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Á procura da Gobi

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Á procura da Gobi

Título original: Finding Gobi

© 2017, Dion Leonard

© 2018, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente pela HarperCollins Español uma divisão da HarperCollins Christian Publishing.

Tradutor: Ana Filipa Velosa

 

Todos os direitos estão reservados, incluídos os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Christian Publishing, Nashville, U.S.A.

Desenho da capa: Kristen Paige Gathany

Design original da capa: © 2017 Thomas Nelson

Imagens da capa: Jasper James

 

ISBN: 978-84-9139-257-6

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Á procura da Gobi

Créditos

Sumário

Dedicatoria

Prólogo

Primeira parte

1

2

3

4

Segunda parte

5

6

7

8

9

Terceira parte

10

11

12

Quarta parte

13

14

15

16

Quinta parte

17

18

19

20

Sexta parte

21

22

23

24

Agradecimentos

Sobre o autor

Se gostou deste livro…

Dedicatoria

 

 

 

 

 

Para a minha esposa, Lucja.

Sem o teu apoio incansável, dedicação e amor, isto nunca teria sido possível.

Prólogo

 

 

 

 

 

 

A equipa de gravação acabou ontem à noite; amanhã chega alguém da editora. Ainda sinto no corpo o jet lag e outros efeitos secundários das quarenta e uma horas de viagem, daí eu e a Lucja termos tomado a decisão de fazermos com que esta nossa primeira corrida do ano seja fácil; ainda por cima, não temos só de pensar em nós os dois. Temos de pensar na Gobi.

Avançamos com toda a calma ao passar em frente do pub, descer pela lateral do Palácio de Holyrood e ver o céu de um azul limpo que dá lugar ao monte coberto de verde que domina o horizonte de Edimburgo: Arthur’s Seat. Eu já subi até lá tantas vezes que não me lembro da maioria, mas sei que pode ser brutal. O vento de frente pode chegar a ser tão forte que nos empurra para trás; o granizo pode rasgar-nos a pele qual faca afiada. É em dias assim que suspiro pelos 49ºC de calor do deserto.

Mas hoje não há nem vento nem granizo. Não há nada de brutal no ar enquanto subimos, como se o monte se quisesse exibir em todo o seu esplendor perante o céu claro e sem nuvens.

Mal calcamos a erva, a Gobi transforma-se. A cadelinha, que de tão minúscula até se pode levar debaixo do braço, converte-se num leão feroz à medida que sobe a encosta.

— Olha! — diz a Lucja. — Olha só a energia que ela tem!

Antes de eu poder responder, a Gobi vira-se, de língua de fora, olhos brilhantes, orelhas espetadas e pose altiva. É como se tivesse percebido o que a Lucja disse.

— Ainda não viste nada — digo eu enquanto acelero um pouco o ritmo numa tentativa de afrouxar a pressão da trela. — Era assim que se portava quando estávamos na montanha.

Subimos mais um pouco, cada vez estamos mais perto do cume. Dou por mim a pensar que, embora lhe tenha dado o nome de um deserto, vi a Gobi pela primeira vez nas escarpas frias e acidentadas de Tian Shan. Ela é uma verdadeira escaladora e a cada passo que damos fica um pouco mais espevitada. Logo a seguir, abana a cauda tão rapidamente que quase se esbate e todo o corpo salta e palpita de pura alegria. Quando ela torna a olhar para trás, eu quase podia jurar que está a sorrir. Diz: Vá lá! Vamos embora!

No cume, deleito-me com essas paisagens tão familiares. À nossa frente espraia-se toda a cidade de Edimburgo; mais além situam-se a ponte Forth, as colinas do lago Lomond e o trilho de West Highland; eu já corri cada um dos seus cento e cinquenta e quatro quilómetros. Também consigo avistar North Berwick, à distância de uma maratona completa. Adoro correr à beira-mar, mesmo nos dias duros em que o vento me açoita e sinto que cada quilómetro é uma batalha a ultrapassar.

Já passaram mais de quatro meses desde que estive aqui. Embora seja tudo muito familiar, também há uma coisa diferente.

A Gobi.

Ela decide que já é momento de descer e arrasta-me ladeira abaixo. Não pelo caminho, mas em linha reta. Eu lá vou aos saltos sobre tufos de erva e pedregulhos do tamanho de malas; a Lucja vai seguindo o ritmo atrás de mim. A Gobi contorna-os a todos com uma enorme destreza. Eu e a Lucja entreolhamo-nos e rimos, gozando o momento que tanto tínhamos ansiado de sermos uma família e podermos correr juntos.

Em geral, correr não é tão divertido como hoje; de facto, para mim correr nunca é divertido. Talvez gratificante e satisfatório, mas nunca divertido ao ponto de fazer rir. Não como é agora.

