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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2009 Christine Rimmer. Todos os direitos reservados.

UM ESTRANHO NA MINHA VIDA, N.º 1369 - Março 2013

Título original: The Stranger and Tessa Jones

Publicado originalmente por Silhouette® Books.

Publicado em português em 2013

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

® Harlequin, logotipo Harlequin e Bianca são marcas registadas por Harlequin Books S.A.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-2561-1

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Capítulo 1

 

– Demasiada neve no caminho – comunicou o condutor do camião, enquanto o rádio tocava. Vestia umas calças impermeáveis e uma camisa de flanela.

O homem que estava sentado no banco do passageiro respondeu com um leve gemido para evitar qualquer tipo de conversa. Tinha uma dor de cabeça terrível. Se falasse, só pioraria. Ainda cheirava a álcool.

Estava bêbado? Não se sentia exatamente bêbado. Sentia-se mal. Muito mal.

Estavam a viajar através de uma estrada de duas faixas, sinuosa e salpicada com sal. Havia tanta neve de ambos os lados que parecia que estavam a atravessar um túnel.

O passageiro fechou os olhos e recostou-se. Dormitou durante um momento. Quando voltou a abri-los, as paredes de neve eram mais baixas. Viu um sinal que indicava que estavam na autoestrada 49.

Chegaram a uma curva muito fechada e o camionista reduziu muito a velocidade. Ao aproximar-se de outra curva, reduziu ainda mais.

Nesse momento, a estrada conduziu-os até uma intercessão. Era o cruzamento entre uma faixa a cujos lados havia grandes árvores e uma rua grande. O passageiro leu os nomes das vias: Caminho de Rambling e Rua Maior. A autoestrada de duas faixas transformou-se na rua principal de uma vila perdida. Passaram à frente do município e dos correios. Depois uma cafetaria, uma loja de bicicletas e uma mercearia chamada Fletcher Gold Sales. A vila parecia tirada de um filme antigo do oeste, muito semelhante às vilas do Texas, rodeadas de grandes montanhas.

Texas. O passageiro franziu o sobrolho. «Sou do Texas?», pensou. «Não», foi a resposta imediata. A cabeça começou a doer-lhe ainda mais.

– Bem-vindo a North Magdalene, na Califórnia. A população aqui pode chegar aos trinta e dois habitantes nos dias mais concorridos.

Deixou o camião num estacionamento que estava junto de um restaurante chamado The Mercantile Grill e do bar The Hole in the Wall. Os travões hidráulicos fizeram barulho quando o veículo parou. O estacionamento estava coberto por uma grande camada de neve.

– É hora de almoço e não tomei o pequeno-almoço. Vou à cafetaria para comer um hambúrguer rápido e encher o depósito. Quero seguir em direção a Grass Valley o mais depressa possível para que não me fechem a estrada.

– Fechar a estrada? – perguntou o passageiro, com o sobrolho franzido.

– «Demasiada neve no caminho», recordas? O homem do tempo disse que a neve que se aproxima vai ser tremenda. Tens fome?

– Não, obrigado – respondeu, esfregando a testa. Realmente doía-lhe muito a cabeça.

– Ouve, eu não gosto de me meter na vida das pessoas, mas não tens bom aspeto. Há uma clínica a uns quilómetros. Vem comigo à cafetaria e encontrarei alguém que queira levar-te e...

– Não – interrompeu, embora não soubesse porque estava a recusar-se a ver um médico. Na verdade, não sabia de nada. Só sabia que tinha a cabeça prestes a rebentar e que estava a controlar-se para não vomitar. – Obrigado, ficarei aqui – acrescentou, antes de sair do camião. Estava muito frio. Quase caiu, mas conseguiu manter-se de pé.

– Tenho um casaco a mais aí dentro. Vou buscá-lo – disse o camionista, tentando dar-lhe uma ajuda.

– Estou bem, obrigado – respondeu, antes de fechar a porta e começar a andar. Não importava para onde ia. Ouviu como se fechava a porta do camião, mas o camionista não o chamou.

Melhor. O homem subiu o colarinho do casaco e encolheu-se. Pôs as mãos nos bolsos e concentrou-se nos seus passos para não sofrer uma queda sobre o gelo que cobria o estacionamento.

Conseguiu chegar à rua. A calçada estava sem neve e andou mais depressa. Tinha o olhar fixo no chão, não queria ver ninguém. A dor de cabeça piorava com cada passo e tinha muita fome.

