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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2016 HarperCollins Publisher

© 2016, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Título em português: Sem igual

Título original: Unrivaled

Publicado por HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização de HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

 

Tradutor: Fátima Tomás

Design da capa: Quirós Publicidad

Ilustração da capa: Dreamstime.com

 

ISBN: 978-84-16502-61-5

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S. L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Dedicatoria

Cita

Prólogo

Um mês antes

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Capítulo 33

Capítulo 34

Capítulo 35

Capítulo 36

Capítulo 37

Capítulo 38

Capítulo 39

Capítulo 40

Capítulo 41

Capítulo 42

Capítulo 43

Capítulo 44

Capítulo 45

Capítulo 46

Capítulo 47

Capítulo 48

Capítulo 49

Capítulo 50

Capítulo 51

Capítulo 52

Capítulo 53

Capítulo 54

Capítulo 55

Capítulo 56

Capítulo 57

Agradecimentos

 

 

Para Jackie e Michelle, as minhas melhores amigas há tantas décadas que lhes perdi a conta.

 

 

Nem tudo o que reluz é ouro.

William Shakespeare

Prólogo

 

ESTRELAS PERDIDAS

 

 

LOST STARS

Adam Levine

 

Apesar da multidão de turistas que enche as calçadas ano após ano, Hollywood Boulevard é um lugar que convém ver através de uns óculos de sol polarizados e sem muitas expectativas.

Entre a fila de edifícios antigos em diversas fases de decadência, as lojas de lembranças saloias precedidas por estátuas de plástico de Marilyn com o seu vestido branco a esvoaçar ao vento e o desfile interminável de drogados, jovens fugidos de casa e transeuntes desprovidos de todo o glamour, as massas de turistas de chinelos de praia brancos não demoram muito a perceber que não vão encontrar ali a cidade de Los Angeles que procuram.

Numa urbe que se alimenta da juventude e da beleza, Hollywood Boulevard assemelha-se mais a uma antiga diva do grande ecrã que já conheceu tempos melhores. O sol incessante é um companheiro brutal e desanimado, empenhado em destacar cada ruga, cada mancha da pele.

E, no entanto, para aqueles que sabem procurar (e para os afortunados que têm o seu lugar na lista de convidados), também serve de oásis: um oásis povoado pelos clubes noturnos mais cobiçados da cidade, uma espécie de porto de abrigo hedonista para jovens fabulosamente ricos.

No caso de Madison Brooks, a avenida era tal como tinha sonhado. Talvez não se assemelhasse ao globo de neve que tivera em criança, no qual caíam purpurinas douradas sobre uma reprodução em miniatura do famoso letreiro de Hollywood, mas também não esperava que fosse parecido. Ao contrário daqueles turistas ingénuos que esperavam ver os seus atores favoritos à espera junto das estrelas do Passeio da Fama, a distribuir autógrafos e abraços por todos os que passassem por ali, Madison sabia muito bem o que ia encontrar.

Informara-se de antemão.

Não deixara nada ao acaso.

Afinal, quando se planeia uma invasão, convém estar-se familiarizado com o terreno.

E agora, apenas alguns anos depois de chegar àquele terminal de autocarros sujo no centro de Los Angeles, a sua cara aparecia na capa de quase todas as revistas e tabloides. A cidade era oficialmente dela.

Embora o caminho tivesse sido muito mais árduo do que aparentava, Madison conseguira ultrapassar as expectativas de toda a gente, exceto as suas próprias. A maioria só esperava que sobrevivesse. Nem uma única pessoa da sua vida anterior acreditara que ela conseguiria chegar ao topo à velocidade de um raio, que passado algum tempo fosse tão conhecida, tão aclamada e tivesse tantos contactos que estivesse em situação de aceder, sozinha e sem que ninguém questionasse o seu direito de estar ali, a um dos clubes noturnos mais famosos de Los Angeles muito depois da hora de fecho.

Num dos seus raros momentos de solidão, aproximou-se da beira do terraço deserto do Night for Night. Os saltos de agulha dos seus Gucci deslizaram delicadamente pelo chão de pedra. Levando uma mão ao coração, inclinou-se para a linha do horizonte e imaginou que aquelas luzes intermitentes eram um público formado por milhões de pessoas: telemóveis e isqueiros levantados em sua honra.