A Gobi quer continuar a correr, por isso deixamo-la ser ela a comandar as hostes. Leva-nos por onde lhe apetece, umas vezes mais acima no monte, outras vezes mais abaixo. Não há nenhum plano, nem nenhum roteiro predeterminado. Também não há preocupações nem problemas. É um momento despreocupado e sinto-me grato por isso e por muitas outras coisas.

Após os últimos seis meses, sinto que é disso que preciso.

Tenho enfrentado coisas que nunca pensei que enfrentaria, e tudo isso devido à pequena bola de pelo castanho que me puxa o braço como se mo quisesse arrancar. Encarei o temor como nunca antes o conheci; também senti desespero, daquele que deixa o ar que nos rodeia viciado e sem vida. Enfrentei a morte.

Mas essa não é a história completa. Há muito mais.

A verdade é que a pequena cadelinha me mudou de uma forma que só agora começo a perceber. Talvez nunca chegue a perceber completamente.

No entanto, sei o seguinte: a procura da Gobi foi uma das coisas mais difíceis que já fiz na vida.

Mas ser encontrado por ela, isso foi uma das melhores coisas.

Primeira parte

1

 

 

 

 

 

Após atravessar as portas do aeroporto, dei por mim na China. Fiz uma pausa e permiti que os meus sentidos se habituassem ao forte impacto daquele caos. Mil motores a acelerar no estacionamento travavam uma batalha contra mil vozes que me rodeavam enquanto o gentio gritava ao telefone.

Os sinais estavam escritos no alfabeto chinês e também no que me pareceu ser árabe. Eu não sabia ler nenhuma das duas línguas, de modo que me juntei à multidão de corpos que calculei que estivessem à espera de táxi. Eu era trinta centímetros mais alto do que a maioria das pessoas mas, no que lhes dizia respeito, era invisível.

Estava em Urumqi, uma cidade em rápido crescimento situada na província de Xinjiang, no alto do canto superior esquerdo da China. Nenhuma cidade do mundo fica tão longe de um oceano como Urumqi, e enquanto chegávamos por via aérea, vindos de Pequim, observei como o terreno ia mudando: passava de montanhas abruptas e nevadas a vastas extensões de deserto vazio. Algures ali em baixo, uma equipa de organizadores de corridas tinha traçado um percurso de duzentos e cinquenta quilómetros que incluía picos gelados, ventos incessantes, e o mato árido pejado de arbustos conhecido como o deserto de Gobi. Eu pretendia atravessá-lo a correr, o que equivalia a ligeiramente menos de uma maratona por dia durante quatro dias, depois quase duas maratonas no quinto dia, seguido de um sprint final de uma hora a toda a velocidade na derradeira etapa de dez quilómetros que poria fim à corrida.

Este tipo de corrida é denominado «ultramaratona», e é difícil pensar numa prova mais brutal em termos de resistência física e mental. Pessoas como eu pagam milhares de dólares pela mordomia de aguentar uma agonia pura, em que se perdem cinco por cento do peso corporal no processo, mas vale a pena. Conseguimos correr em algumas das partes mais remotas e mais pitorescas do mundo e temos ao nosso lado uma rede de segurança de uma equipa dedicada e uma equipa médica com muita formação. Às vezes, estes desafios podem chegar a ser intensos e atrozes, mas também são transformadores.

Às vezes, as coisas não me correm assim tão bem. Como da última vez que tentei correr seis maratonas numa semana e terminei no meio do pelotão em agonia. Nesse momento, senti-me num estado terminal, como se nunca mais pudesse voltar a competir, mas recuperei o suficiente para poder repetir uma última vez. Se conseguisse correr bem na corrida do deserto de Gobi, talvez me restassem ainda mais algumas corridas; afinal, desde que tinha começado a levar as corridas a sério três anos atrás, tinha descoberto a maravilha que era estar em cima do pódio. O pensamento de nunca mais voltar a competir revolvia-me o estômago.

Se as coisas corressem realmente mal, como tinha acontecido a outro competidor nessa mesma corrida uns anos antes, eu podia acabar morto.

Segundo a Internet, o trajeto do aeroporto até ao hotel demorava uns vinte ou trinta minutos, mas quanto mais nos aproximávamos desse intervalo de tempo, mais agitado se mostrava o motorista. Quando me deu um preço três vezes mais alto do que eu esperava, disse-mo mal-humorado, e desde aí as coisas foram de mal a pior.

Quando chegámos e parámos ao lado de um edifício de tijolo vermelho, ele agitava os braços e tentava fazer-me sair do táxi. Olhei pela janela, e depois outra vez para a imagem de baixa resolução que lhe tinha mostrado quando iniciámos a viagem. Só era minimamente parecida semicerrando um pouco os olhos, mas era óbvio que não me tinha levado a um hotel.

— Acho que está a precisar de óculos, amigo! — disse eu, tentando manter um tom baixo e fazê-lo ver o lado divertido. Não funcionou.