Virou numa rua e o vento golpeou-o com força. Sentiu mil agulhas geladas a atravessar o seu corpo. Andou devagar porque as botas que tinha, apesar de serem caras, não tinham sido feitas para a neve. Os pés estavam a começar a congelar porque estavam molhados. Doía-lhe todo o corpo. Parecia que lhe tinham dado uma surra. Tinha as calças rasgadas à altura dos joelhos. O casaco, para além de cheirar mal, tinha umas manchas de gordura e estava rasgado de lado.

Não sabia o que lhe acontecera exatamente, mas, certamente, não fora nada bom.

Passaram ao seu lado alguns todo-o-terreno e carrinhas. O homem teve a sensação de que se lhes tivesse feito um sinal, teriam parado.

Mas então teria tido de falar. Teriam feito perguntas. E o homem não queria perguntas. Afinal de contas, não tinha respostas.

Chegou até ao Caminho de Rambling e atravessou a outra rua que também tinha árvores dos lados, a rua Locust. Talvez as árvores o protegessem do vento.

Mas não foi assim. As árvores cortavam o vento, era verdade, mas estava mais frio sob a sombra dos seus ramos. E ele tinha o frio nos ossos.

O que demónios estava a fazer? Como chegara até ali?

As perguntas desapareceram ao sentir uma nova pontada na cabeça. Continuou a respirar, apesar de os seus dentes não pararem de bater.

– Perguntas não – murmurou. – Respostas não. Não quero mais perguntas...

Carteira.

De repente, a palavra veio-lhe à mente e parou na estrada. É óbvio. Se tivesse a sua carteira poderia descobrir o seu nome, finalmente. E onde vivia.

Esperançado, reviu os bolsos com dedos trémulos. Primeiro o casaco, depois as calças.

Nada.

Chegou a abrir o casaco para o caso de ter um bolso interior. Mas não. Estava vazio como os outros. Apercebeu-se de que a camisola que vestia também estava manchada de gordura. Era azul. De repente, pensou no nome do tecido da camisola: caxemira.

Era uma camisola cara. Fechou novamente o casaco. Tinha um galo na testa, várias nódoas negras e cortes no resto do corpo. No entanto, não tinha carteira. Também não tinha relógio, nem anéis, nem joias de nenhum tipo. As suas roupas eram da melhor qualidade, mas não eram as mais adequadas para um dia de inverno na montanha.

Califórnia. O camionista dissera-lhe que estavam na Califórnia. Nas montanhas.

«Serra», pensou quase com um sorriso, apesar da dor. «Estou nas montanhas da Serra Nevada, na Califórnia, numa vila chamada North Magdalene. Podia ser pior. Podia estar morto...»

Por alguma razão estranha, achou graça àquele pensamento e riu-se.

No entanto, sentiu novamente as pontadas na cabeça e no estômago. Ajoelhou-se à espera que passasse aquela agonia, tentando respirar.

De repente, uma imagem invadiu a sua mente. Estava a amanhecer e estava frio. Estava sobre um cavalo à frente de uma pradaria deserta e no céu brilhavam as cores da alvorada. Havia alguém ao seu lado, também sobre um cavalo. Quando se virou para ver quem era...

A imagem desapareceu.

Fechou os olhos e emitiu um gemido. Obrigou-se a levantar-se. A dor, que subia e descia em vagas, suavizou e as náuseas começaram a desaparecer. Levantou a cara para as árvores escuras.

Neve. Tal como o camionista previra. Sentiu a neve nas faces, nas sobrancelhas, nas pestanas. Abriu os olhos. Sim, estava a nevar. Estava a nevar com tanta força que os flocos atravessavam a camada dos ramos das árvores.

O vento soprava com força e agitava os ramos. Começou a andar novamente, encolhido, e pensou que ia morrer. No entanto, tinha tanto frio e sentia-se tão mal que a ideia da morte começou a parecer um alívio.

Nesse momento, ouviu um som estranho. Parou e olhou à sua volta. Por um instante, pensou que o ruído se produzira na sua cabeça.

Mas não. Voltou a ouvi-lo. Parecia o som do vidro a partir-se ou... de pratos.

Alguém estava a partir pratos? Na Serra Nevada, no meio de uma tempestade de neve?

Os flocos não paravam de cair. Então, ouviu uma voz.