Aquela fantasia recordou-lhe um jogo a que costumava entregar-se quando era criança, quando representava números musicais elaborados diante de uma multidão de peluches sujos, estragados e com o pelo empastado. Os olhos de botão, fixos e baços, olhavam-na sem pestanejar enquanto dançava e cantava diante deles. Aqueles ensaios incansáveis tinham-lhe servido de preparação para o dia em que os seus peluches de segunda mão se convertessem em fãs de carne e osso que a aclamariam entre gritos de júbilo. Nunca, nem uma só vez, tinha duvidado de que o seu sonho se tornaria realidade.

Não se tinha tornado a estrela mais brilhante de Hollywood apenas por ter ilusões, fantasiar ou recorrer à ajuda de outros. A sua ascensão fora sempre guiada pela disciplina, o autocontrolo e uma determinação férrea. Embora os meios de comunicação tivessem prazer em retratá-la como uma rapariga frívola e amante de festas (embora com evidente talento para a representação), sob os títulos escandalosos escondia-se uma jovem enérgica e decidida que tomara as rédeas do seu destino e o submetera à sua vontade.

Ela jamais o admitiria, certamente. Era preferível deixar que o grande público acreditasse numa princesa cuja vida fluía sem qualquer obstáculo. Era uma mentira que lhe servia de escudo e que impedia que se soubesse a verdade. Quem se atrevia a olhar sob a superfície nunca chegava muito longe. O caminho para o passado de Madison estava tão cheio de barricadas que até os jornalistas mais decididos acabavam por desistir e escreviam a respeito da sua beleza inigualável, como o tipo que a tinha entrevistado recentemente para a Canito Fair, segundo o qual o seu cabelo era da cor das castanhas maduras num dia frio de outono. Também tinha descrito os seus olhos violetas como envoltos num nimbo de pestanas espessas que umas vezes servia para velar e outras, para desvelar. E, por acaso, não tinha qualificado também a sua cútis de «opalina» ou «evanescente», ou empregando algum outro sinónimo de «radiante»?

Tinha graça que tivesse começado a entrevista como qualquer outro jornalista experiente, confiante de que conseguiria fazê-la ceder. Convencido de que a sua grande diferença de idades (ela tinha dezoito, ele ultrapassava amplamente os quarenta: um idoso em comparação), juntamente com o seu quociente intelectual superior (coisa que ele assumia, não ela), significava que conseguiria enrolá-la para que revelasse algo comprometedor que fizesse estremecer a carreira dela. No entanto, tinha saído da entrevista completamente frustrado e um pouco apaixonado por ela. Tal como todos os seus predecessores, que, embora a contragosto, tinham tido de reconhecer que Madison Brooks tinha algo diferente. Não era uma estrela comum.

Inclinou-se mais um pouco para a escuridão, passou os dedos pelos lábios e descreveu um arco amplo com o braço, lançando beijos aos seus fãs imaginários, que brilhavam e reluziam lá em baixo. Embriagada pela euforia sem limites que lhe produzia tudo que tinha obtido, levantou o queixo com ar triunfal e soltou um grito tão ensurdecedor que abafou o ruído incessante do trânsito e das sirenes da rua.

Era agradável desinibir-se.

Deixar-se ser tão selvagem e indomável como fora em criança, nem que fosse só por um instante.

— Consegui! — disse a si mesma em voz baixa, enquanto as luzinhas dos seus fãs imaginários continuavam a brilhar ao longe.

Mas dizia-o sobretudo a quem tinha duvidado dela e inclusive tinha tentado frustrar os seus sonhos.

Da segunda vez que o disse, deixou que aflorasse o sotaque marcado que tinha abandonado há muito tempo e surpreendeu-a que ainda lhe fosse tão fácil evocá-lo: era outro vestígio do seu passado de que nunca conseguiria livrar-se por completo. E, tendo em conta a temeridade que tinha demonstrado ultimamente, perguntava-se se queria mesmo livrar-se dele.

A lembrança do rapaz que tinha beijado continuava fresca nos seus lábios. Pela primeira vez em muito tempo, permitira-se relaxar, baixar a guarda e mostrar-se como era.