A contragosto, agarrou no telefone e gritou a alguém no outro extremo da linha. Quando finalmente chegámos ao meu destino, ele estava furioso; ao afastar-se sacudia os punhos enquanto queimava os pneus.

Não é que a mim me tivesse incomodado. As ultramaratonas flagelam o corpo, tal como também atacam a mente. Aprende-se rapidamente a bloquear distrações e coisas um tanto desagradáveis como unhas dos pés caídas ou mamilos que sangram. O stresse proveniente de um taxista enfurecido não era nada que eu não pudesse ignorar.

 

 

O dia seguinte foi outra história.

Tinha de me afastar da cidade umas centenas de quilómetros no comboio de alta velocidade para chegar à sede central da corrida numa cidade grande chamada Hami. Desde o preciso momento em que cheguei à estação em Urumqi, soube logo que me esperava uma viagem que poria a minha paciência à prova.

Nunca tinha visto tanta segurança numa estação de comboios. Havia veículos militares por toda a parte, barricadas temporárias de metal que canalizavam os viajantes, e trânsito que passava ao lado de guardas armados. Tinham-me dito que previsse duas horas para embarcar no comboio, mas enquanto olhava fixamente para a grande vaga de pessoas que tinha pela frente, perguntei-me se esse período de tempo seria suficiente. Se a viagem de táxi do dia anterior me tinha ensinado alguma coisa foi que, se perdia o comboio, com toda a certeza seria incapaz de ultrapassar a barreira da língua e voltar a reservar outro bilhete; se não chegasse nesse dia no ponto de encontro da corrida, quem sabe se me iam deixar participar?

O pânico não me ia ajudar a chegar a lado nenhum. Controlei a respiração, disse a mim próprio para me acalmar, e atravessei lentamente o primeiro controlo de segurança. Quando o passei sem problemas e consegui saber para onde me devia dirigir para ir buscar o meu bilhete, descobri que estava na fila errada. Pus-me na correta, e então já estava muito atrasado. Se isto fosse uma corrida, pensei, estava no fim do pelotão. Eu nunca corria no fim.

Quando consegui o bilhete, restavam-me menos de quarenta minutos para passar por outro controlo de segurança, para um polícia com excesso de zelo examinar o meu passaporte com a minúcia de um médico-legista, para abrir caminho à força até me situar à frente de uma fila de cinquenta pessoas que esperavam para despachar a bagagem, e para ficar de pé, boquiaberto, ofegante e a olhar freneticamente para sinais e letreiros que não sabia ler, a perguntar-me para onde diabo me devia dirigir para encontrar a plataforma correta.

Felizmente, eu não era totalmente invisível, e um homem chinês que tinha estudado em Inglaterra tocou-me ao de leve no ombro.

— Precisa de ajuda? — perguntou-me.

Senti vontade de lhe dar um abraço.

 

 

Tinha o tempo contado para me sentar na zona de partidas quando toda a gente à minha volta se virou e observou enquanto a tripulação do comboio passava ao nosso lado. Parecia uma cena tirada de um aeroporto dos anos cinquenta: os pilotos de farda imaculada, luvas brancas e um ar de segurança total; as hospedeiras com uma aparência perfeita.

Segui-os até ao comboio e, exausto, afundei-me no meu lugar. Tinham passado quase trinta e seis horas desde que saí de casa em Edimburgo, e fiz um esforço para esvaziar a minha mente e o meu corpo da tensão que tinha estado a acumular até então. Olhei pela janela à procura de alguma coisa de interesse, mas durante horas a fio o comboio limitou-se a deslizar por uma paisagem insonsa que não estava cultivada o suficiente para ser terra agrícola, nem tão vazia que se pudesse considerar um deserto. Era apenas terra, e assim continuou durante centenas e centenas de quilómetros.

Exausto e stressado. Não era bem assim que me queria sentir ao estar tão perto da maior corrida que alguma vez enfrentara até então na minha breve carreira como corredor.

Tinha participado em eventos mais com mais prestígio, como a mundialmente famosa Maratona das Areias[1], universalmente considerada a corrida mais exigente do mundo. Em duas ocasiões tinha estado na linha de partida junto a outros mil e trezentos participantes e tinha competido atravessando o Sahara com temperaturas que atingiam os 38ºC de dia e se colapsavam até aos 4,5ºC durante a noite. Inclusivamente tinha conseguido acabar num respeitável trigésimo segundo lugar da segunda vez em que participei. Mas tinham passado quinze meses desde então e muitas coisas tinham mudado.

Tinha começado a dar pelas mudanças durante uma corrida pelo deserto do Kalahari, em que me tinha esforçado ao máximo, demasiado, para terminar em segundo lugar, a minha «primeira chegada com pódio» numa corrida por etapas. Não me mantive bem hidratado e, como resultado, tinha a urina da cor da Coca-Cola. No meu país, o médico disse-me que eu tinha causado uma diminuição do tamanho dos meus rins devido à falta de líquido, que correr tanto os tinha danificado, tendo como consequência a presença de sangue na urina.