– Bill, como pudeste? – era a voz de uma mulher. Depois, ouviu-se outro prato partido. – Odeio-te, Bill. Mentiste-me – disse, antes de voltar a partir outro prato.

O homem deixou de lado os seus pensamentos sobre a morte e entrou entre as árvores, para o lugar de onde provinha o som. Andou uns metros e parou. Divisou uma clareira entre as árvores. Ali havia uma casa pequena forrada com madeira. Tinha o telhado vermelho e o fumo saía por uma chaminé de metal. Inspirou fundo e percebeu o cheiro forte da lareira. Devia ter percebido antes.

E ali estava a mulher. Estava sozinha e fora da casa. Não havia nem rasto do rapaz que estava a insultar. Só ela, uma caixa grande com pratos e o objetivo, um grande cedro.

Ao fundo da árvore havia uma grande quantidade de pedacinhos de vidros às cores, que iam sendo cobertos pela neve.

O homem sentiu-se perturbado e teve vontade de vomitar. Abraçou-se à árvore mais próxima. Pestanejou e depois olhou para a mulher.

Era alta. Uma mulher grande, não gorda, mas robusta. Devia ter vinte anos. Vestia um casaco e um gorro de lã às riscas que terminava num pompom. Tinha cabelo loiro e comprido e ao seu lado estava a caixa ainda cheia de louça. Os pratos eram de muitas cores diferentes. Um arco-íris à espera junto dos seus pés.

O homem voltou a pestanejar e tentou recuperar da confusão. A mulher baixou-se e agarrou outro prato.

– Imbecil!

Por um instante, o homem teve dúvidas se estaria a referir-se a ele. Mas não. Ela tinha o olhar perdido e não se apercebera da sua presença. Baixou-se para apanhar outro prato.

– Prometeste-me, prometeste-me. Disseste-me que virias ao casamento, Bill. Disse a todos que virias – prosseguiu. Tinha um prato em cada mão e atirou os dois. Os pedaços de louça espalharam-se por todos os lados. – Mas não. Oh, não! Não podias vir até North Magdalene, apesar da tua promessa. Preferiste ir para Las Vegas à procura de sorte. Las Vegas... Apaixonaste-te por uma corista. E ela apaixonou-se por ti. Uma corista? Tu? – perguntou, antes de lançar um copo. – Diz-me, Bill, como consegue um condutor de autocarro fraco e com os dentes separados, um rapaz tímido incapaz de dizer duas frases seguidas com sentido à frente de uma mulher, acabar casado com uma corista? Explica-me isso, Bill Toomey. Como é possível? – Atirou três pratos, um branco, um preto e uma cor de laranja. – Especialmente, quando no passado mês de setembro me juraste, Bill, juraste que me amavas com todo o teu coração – atirou uma tigela cor-de-rosa. – A mim, Bill.

A neve não parava de cair e cobria o cabelo da rapariga. Afastou as madeixas da cara e dobrou-se para pegar em mais munições.

– Juraste-me que me amavas e que querias passar o resto da tua vida ao meu lado – acrescentou.

O homem de trás das árvores franziu o sobrolho.

– Outra rainha do drama – murmurou. E imediatamente perguntou-se porque dissera aquilo.

Deu um passo à frente, apesar de o instinto de sobrevivência o avisar de que não era sensato aproximar-se de uma mulher furiosa com boa pontaria, provida de uma caixa cheia de louça.

No entanto, dirigiu-se para ela, devagar ao princípio e, depois, mais depressa, já que o vento soprava com força entre as árvores. Chegou à clareira do bosque e ela, que acabara de atirar um prato, viu-o e deu um grito de surpresa.

– Que demónios...? – começou a dizer. Inclinou-se e agarrou uma travessa. Mostrou-a como ameaça. – Para. Não te aproximes nem mais um passo.

Ele continuou a andar. A travessa parecia maciça. Se lhe batesse, ia doer-lhe muito mais a cabeça. No entanto, por algum estranho motivo, não pôde deixar de se aproximar.

– Preciso... Por favor... Eu.

– Último aviso. Para aí – disse, levantando mais o braço.

– Não... não – acrescentou ele. Sentiu um assobio tremendo nos ouvidos. Levou as mãos às orelhas, apesar de saber que não serviria de nada, porque o assobio vinha de dentro. Emitiu um gemido e caiu.