Mesmo assim, não conseguia evitar perguntar-se se não teria sido um erro.

A mera ideia de que o fosse bastou para a apavorar, mas foi ao olhar para o seu Piaget com diamantes engastados que encontrou verdadeiros motivos de preocupação.

A pessoa com quem ia encontrar-se já deveria estar ali e o seu atraso, juntamente com o silêncio do clube fechado e deserto, começava a parecer-lhe mais opressivo e fantasmagórico do que libertador. Apesar do calor da noite de verão da Califórnia, fechou mais um pouco o xaile de caxemira. Se havia algo que a fazia estremecer era a incerteza. Ter o controlo era tão necessário para ela como respirar. E, no entanto, ali estava, a duvidar da mensagem que ele lhe enviara.

Se fossem boas notícias, como lhe tinha assegurado, esqueceria aquele incómodo e não voltaria a olhar para trás.

Se não fossem… bom, também tinha um plano para essa eventualidade.

Esperava, no entanto, que não fosse necessário. Odiava que as coisas se complicassem.

Agarrou-se com os dedos delicados à parede fina de vidro, a única coisa que a separava de uma queda de doze metros, levantou o olhar para o céu e tentou encontrar uma única estrela que não fosse na realidade um avião. Mas, em Los Angeles, as estrelas eram de um só tipo.

Embora normalmente tentasse não pensar no passado, naquela noite, por um instante, permitiu-se recordar um lugar onde abundavam estrelas a sério.

Um lugar que devia permanecer enterrado.

Uma brisa acariciou-lhe as faces, levando-lhe o ruído de passos ligeiros e um aroma estranhamente familiar que não conseguiu identificar. No entanto, esperou alguns segundos antes de se virar e aproveitou aquele instante para pedir um desejo a uma estrela cadente que de início confundiu com um avião. Fez figas enquanto descrevia um arco amplo e reluzente através do céu escuro e aveludado.

Ia correr tudo bem.

Não precisava de se preocupar.

Virou-se, pronta para enfrentar tudo, fosse o que fosse, e estava a dizer a si mesma que, de qualquer forma, conseguiria controlá-lo quando uma mão firme e fria lhe tapou a boca e Madison Brooks desapareceu como por arte de magia.

 

Um mês antes

1

 

BEIJO HIPÓCRITA

 

 

HYPOCRITICAL KISS

Jack White

 

Layla Harrison não conseguia estar quieta. Primeiro, sentou-se na sua espreguiçadeira e enterrou os pés na areia da praia. Em seguida, deitou-se e ficou assim um bocado, até que o roçar da lona começou a provocar-lhe uma comichão incómoda nos ombros. Por fim, deu-se por vencida e, semicerrando os olhos, olhou para o mar, onde Mateo, o seu namorado, aguardava a chegada de uma onda decente: um empenho tedioso que Layla não conseguia entender e que, pelo contrário, era fonte de felicidade infinita para ele.

Apesar do muito que o amava (e amava-o realmente; era tão bonito, tão sensual e tão terno que teria de ser louca para não o amar), depois de passar três horas a evitar o sol sob o seu guarda-sol gigantesco, enquanto tentava escrever um artigo mais ou menos aceitável que contivesse a dose correta de humor e sarcasmo, desejou que Mateo desistisse de uma vez e empreendesse o longo caminho de volta à praia.

Estava claro que o seu namorado ignorava como era insuportavelmente incómodo passar horas sem fim sentada na espreguiçadeira velha e fraca que lhe tinha emprestado, mas como poderia sabê-lo? Afinal, nunca a usava. Estava sempre no mar, com a sua prancha e aquele ar de estar totalmente em paz, tão bonito e tão zen, enquanto ela, Layla, fazia tudo o possível para escapar do esplendor de Malibu. O guarda-sol enorme sob o qual se escondia era apenas o princípio.

Por debaixo da suéter larga e da toalha que pusera sobre os joelhos tinha uma camada espessa de protetor solar e, naturalmente, jamais se aventurava a sair sem os seus óculos de sol grandes e sem o chapéu de palha amachucado que Mateo lhe tinha trazido de uma das últimas viagens à Costa Rica para fazer surfe.