Uns meses depois, comecei a ter palpitações cardíacas durante outra corrida. Senti o coração a bater descontroladamente e fui assolado por um ataque duplo de angústia e tonturas.

Esses dois problemas voltaram a aparecer assim que iniciei a Maratona das Areias. Por sinal, ignorei a dor e obriguei-me a prosseguir todo o percurso até terminar entre os cinquenta primeiros. O problema foi que o esforço fora tal que, assim que cheguei a casa, o tendão isquiotibial esquerdo sofria espasmos violentos e dolorosos sempre que tentava andar, já para não falar de correr.

Estive em repouso durante os primeiros meses; depois, durante os meses seguintes, entrava e saía das consultas de fisioterapia, onde ouvia constantemente o mesmo: precisava de experimentar qualquer que fosse a combinação nova de exercícios de força e adaptação que eles me sugeriam. Experimentei todos; nada me ajudou a voltar a correr.

Foi necessária grande parte de um ano para encontrar algumas pessoas que soubessem o que me estava a acontecer e descobrir a verdade: parte do meu problema era que não estava a correr corretamente. Eu sou alto, meço mais de 1,82, e embora sentisse como fácil e natural a minha passada longa, regular e grande, não estava a recorrer a todos os músculos que deveria.

Portanto, a corrida na China era a minha primeira oportunidade numa competição dura de pôr à prova a minha nova passada, mais rápida e mais curta. Em muitos aspetos sentia-me fenomenal. Tinha conseguido correr durante horas seguidas em casa sem sentir dor e tinha seguido à risca a dieta normal que antecedia uma corrida. Durante os três meses anteriores tinha evitado por completo o álcool e a comida rápida, cingindo-me quase exclusivamente a frango e legumes. Até tinha eliminado o café, com a esperança de que isso pusesse fim às palpitações.

Se tudo isso desse resultado e eu corresse tão bem como julgava ser capaz na China, enfrentaria a prestigiada corrida que os organizadores tinham programado mais para a frente: atravessar as planícies salinas do Atacama no Chile. Se ganhasse, estaria em plena forma para regressar à Maratona das Areias no ano seguinte e chegar a ser alguém de renome.

 

 

Fui o primeiro passageiro a descer quando chegámos a Hami e estava à frente do grupo quando nos dirigimos para a saída. Pensei: Assim é melhor.

O guarda do posto de segurança acabou rapidamente com a minha alegria.

— O que o traz cá?

Via uma longa fila de táxis no exterior, todos eles à espera junto a um passeio vazio que os passageiros solicitassem os seus serviços. Tentei explicar-me acerca da corrida e dizer que queria sair e chamar um táxi, mas soube que era inútil. Ele olhava de modo trocista para o meu passaporte e para mim, e depois indicou-me que o seguisse até um camião que fazia as vezes de escritório.

Demorei meia hora a explicar para que é que serviam todos os pacotes de gel energético e alimentos desidratados, ainda assim não fiquei convencido de que ele tivesse acreditado. Principalmente acho que me deixou ir por cansaço.

Quando consegui sair e chegar ao passeio, a multidão tinha-se esfumado, tal como os táxis.

Estupendo.

Fiquei ali sozinho à espera. Estava cansado e queria que a ridícula viagem terminasse.

Trinta minutos depois chegou um táxi. Tinha imprimido em caligrafia chinesa a morada do meu hotel antes de sair de Urumqi e, enquanto fazia sinais à taxista, agradou-me ver que ela pareceu dar por isso. Instalei-me no banco de trás, colei os joelhos contra a grade de metal e fechei os olhos enquanto partíamos.

Ainda nem tínhamos percorrido trinta metros quando o veículo parou. A motorista estava a aceitar outro passageiro. Tu deixa-te ir, Dion. Queixar-se não ia servir de nada; pelo menos, até que ela se virou para mim, apontou para a porta e deixou perfeitamente claro que o outro passageiro era um cliente muito melhor e que eu já não era bem-vindo no táxi.

Regressei a pé, passei outros vinte minutos até atravessar os inevitáveis controlos de segurança, e pus-me na fila outra vez, sozinho, no passeio deserto dos táxis.

Finalmente, chegou outro táxi. O motorista estava contente e foi educado, e soube exatamente onde ir; de facto, parecia ter tanta confiança que quando se deteve diante de um edifício grande e cinzento dez minutos depois, não me ocorreu comprovar se estava realmente no hotel correto; entreguei o dinheiro, tirei o saco depois de sair e ouvi-o afastar-se.

Só quando cheguei à entrada é que reparei que estava claramente no lugar errado. Não era um hotel, mas um bloco de escritórios. Um bloco de escritórios no qual ninguém falava inglês.

