algo para recuperar a fortuna familiar. É teu dever como Aincourt e tudo o mais. É o que tem de bom não ser o primogénito, não temos de nos preocupar demasiado com a família. Normalmente são coisas aborrecidas, como o dever.

– Sim – disse Dev, após um momento de silêncio. – E a tua irmã?

– Leona? Que tem tudo isto a ver com ela? – perguntou-lhe Stuart, sem entender. Dev alçou a sobrancelha e olhou-o fixamente. – Oh, isso. Bem, não tem nenhuma importância que estejas casado, não é? Leona pôs umas algemas a Vesey. Assim foi desde o princípio dos tempos. Porque não terias tu de te casar também? Essa filha do comerciante de peles não mudará nada. Dá-lhe um herdeiro, envia-a para Darkwater e desfruta de todo o seu dinheiro. Ah! Aí estás! – acrescentou, ao ver que o seu criado entrava com uma bandeja. – Deixa-a em cima da mesa e vai buscar o meu robe. Dev, sê um bom rapaz e abre esse armário. Deve haver uma garrafa de whisky irlandês aí dentro. Assim o café será mais aceitável.

– Claro – disse Dev, fazendo o que o amigo lhe tinha pedido.