Na opinião de Mateo, aquele empenho ritual em tapar-se e proteger-se do sol era, no mínimo, inútil. «Não podes dominar o que te rodeia», dizia. «Há que respeitá-lo, apreciá-lo e jogar conforme as suas regras. É uma loucura pensar que tu é que mandas, a Natureza tem sempre a última palavra.»

Era fácil dizê-lo quando se tinha uma pele imune a queimaduras do sol e praticamente se crescera em cima de uma prancha de surfe.

Layla voltou a fixar o olhar no seu portátil e franziu o sobrolho. Escrever um blogue foleiro de mexericos distava muito da coluna fixa no New York Times com que sonhava, mas tinha de começar por algum sítio.

 

Desenvolvimento interrompido

 

Não, não me refiro à série de culto que deixou de ser emitida por ser demasiado engenhosa (Como puderam deixar de a emitir? Ai, custa tanto estar rodeada de idiotas!). Falo, minha gente, do verdadeiro desenvolvimento interrompido, daquele de que falam os manuais de introdução à Psicologia (E isto é para aqueles de vocês que leem mais do que tweets e blogues de mexericos). Esta vossa cara amiga presenciou ontem à noite um exemplo muito claro no Le Château, quando três das estrelas mais jovens e explosivas de Hollywood (embora não das mais brilhantes) chegaram à conclusão de que as azeitonas serviam para mais do que para ficar simplesmente no fundo de um copo de martíni e…

 

— Ainda estás de volta disso?

Mateo estava diante dela com a prancha debaixo do braço e os pés afundados na areia.

— Só estou a fazer umas correções de última hora — resmungou Layla, enquanto o via a largar a prancha em cima da toalha.

Mateo passou a mão pelo cabelo descolorido pelo sol e o salitre, e baixou o fecho do fato de neopreno. Baixou-o tanto que Layla não conseguiu evitar engolir em seco e ficar muda de espanto ao ver o corpo incrível do seu namorado nu diante dela, a brilhar ao sol.

Mateo mostrava uma indiferença pela sua beleza natural muito rara numa cidade transbordante de egos desmesurados, de vaidades excessivas e de devotos da seita dos sumos de legumes, e a Layla custava-lhe entender o que via numa rapariga tão pálida e cínica como ela.

— Posso ajudar-te?

Ele pegou na sua garrafa de água como se nada lhe interessasse mais do que ler a sua opinião a respeito de três celebridades que, cheias de martínis, tinham decidido relembrar as travessuras de escola atirando azeitonas a todos os que passavam por elas.

Era típico dele. Fora assim desde a noite em que se tinham conhecido, há pouco mais de dois anos, no dia em que ela fazia dezasseis. Espantara-os aos dois descobrir que, apesar de terem apenas um ano e dez dias de diferença, eram de signos zodiacais diferentes, quase opostos.

Mateo era Sagitário, ou seja, um sonhador de espírito livre.

Layla, pelo contrário, era Capricórnio, o que a tornava ambiciosa e um pouco controladora. Se se acreditasse naquelas coisas, claro, e ela, como é óbvio, não acreditava. Era apenas uma curiosa coincidência que no seu caso fosse verdade.

Deu o portátil a Mateo e afundou-se mais na espreguiçadeira. Ouvir Mateo a ler o seu trabalho em voz alta era como uma dose de crack para ela.

Fazia bem ao seu processo criativo. Ajudava-a a corrigir e a polir a sua prosa. Mas Layla era suficientemente lúcida para saber que, no que se referia à sua forma de escrever, estava sempre desejosa de elogios e, normalmente, Mateo encontrava sempre algo agradável para lhe dizer, por muito insosso que fosse o conteúdo.

Com a garrafa de água numa mão e o MacBook Air de Layla na outra, começou a ler. Quando chegou ao fim, olhou para ela e disse:

— Aconteceu realmente?

— Guardei uma azeitona como lembrança.

Ele semicerrou as pálpebras como se tentasse imaginar uma luta de azeitonas entre celebridades.

— Tiraste fotografias? — Devolveu-lhe o portátil.

Layla abanou a cabeça, fez uma pequena correção e guardou o ficheiro em vez de premir a tecla «Enviar».

— No Le Château, levam muito a sério a questão de não se tirar fotografias.