Foi uma queda lenta e eterna, em que o assobio e o frio aumentaram. Viu-se a cair no ar, a flutuar como uma folha ou como uma pena.

Então, depois de uma eternidade, caiu sobre a neve. Olhou para o céu cinzento ou, melhor, tentou porque a neve estava a cair com tanta força que lhe custou abrir os olhos. Os flocos de neve amontoaram-se nas suas pestanas. Pestanejou. O assobio extinguiu-se e o homem deixou escapar um leve suspiro de alívio.

Havia alguém junto dele, na neve. A mulher loira. Estava ajoelhada, olhando para ele de perto. Tinha o nariz e as faces vermelhas pelo frio. Cheirava bem. O seu olhar era quente e doce.

Já não parecia zangada, mas preocupada.

Preocupada e... amável.

«É boa. É uma mulher boa. Eu podia ter uma mulher boa na minha vida», pensou.

A sua vida...

Que confusão! Estava deitado na neve, sem nome, sem ter ideia de quem era nem de onde vinha...

Ela acariciou suavemente o seu rosto. Ele conseguiu sentir o calor, apesar das luvas de lã.

– Lamento.

– Lamenta? – perguntou o homem, com o sobrolho franzido.

– Ter-te ameaçado com a travessa.

– Ah, bom. Não faz mal.

– Devia ter percebido que estavas ferido. Mas saíste do nada...

– Não quis... assustar-te – disse. Tinha os lábios dormentes. Era como se não quisessem falar.

– Vou pedir ajuda.

O homem agarrou-lhe o braço.

– Não, fica.

– Precisas de um médico.

– Fica – insistiu.

– Oh, pobrezinho – acrescentou ela, voltando a acariciá-lo.

– Tenho mau aspeto, não é?

– O que se passou? – perguntou, docemente. Tinha os olhos verdes e um olhar muito quente.

– Oxalá soubesse – murmurou, com esforço. – Como te chamas? – cada palavra custava-lhe mais do que a anterior.

– Tessa. Tessa Jones.

– Tessa – repetiu. – É bonito, eu gosto.

A mulher disse mais alguma coisa, mas ele já não ouviu. Fechou os olhos e foi para longe da paisagem cheia de neve e da mulher amável que cheirava tão bem.

Capítulo 2

 

O estranho apertou o braço de Tessa com menos força e depois a sua mão caiu sobre a neve.

Ela deu um grito. Oh, meu Deus, teria morrido?

Tessa tirou uma luva e tocou-lhe no pescoço para sentir a pulsação. Estava muito frio e a cor da sua pele era arroxeada, mas sentia os seus sinais vitais. E, quando se inclinou, sentiu a respiração do homem sobre a sua pele. Respirava lentamente e o seu fôlego era quente.

Estava vivo.

O seu hálito era doce, no entanto, o casaco cheirava a álcool. Era estranho, mas isso não era o mais importante naquele momento.

O mais importante era conseguir ajuda. Ajuda para aquele homem.

Tessa levantou-se. A neve caía com força. Oxalá tivesse o telemóvel ali, mas quase nunca o tinha com ela. Não fazia sentido, já que em North Magdalene as montanhas dificultavam a rede e o telefone, se funcionasse, era de maneira intermitente.

Voltou a olhar para o homem. Não lhe parecia bem deixá-lo deitado na neve, mas que outra coisa podia fazer?

Ouvia sempre dizer que não era seguro mexer uma pessoa ferida, que era preciso esperar que os serviços de emergência o fizessem.

Rapidamente tirou o casaco, inclinou-se e tapou o estranho com cuidado.

– Prometo que voltarei depressa – sussurrou, enquanto o agasalhava.

Levantou-se. Foi a correr para a casa, tão rápido como pôde, entre a neve. Lá dentro, esperavam Mona Lou, uma cadela bulldog velha e surda, e Gigi, uma gata branca e fraca.

A cadela ladrou e a gata miou.

Tessa esquivou-as e dirigiu-se para o telefone da cozinha. De caminho, tirou as luvas. Quando pegou no telefone, só ouviu mais silêncio. Voltou a tentar. Nada. Provavelmente, algum ramo caído com o peso da neve tinha arrastado os cabos. E pela intensidade da neve, certamente, os operários demorariam algum tempo a repará-los. Não podia contar com recuperar a linha em breve.

O que ia fazer?