Durante quarenta minutos tentei comunicar-me com eles, eles tentaram comunicar-se comigo, e os telefonemas que fiz para sabe-se lá quem não nos ajudaram em nada. Quando vi um táxi passar lentamente à porta do prédio, agarrei no saco e saí a correr, tendo suplicado ao taxista que me levasse onde precisava de chegar.

Trinta minutos depois, enquanto estava de pé a contemplar a cama vazia no hotel que os organizadores tinham reservado, respirei de alívio em voz alta.

— Nunca, nunca mais vou voltar à China.

 

 

O que me incomodava não era a frustração de não ser capaz de me comunicar adequadamente, nem sequer as dores musculares ou a fadiga extrema. Tinha lutado todo o dia contra o impulso de me preocupar, mas à medida que foi chegando uma coisa, depois outra, acabei por ficar nervoso; não era lógico e não fazia sentido. Recordei a mim próprio uma e outra vez que tinha programado tempo suficiente para chegar de Pequim até ao começo da corrida, e pensei que mesmo que tivesse perdido o comboio podia ter encontrado um modo de remediar as coisas; sabia no mais profundo do meu ser que qualquer dor produzida pelos dois dias anteriores desapareceria mal começasse a correr.

Ainda assim, quando cheguei ao hotel que ficava perto da sede da organização da corrida estava mais ansioso do que antes de qualquer outra corrida em que tivesse participado.

A fonte do meu nervosismo não era a viagem e também não era o conhecimento dos desafios físicos que tinha pela frente; era algo mais, bem mais profundo do que isso.

Era a preocupação de que aquela pudesse ser a minha última corrida. Era o medo de que algo que eu amava estivesse prestes a ser-me arrebatado.

 

 

Terça-feira, 3 de janeiro de 1984. No dia seguinte ao meu nono aniversário. Foi então que percebi pela primeira vez como a vida pode mudar de um momento para o outro. O dia tinha sido estupendo, envolvido por um belo sol de verão australiano. De manhã, tinha andado de bicicleta e saltado alguns obstáculos que eu próprio tinha fabricado enquanto o meu pai e a minha mãe liam os jornais e a minha irmã de três anos brincava no jardim perto do apartamento da Nan no andar de baixo da casa. Finalmente tinha sido capaz de aperfeiçoar a cambalhota no trampolim e, depois do almoço, o meu pai e eu fomos para o exterior com os nossos tacos de críquete e algumas bolas velhas. Ele estava a recuperar de uma bronquite, e era a primeira vez em muitíssimo tempo que fazia um pouco de desporto comigo ao ar livre. Ensinou-me a segurar o taco da maneira correta para bater na bola de forma tão dura e tão alto que percorresse o relvado e chegasse para além do limite longínquo da nossa propriedade.

Quando ao fim da tarde finalmente entrei em casa, descobri que estava cheia dos aromas da cozinha da minha mãe. Ela estava a cozinhar há horas o seu pudim de chocolate a vapor e uma bolonhesa tão boa que eu enfiava a cabeça por cima da panela e inalava o cheiro tanto tempo quanto conseguisse sem me queimar.

Foi um dia perfeito.

Como qualquer miúdo de nove anos, neguei estar cansado quando chegou a hora de ir para a cama, mas pouco depois adormeci, sem saber que a minha mãe tinha ido para a sua aula de aeróbica de domingo à noite enquanto o meu pai via críquete na televisão com o som muito baixo.

— Dion!

Eu não queria acordar. Estava escuro, e a minha cabeça ainda estava metida no curioso mundo dos sonhos.

— Dion! — voltei a ouvir a voz do meu pai. Não havia nenhum outro som em casa, nenhuma televisão ligada nem vestígios da minha mãe em lado nenhum.

Eu não sabia porque é que ele me gritava assim e voltei a adormecer.

Não sei dizer quanto tempo é que o meu pai continuou a gritar o meu nome, mas a dada altura percebi que tinha de me levantar e ir ver o que é que queria.

Ele estava deitado na cama, debaixo de uma manta; não olhou para mim quando entrei e eu não queria penetrar demasiado no quarto. A sua respiração era esquisita, como se tivesse de usar toda a força que possuía para poder inspirar e encher os pulmões de ar. Algo me dizia que estava muito doente.

— Vai imediatamente chamar a tua avó, Dion.

Eu desci as escadas a correr e bati à porta da Nan.

— Nan, tens de vir — disse eu. — O pai precisa de ti. Passa-se alguma coisa.

Ela saiu de seguida e eu segui-a de novo até ao andar de cima. Lembro-me de pensar que o meu pai ia ficar bom porque ela tinha sido enfermeira no passado. Quando eu ou a minha irmã mais nova, a Christie, nos aleijávamos, a Nan fazia-nos sempre rir enquanto nos curava as feridas, e contava-nos histórias de quando ela trabalhava num hospital para repatriados de guerra como enfermeira-chefe. Era uma mulher forte, uma lutadora que eu achava que tinha nas mãos o poder para fazer desaparecer qualquer doença ou dor.