Mateo abanou a cabeça e esvaziou a garrafa de água de uma só vez, enquanto ela continuava a olhá-lo com olhos de desejo, apesar de se sentir um pouco perversa por reduzir o seu namorado ao papel de objeto.

— Vais mandá-lo? — perguntou ele. — Parece que já está pronto.

Ela guardou o computador no seu saco.

— Sabes que ultimamente não paro de falar de criar o meu próprio blogue, Belos ídolos. — Olhou para ele, indecisa. — Pois, estou a pensar que esta poderia ser a entrada perfeita para o lançar.

Ele mexeu-se, brincando com a tampa da garrafa.

— É uma boa entrada, Layla. — Falava como se escolhesse cada palavra com todo o cuidado. — É divertida e precisa, mas… — Encolheu os ombros e deixou que o silêncio dissesse o que ele não se atrevia a dizer: que não era, nem de longe, um texto do calibre de que ela era capaz.

— Sei o que estás a pensar — respondeu Layla à defesa. — Mas nenhuma das merdas sobre as quais escrevo podem considerar-se notícias capazes de mudar a História e estou farta de trabalhar em troca de migalhas. Se quiser trabalhar por conta própria, tenho de começar por algum lado. E, embora o blogue possa demorar algum tempo a levantar voo, quando o fizer por fim posso ganhar um monte de dinheiro só com a publicidade. Além disso, poupei mais do que o suficiente para me aguentar até lá.

O último comentário, feito atropeladamente, podia não ser verdade, mas soava bem e pareceu convencer Mateo, que respondeu puxando-a e apertando-a entre os seus braços.

— E o que vais fazer exatamente com todo esse dinheiro da publicidade?

Ela passou um dedo pelo seu peito, tentando ganhar tempo. Ainda não lhe tinha contado que sonhava ir para Nova Iorque estudar Jornalismo e contar-lho naquele momento pô-los-ia numa situação desconfortável que preferia evitar.

— Bom, imagino que quase todo vá parar ao fundo para burritos.

Mateo sorriu e rodeou-lhe a cintura com os braços.

— A receita perfeita para uma vida feliz: tu, boas ondas e um fundo bem nutrido para burritos. — Tocou-lhe com os lábios na ponta do nariz. — Já agora… quando vais deixar-me ensinar-te a fazer surfe?

— Nunca, claro.

Deixou que o corpo se derretesse contra o dele e escondeu a cara no seu pescoço, onde inspirou um aroma embriagador a mar, a sol e a profunda felicidade, decorado com uma nota de honra, sinceridade e uma vida vivida em equilíbrio. Era tudo o que Layla desejava ser (e sabia que nunca seria) condensado num só fôlego.

No entanto, e apesar das suas enormes diferenças, Mateo aceitava-a tal como era. Nunca tentava mudá-la, nem fazê-la ver as coisas à sua maneira.

Layla gostaria de poder dizer o mesmo.

Quando ele lhe pôs um dedo sob o queixo e baixou a cabeça para a beijar, ela respondeu como se tivesse passado as três horas anteriores à espera daquilo (e assim fora). De início, o beijo foi suave e brincalhão. A língua de Mateo deslizou suavemente pela sua. Até que Layla esfregou as ancas contra as dele e lhe devolveu o abraço com uma paixão que o fez gemer o seu nome com voz rouca.

— Layla… Uau… — balbuciou. — O que achas de procurarmos um sítio onde continuar isto?

Ela entrelaçou uma perna com a dele, puxando-o para si até onde o permitiam as suas calças de ganga rasgadas e o fato de neopreno dele. Era apenas consciente do calor que percorria o seu corpo quando Mateo lhe deslizou as mãos sob a suéter. Estava tão embriagada pelas carícias que de boa vontade o teria deitado na areia quente dourada e se teria sentado em cima dele. Felizmente, Mateo teve a prudência de se afastar antes que os prendessem por culpa dela.

— Se nos despacharmos, podemos ter a casa só para nós.

Tinha um sorriso frouxo, um olhar lânguido e vidrado.

— Não, obrigada. — Layla afastou-o, mal-humorada de repente. — Da última vez que Valentina esteve prestes a apanhar-nos, o pânico que senti encurtou a minha vida uma década. Não posso arriscar-me a que isso volte a acontecer.