Subiu para o quarto, seguida pela cadela e pela gata, e agarrou no telemóvel que deixara sobre a cama. Tentou telefonar para o número de emergências, havia sinal, mas perdeu-o imediatamente. Tentou novamente.

Não houve maneira. Não era possível. Ia ter de tratar do estranho inconsciente sozinha. Não sabia como, mas não havia outra opção.

E ia ter de o fazer depressa. Pelo menos, a sua carrinha tinha tração às quatro rodas e poderia conduzi-la, apesar da tempestade de neve. Tinha de pôr o estranho no veículo e levá-lo à clínica.

De repente, lembrou-se do trenó. O seu pai oferecera-lho há anos e estava no alpendre envidraçado.

– Desejem-me sorte – murmurou aos seus animais, enquanto calçava as luvas.

Agarrou noutro casaco, tirou uma manta de lã do armário e pegou nas chaves da furgoneta que estavam penduradas no chaveiro da cozinha.

Estava pronta para enfrentar aquele desafio quase impossível. Aproximou-se da porta e virou-se antes de sair.

– Fica! – ordenou a Mona Lou.

A cadela não conseguia ouvir muito, mas era capaz de ler a expressão e a linguagem corporal da sua dona. Sentou-se, gemendo.

Já no alpendre, Tessa agarrou no trenó e pô-lo sob o braço. Pronta, saiu para a tempestade.

Ainda bem que pusera o casaco arroxeado ao estranho porque a neve estava a cair com tanta força que podia ter passado horas à procura dele. Mas depressa divisou uma mancha de cor brilhante e localizou-o.

Conseguiu pôr a cabeça e o peito do homem sobre o trenó. Enquanto o fazia, não parou de sussurrar desculpas por estar a mexê-lo. Voltou a tapá-lo com o casaco e pôs-lhe a manta por cima. O trenó era muito pequeno e o homem não parecia estar muito confortável.

No entanto, Tessa não podia fazer mais nada. Agarrou as cordas do trenó e começou a puxar, fazendo um esforço considerável. Dirigiu-se para a carrinha que estava estacionada perto da casa.

Como conseguiu? Não tinha resposta. Com muita dificuldade e entre gemidos, agarrou o homem com força e conseguiu pôr aquele corpo inconsciente no banco de trás. Depois, rapidamente, Tessa entrou no carro e, de dentro, voltou a puxar o corpo para o deixar deitado. Finalmente, dobrou os joelhos do homem para que os seus pés ficassem dentro do veículo, agasalhou-o novamente com o casaco e a manta e fechou as duas portas traseiras.

Tessa estava a suar, apesar do vento gelado. Pôs-se ao volante e ligou o motor. Ligou o aquecimento ao máximo e ativou o mecanismo antigelo do carro porque, sem ajuda, a neve gelada não ia desaparecer.

Emitiu um gemido de impaciência. Saiu e tirou a neve congelada que cobria o vidro. Era consciente de que estava a perder um tempo precioso porque o estranho precisava de ajuda imediatamente. Quando a maior parte do vidro ficou limpo, entrou novamente no carro e empreendeu o caminho.

Teve sorte porque conseguiu alcançar a estrada sem muita dificuldade. No entanto, a neve caía tão copiosamente que Tessa mal conseguia ver. Os limpa-para-brisas eram muito lentos porque a neve se empilhava a toda a velocidade. Mas a neve não ia pará-los. Usou o travão de mão e saiu novamente para limpar o vidro.

Entrou no carro e prosseguiu o caminho. Depressa, a neve voltou a tapar o vidro, apesar do trabalho dos limpa-para-brisas. Estava a nevar muito. Tessa nunca vira uma tempestade de neve igual.

Nesse momento, os limpa-para-brisas pararam. Ela desligou-os e voltou a ligá-los. Conseguiram ativar-se, mas pararam depressa por causa da resistência da neve e do gelo. Voltou a desligá-los. Parou o motor, saiu do carro e voltou a tirar toda a neve e o gelo que pôde.

Regressou e tentou novamente. Os para-brisas funcionaram. Durante um minuto ou dois. Era lógico. Nem os melhores limpa-para-brisas do mundo teriam resistido a uma neve tão intensa.

Tessa tentou conduzir com a cabeça de fora da janela aberta, mas os flocos de neve impediam-na de ver.

Não podia ser. Não se atrevia a seguir em frente.

Emitiu um gemido. Estava realmente preocupada com a saúde do estranho. Fez marcha atrás e regressou pelo mesmo caminho. Muito devagar.