Assim que viu o meu pai, foi chamar uma ambulância. Eu fiquei com ele enquanto ela fazia o telefonema, mas assim que regressou disse-me para sair do quarto.

A Christie estava a dormir no quarto contíguo, eu fiquei ali de pé a observar e a ouvir a respiração do meu pai a piorar e a Nan a falar com uma voz que nunca a tinha ouvido usar.

— Garry — disse ela —, a ambulância está a caminho. Estás a ter um ataque de asma. Mantém a calma, Garry. Fica comigo.

A Christie acordou com o barulho e começou a chorar.

— O pai não se sente bem, Christie — disse eu a tentar imitar a Nan —, mas já aí vêm pessoas ajudar.

Atravessei o corredor a correr para abrir a porta assim que ouvi a ambulância lá fora. Observei-os a subir as escadas com uma maca e um aparelho para respirar e vi em silêncio quando levaram o meu pai uns minutos depois. Não queria olhar para ele. Continuava a lutar para respirar e tinha a cabeça a tremer, e eu ouvia o ranger de uma das rodas da maca enquanto o levavam.

Segui-os até lá fora, onde a luz dos faróis e dos candeeiros e dos piscas faziam com que a noite parecesse estar fora do tempo. Enquanto metiam o meu pai na parte de trás da ambulância, com a cara coberta por uma máscara de oxigénio e a cabeça inclinada para um lado, a minha mãe chegou de carro. Ao sair do carro, ao princípio estava em silêncio, mas depois começou a gritar enquanto se punha ao lado da Nan na parte de trás da ambulância.

— As coisas vão-se resolver — disse a Nan. Acho que a minha mãe não a conseguia ouvir.

— Amo-te — disse o meu pai enquanto ela se aproximava dele. Aquelas foram as suas últimas palavras.

Eu, a Christie e a Nan ficámos ali enquanto a minha mãe ia com o meu pai na ambulância. Não sei quanto tempo estivemos sozinhos, ou nem sequer se estivemos, mas lembro-me de que foi por volta da meia-noite quando finalmente se abriu a porta da frente. A minha mãe entrou com um médico ao lado e nenhum dos dois teve de dizer nada. Eu e a Nan soubemos o que tinha acontecido. De seguida eu, a minha mãe e a Nan desatámos a chorar. Pouco tempo depois, o telefone começou a tocar. A Nan atendeu, em voz baixa, e os telefonemas nunca duraram mais de uns minutos. Quando tocaram à campainha e as primeiras vizinhas chegaram e abraçaram com força a minha mãe, eu desapareci e fui para o meu quarto.

No dia do funeral, vi como levavam sobre rodas o caixão do meu pai para o carro fúnebre. Escapuli-me da minha mãe que tinha a mão sobre o meu ombro e corri para pará-lo. Estiquei-me o máximo possível sobre a caixa de madeira, mas não serviu de nada. Os meus braços não a conseguiam rodear totalmente. Quando o pranto, de tão forte, me provocou dores no peito, chegou alguém que me tirou dali.

 

 


[1] Também conhecida como Marathon des Sables. (N.T.)

2

 

 

 

 

 

Pouco depois da morte do meu pai, a minha mãe mudou-se para o andar de baixo onde a Nan tomou conta dela, da Christie e de mim. Foi como se a minha mãe voltasse a ser uma criança e já não fosse capaz de continuar a ser uma mãe para nós.

Talvez eu não passasse de um menino de nove anos, mas qualquer parvo poderia ter detetado os sinais. O dia em que a surpreendi no seu quarto, a olhar fixamente para um frasco grande de comprimidos que tinha na mão e com marcas de lágrimas secas na cara, confirmou o facto de ela não estar a ultrapassar a dor.

Isso aconteceu umas semanas após a morte do meu pai. Precisei de alguns meses para descobrir que os seus problemas não eram causados só pela tristeza. Estávamos os dois na cozinha uma tarde; ela estava a limpar, uma nova obsessão que tinha começado recentemente, e eu estava sentado à mesa a ler.

— Dion — disse-me ela sem qualquer advertência prévia nem rodeios —, o Garry não era teu pai.

Não me lembro de chorar ou sair dali espavorido para me esconder. Não me lembro de gritar ou pedir à minha mãe que mo explicasse. Não tenho nenhuma lembrança do que disse depois, nem me lembro de como me senti. Existe um vazio que deveria estar ocupado por essas lembranças. Só consigo imaginar que essa notícia foi provavelmente tão dolorosa para mim que apagou da minha mente qualquer rasto dela.

Mas o que sei bem é que a ferida que a morte do meu pai, a morte do Garry, me infligiu chegou a ser tão profunda que mudou tudo em mim.