— Portanto, vives até aos cento e quarenta em vez de até aos cento e cinquenta. — Mateo encolheu os ombros e tentou voltar a abraçá-la, mas Layla afastou-se. — Na minha opinião, vale a pena.

— É fácil para ti dizê-lo, Mestre Zen. — Era uma das muitas alcunhas que lhe pusera. — Vamos para a minha casa. Não há irmãs mais novas e, mesmo que o meu pai esteja no estúdio, não penso que vá incomodar-nos. Está muito ocupado com a sua nova série de pinturas, embora eu ainda não as tenha visto. Fico feliz por estar a trabalhar. Há séculos que não vendia uma peça.

Mateo fez uma careta. Evidentemente, queria estar com ela, mas a simples menção do seu pai bastava para diminuir o seu entusiasmo.

— É que não me habituo… — Entreteve-se a guardar as suas coisas, a desmontar o guarda-sol e a pô-lo na capa. — É muito estranho.

— Só para ti. Não te esqueças de que o meu pai se descreve como um boémio de mentalidade aberta que acredita na expressão livre. E, o que é mais importante, confia em mim. E gosta de ti. Acha que és uma influência tranquilizadora para mim.

Esboçou um sorriso. Era indubitavelmente verdade. Em seguida, pondo o saco ao ombro, dirigiu-se para o jipe preto de Mateo. Tirou um folheto do para-brisas e leu: «Candidate-se a trabalhar este verão como relações públicas da Unrivaled Nighlife Company, de Ira Redman, e consiga um bónus incrível em dinheiro».

Aquilo despertou a sua curiosidade imediatamente.

Estava de olho na Faculdade de Jornalismo de Nova Iorque desde o seu primeiro ano de liceu e, embora estivesse eufórica por a terem aceitado, não tinha nenhuma hipótese de ir: as propinas eram astronómicas e o custo elevado de vida na grande urbe eram como um muro de tijolo que se interpunha no seu caminho. E, dado que o buraco financeiro que o seu pai atravessava estava a durar mais do que o normal, pedir-lhe ajuda estava descartado.

A sua mãe podia facilitar-lhe qualquer quantia que necessitasse (ou, melhor dizendo, podia facilitar-lha o marido rico da sua mãe, porque a mãe de Layla era apenas mais uma das muitas mortas-vivas de Santa Monica que iam do ginásio para o cabeleireiro da moda a arrastar os pés). Mas a verdade era que Layla não falava com a sua mãe há anos e não pensava começar a fazê-lo naquele momento.

Quanto a Mateo… O salário dele como instrutor de surfe em alguns dos hotéis mais caros da praia não dava para muito (e, mesmo que não fosse assim, Layla também não estava disposta a aceitar a sua ajuda). Além disso, ainda não lhe tinha contado que queria ir viver para Nova Iorque, principalmente porque estava certa de que insistiria em acompanhá-la, e, embora fosse muito agradável tê-lo por perto, distrai-la-ia do seu objetivo. Mateo não partilhava a sua ambição e, por muito doce e terno que fosse, Layla recusava-se a ser uma daquelas mulheres que deixavam que um rapaz bonito as impedisse de alcançar os seus sonhos.

Olhou novamente para o folheto: um trabalho assim podia ser justamente o que necessitava. Teria acesso direto ao ambiente noturno de Hollywood, disporia de melhor material para os seus artigos no blogue e quem sabia onde aquilo poderia conduzi-la?

Mateo passou ao seu lado e tirou-lhe o folheto das mãos.

— Diz-me que isto não te interessa…

Virou-se para ela, semicerrando os seus olhos castanhos. Layla respondeu mordendo o lábio. Não estava disposta a reconhecer que era a coisa mais entusiasmante que lhe tinha acontecido em todo o dia (além daquele beijo na praia).

— Querida, confia em mim, não te convém meteres-te nisto — acrescentou ele com um tom severo que Layla raramente ouvia. — A vida noturna é muito stressante, no mínimo. Lembra-te do que aconteceu a Carlos.