Finalmente, conseguiu. Pôs a carrinha no mesmo sítio onde estivera estacionada.

– Oh, lamento – disse ao homem, como se estivesse a ouvi-la. – Realmente lamento, mas era muito perigoso seguir em frente.

Tessa apoiou a cabeça sobre o volante e emitiu um gemido. Estava assustada e frustrada. Depois, saiu energicamente do carro.

Era uma Jones. Um homem Jones era um tipo duro, resistente e teimoso. E uma mulher Jones? Era ainda mais teimosa, afinal de contas, passava a maior parte da sua vida a aguentar um Jones.

O homem doente precisava de proteção e calor. Um lugar quente em que descansar. Tessa podia oferecer-lhe isso.

E ia fazê-lo.

Capítulo 3

 

Calor.

Embora parecesse impossível, aquecera novamente. Emitiu um gemido e abriu os olhos. A primeira coisa que viu foi um teto. Estava dentro de um quarto. Deitado numa cama, com a cabeça apoiada numa almofada branca, coberto por lençóis limpos e várias mantas. Havia um armário contra a parede e uma poltrona num canto. Também uma porta fechada... seria uma casa de banho? E uma aberta que dava para um corredor.

O céu plúmbeo via-se através da janela grande que havia junto da cama. Os flocos de neve não paravam de cair.

O relógio que havia sobre a mesa de cabeceira dizia que eram quatro e quinze da tarde. Vagamente, o homem recordou que desmaiara na neve. Acreditava que fora por volta do meio-dia, por isso deduziu que estivera inconsciente durante quase duas horas.

Observou as paredes do quarto. Havia muitas fotografias emolduradas e penduradas. A maioria de pessoas que nunca vira na sua vida.

No entanto, reconheceu uma pessoa: a mulher loira e grande que partira os pratos enquanto se queixava de um tal Bill. Ela aparecia em várias fotografias.

«Estou num quarto da casa da rapariga loira», pensou. Lembrava-se da casa. O teto de zinco, a chaminé e o fio de fumo contra o céu cinzento...

A loira devia tê-lo levado até ali depois de ele desmaiar de frio. Não sabia como. Talvez houvesse mais alguém lá. Alguém que estava dentro da casa e que tivesse saído quando ele perdera os sentidos, alguém que teria ajudado a rapariga.

Tinha a boca muito seca. Precisava de água. Havia um jarro e um copo sobre a mesa de cabeceira. O homem agarrou o jarro e voltou a deixá-lo no sítio. Não tinha forças e se tentasse encher o copo acabaria encharcado.

Emitiu um gemido, mas conseguiu levantar-se. Sentiu vertigem e voltou a recostar-se.

Momentos depois, repetiu a operação, mas mais devagar. Pôde manter-se sentado até a cabeça deixar de dar voltas. Nesse momento, apercebeu-se de que tinha o peito nu e de que uma grande quantidade de nódoas negras e feridas cobriam o seu corpo. Retirou as mantas.

A rapariga também lhe tinha tirado as calças e deixara-lhe só os boxers, uns pretos. Pareciam de seda. Ou seria cetim? Sorriu levemente... nem sequer reconhecia a sua roupa interior.

O sorriso desapareceu no momento em que continuou a fazer um inventário das feridas. Tinha os pés e as pernas cobertos de nódoas negras e a rapariga ligara-lhe os cortes dos joelhos.

Tocou na cara e ardeu-lhe a ferida que tinha na testa. Sentia-se tão fraco que depressa se apercebeu de que não ia ser capaz de se servir de um copo de água.

Penoso. Simplesmente penoso. Fechou os olhos, deitou-se novamente sobre a cama e cobriu-se com as mantas. Olhou à sua volta à procura da roupa.

Se estava ali, não a encontrou.

Noutro lugar da casa ouviu uma conversa. O murmúrio de umas vozes. Ao princípio, pensou que seria a loira a falar com alguém, possivelmente com a pessoa que a ajudara a deitá-lo na cama. Mas depois ouviu a música conhecida de um anúncio. Alguém estava a ver televisão.

Por uns instantes, pensou em ficar quieto à espera que aparecesse alguém e percebesse que estava acordado ou a recuperar forças. No entanto, queria saber se a rapariga loira estava ali ou se estava sozinho e tinham deixado a televisão ligada.