Mesmo hoje em dia, a minha mãe chora quando eu e ela falamos da morte do Garry. Ela dirá que bastou uma viagem de vinte minutos de ambulância para que tudo mudasse nas nossas vidas. Tem razão, mas também está enganada: quiçá a vida se tivesse convertido num caos em apenas vinte minutos, mas foram necessárias unicamente seis palavras para que o meu coração entristecido ficasse em pedaços.

 

 

Aferrei-me com força ao meu segredo. Um ou dois anos após descobrir a verdade sobre mim próprio, tinha vergonha do meu passado: eu não era só o menino sem um pai em casa, era também o único que eu conhecia que tinha uma mãe solteira. O fluxo regular de visitantes que se produziu depois do funeral tinha parado há muito tempo, e a nossa economia decrescente obrigou a minha mãe a procurar emprego. Sempre que ela estava em casa, passava horas nas limpezas ao som altíssimo das músicas do Lionel Richie na aparelhagem que havia na sala impoluta.

Na minha cabeça, parecia que todos os meus amigos provinham de famílias perfeitas e, como todos eles iam à igreja, eu também ia ao domingo. Queria sentir que pertencia a algum lado, e também gostava do facto de me poder servir de uma mão-cheia de bolinhos após o serviço. Não me importava muito com os sermões, às vezes até me faziam sentir melhor comigo próprio; mas o modo como que as pessoas me respondiam quando me aproximava da mesa do chá no final da missa denotava que me viam de forma diferente de todos os outros. Ouvia-os sussurrar nas minhas costas e, assim que me virava, fazia-se um silêncio incómodo e esboçavam sorrisos falsos.

A minha mãe também começou a receber telefonemas. Eu tentava esconder-me no corredor e observar enquanto ela ficava ali de pé, com a cara virada para a parede e os ombros encurvados. As suas palavras eram entrecortadas, os telefonemas breves e, algumas vezes quando terminavam, ela virava-se e via-me à espreita, e contava-me os últimos boatos que as pessoas andavam a espalhar sobre nós na cidade.

Pouco depois, eu próprio me deparei com o ostracismo. Quando fui a casa de um amigo num sábado à tarde, vi a sua bicicleta sobre a relva, portanto sabia que ele estava em casa; no entanto, a sua mãe disse-me que não podia sair para brincar.

— Não podes ver o Dan — disse ela ao fechar a porta mosquiteira que nos separava.

— Porquê, Sra. Carruthers?

— És uma má influência, Dion. Não queremos que voltes a aparecer por aqui.

Eu afastei-me devastado. Eu não bebia, não dizia palavrões, não me portava mal na escola nem me metia em problemas com a polícia. Bem, era um pouco ganancioso com os bolinhos na igreja, mas para além disso era sempre educado e tentava ser simpático.

Ela só podia estar a referir-se a uma coisa.

Eu não tinha um nome para isso naquele tempo, mas rapidamente desenvolvi uma forte aversão ao sentimento de exclusão. Quando tinha catorze anos, conhecia bem o lugar ao qual pertencia na vida: ao exterior.

 

 

Estava sentado, como fazia sempre, sozinho e afastado dos outros quando a equipa da corrida começou com as instruções de segurança. A organização da corrida recaía num grupo com o qual eu nunca tinha corrido antes, mas tinha estado em muitas dessas reuniões e sabia bem de que é que iam falar.

O maior perigo para qualquer um que corra uma ultramaratona por etapas sob o sol do deserto é quando o esgotamento devido ao calor, a desidratação costumeira, os choques, as tonturas e a pulsação rápida, se convertem em insolação. Eis então que chegam sintomas mais drásticos, nomeadamente confusão, desorientação e convulsões. Não se sabe o que está a acontecer; não se é capaz de detetar os sinais, e é aí que se corre o risco de acabar caído numa valeta ou de tomar decisões erradas precisamente no momento em que mais é preciso afastar-se do calor, repor sais e líquidos e reduzir drasticamente a temperatura. Se isso não se fizer, pode-se entrar em coma e acabar por morrer.

Os organizadores da corrida disseram que se suspeitassem de que alguém estava no limite do esgotamento por calor, essa pessoa seria imediatamente retirada da competição. O que não disseram foi que seis anos antes um dos participantes na mesma corrida tinha morrido devido a insolação.

Passaram o microfone a uma mulher americana. Eu reconheci-a como a fundadora da corrida.

— Este ano temos alguns grandes corredores em prova — disse —, incluindo o inigualável Tommy Chen.

Houve aplausos entre os cem corredores que havia na sala, que dirigiram o olhar para um tipo taiwanês que tinha junto a si a sua própria equipa de gravação, a filmar o momento. Eu tinha ouvido dizer que o Tommy era um vencedor nato, que já tinha conseguido alguns resultados extraordinários.

Eu sabia que ele era um dos melhores que havia, e sabia que ele era uma superestrela genuína da ultramaratona. Sabia que seria difícil vencê-lo.

Antes de sair da Escócia, tinha lido um e-mail dos organizadores onde enumeravam os dez principais corredores que esperavam que terminassem numa boa posição. Não havia qualquer menção à minha pessoa, apesar de ter vencido alguns deles no passado. Uma parte de mim continuava aborrecida por isso, mas não por ser uma ofensa ao meu ego; não havia razão alguma pela qual não esperassem que eu acabasse numa boa posição. Como não tinha competido nos últimos oito meses, desde que o fiz numa corrida de 212 quilómetros no Camboja, tinha-me convertido num zé-ninguém esquecido, e não os culpava pelo esquecimento.

Estava chateado comigo próprio. Tinha começado a correr há apenas três anos, e chegar tão tarde significava que tinha uma janela diminuta na qual demonstrar a minha valia. Tinha a sensação de que ter dedicado oito meses a recuperar-me tinha sido uma perda de tempo precioso.

 

 

Antes da palestra fizemos uma verificação do equipamento, para nos assegurarmos de que cada um tinha mochilas que continham todos os bens essenciais. Embora cada um leve toda a comida, cama e roupa de que irá precisar durante a corrida de seis etapas e sete dias, o objetivo é manter o peso da mochila no mínimo. Para mim, isso implica não levar várias mudas de roupa, nem tapete para dormir, nem livros ou telemóvel para me manter entretido no final de cada etapa. A única coisa que levo é um saco-cama, uma única muda de roupa, e a quantidade mínima absolutamente indispensável de comida para poder sobreviver. Conto com 2000 calorias por dia, embora saiba à partida que vou queimar perto de 5000. Quando regresso a casa pareço um morto, mas vale a pena para levar uma mochila mais leve.

Mais tarde nesse mesmo dia, enfiaram-nos em autocarros e levaram-nos para o lugar onde começaria a corrida, a duas horas da cidade. Dei dois dedos de conversa com um homem que ia ao meu lado, mas a maioria do tempo mantive-me calado e a tentar bloquear o som dos três tipos que tinham chegado de Macau e estavam atrás de mim, a rir e a falar em voz muito alta durante todo o caminho. Algumas vezes virei-me e lancei-lhes um meio sorriso, esperando que entendessem a minha subtil indicação para que se calassem. Eles limitaram-se a sorrir e continuaram com a festa. Quando chegámos, eu estava bastante farto e à espera de poder sair dali e encontrar paz e sossego para começar a preparar-me mentalmente para a corrida.

Os nativos tinham organizado uma linda exibição de folclore regional e montaria de cavalos, que incluía um jogo parecido ao polo mas que se jogava com uma ovelha morta. Eu escapuli-me para encontrar a tenda onde ia ficar e ocupar o meu lugar. Na maioria das ultramaratonas atribui-se aos corredores parceiros de tenda com quem acampar durante a corrida. Nunca se sabe quem nos pode calhar, mas pelo menos é preciso garantir que não se fica numa localização terrível para dormir.

Estava de pé na velha tenda do exército e perguntava-me onde me colocar. Nunca tinha gostado de ficar perto da porta por causa das correntes de ar e costumava estar bastante frio na parte de trás. Decidi arriscar-me e instalar-me num lugar do meio, esperando que o ressonar e os protestos dos meus colegas de acampamento não me mantivessem acordado.

Conferi pela última vez o equipamento enquanto chegavam os três primeiros colegas, que me pareceram bastante sensatos e não causaram alvoroço na escolha dos respetivos sítios.

Caiu-me tudo ao chão quando ouvi barulho de risos, olhei para cima e vi entrar os três tipos de Macau.

 

 

Embora fosse verão, a temperatura era consideravelmente mais fria quando o sol se punha. O presidente da localidade fez um discurso que eu não consegui entender, mas a mostra de danças mongóis e a corrida de cavalos a grande velocidade foi suficiente para me distrair um pouco. Alguns dos corredores estavam sentados por ali a jantar, mas eu preferi dar uma volta. Desviei-me e fui observar a equipa de gravação do Tommy Chen, mas pouco depois estava a pensar em regressar à tenda. Quando as pessoas começaram a perguntar umas às outras com que tipo de calçado iam correr, quanto pesavam as mochilas de cada uma, ou se tinham trazido provisões extra, isso indicou-me sem dúvida nenhuma que tinha de sair dali. Participar nesse tipo de conversa no dia anterior ao começo de uma corrida nunca é boa ideia. Assim que encontramos alguém que esteja a fazer as coisas de forma diferente, começamos logo a duvidar de nós próprios.

Olhei para o relógio, eram seis e meia. Hora de jantar. Embora esperar possa ser difícil quando estou nervoso e já está escuro, não me esqueço de comer a horas num dia de corrida. Não é preciso comer demasiado cedo para o corpo não consumir essas calorias antes de começar realmente a correr.

Peguei na minha comida, enfiei-me no saco-cama e comi em silêncio na tenda.

Já queria estar a dormir antes de os outros chegarem.