Ela olhou para os pés cobertos de areia, envergonhada por se ter esquecido do irmão mais velho de Mateo, que morrera de overdose diante de um clube de Sunset Boulevard, tal como River Phoenix diante do Viper Room, só que no caso dele ninguém construíra um altar em sua honra. Além da sua família mais próxima, ninguém parara sequer para o chorar. Na altura da sua morte, tinha caído tão baixo que os únicos amigos que lhe restavam eram traficantes de droga e nenhum deles se incomodara em assistir ao seu funeral. Aquela era a maior tragédia da vida de Mateo. Em criança, idolatrara o irmão.

Mas e se aquela fosse a forma perfeita de prestar homenagem a Carlos, talvez inclusive de o vingar?

Roçou o braço de Mateo com os dedos antes de se pôr a andar ao seu lado.

— O que aconteceu a Carlos foi a pior das tragédias porque poderia ter-se evitado — afirmou. — Mas talvez a melhor forma de vingar Carlos e outros jovens como ele seja expor o que realmente acontece naquele mundo. E este tipo de emprego permitir-me-ia fazê-lo.

Mateo franziu o sobrolho. Layla teria de se empenhar mais se quisesse convencê-lo.

Olhou para o folheto que ele tinha entre as mãos, convencida de que tinha razão. A resistência de Mateo só conseguiu aumentar a sua determinação.

— Odeio o culto da fama da nossa cultura tanto como tu e estou totalmente de acordo em que o ambiente dos clubes noturnos é um nojo. Mas não gostarias que fizesse alguma coisa para expor um pouco aquele mundo? Não é melhor do que ficares de braços cruzados a queixares-te?

Embora não lhe desse a razão, Mateo também não a contrariou. Uma pequena vitória que Layla se apressou a aproveitar.

— Não me iludo, sei que vou ganhar o curso. Quer dizer, nem sequer me importa. Mas, se conseguir entrar naquele mundo, terei a munição necessária para expor todas as suas falsidades. E, se conseguir que um só rapaz ou rapariga deixe de reverenciar aqueles anormais que não merecem a sua admiração, se conseguir convencer um único adolescente de que o mundo dos clubes noturnos é perigoso e sórdido, e de que lhe convém evitá-lo, terei cumprido a minha missão.

Mateo olhou para o mar e ficou a observar o horizonte. Ao vê-lo assim, de perfil, silhuetado pelos últimos raios de sol, Layla enterneceu-se. Mateo amava-a. Só desejava o melhor para ela. Era por isso que queria mantê-la afastada do mundo que lhe tinha arrebatado o irmão. Mas, apesar do quanto ela o amava, não estava disposta a deixar-se vencer.

Mateo continuou a contemplar o entardecer no oceano, perfeito como um postal, antes de se virar para ela.

— Não suporto pensar que possas meter-te naquilo. — Fechou o punho, amachucando ruidosamente o folheto. — Todo aquele mundo é uma mentira e Ira ganhou a pulso a sua fama de ser um traste. Não lhe importam minimamente os miúdos que o fizeram rico. Só pensa em si mesmo. Expulsaram Carlos e deixaram-no a morrer na rua para não terem de chamar uma ambulância e fechar o clube naquela noite. Mas, depois, não hesitaram quando chegou a altura de beneficiarem do escândalo.

— Mas não foi no clube de Ira.

— São todos iguais. Carlos era um rapaz esperto e olha o que lhe aconteceu. Não posso permitir que te aconteça o mesmo.

— Eu não sou Carlos. — Assim que o disse, arrependeu-se das suas palavras. Teria dado qualquer coisa para as retirar.

— A que propósito foi isso?

Layla calou-se, não muito segura de como ia explicar-se sem ofender ainda mais Mateo.

— Eu entraria naquele mundo com uma missão, com um objetivo…

— Há outras formas melhores de o fazer.

— Diz-me uma. — Levantou o queixo, esperando fazê-lo entender com um olhar que, apesar de o amar, tinham chegado a um beco sem saída.

Mateo atirou o folheto para o balde de lixo mais próximo e abriu a porta do passageiro do carro como se desse o assunto por encerrado.

Mas não estava encerrado.

Nem pouco mais ou menos.

Layla já tinha memorizado a página de Internet e o número de telefone.

Aproximou-se um pouco dele. Odiava que discutissem e, além disso, era absurdo: ela já tomara uma decisão. Quanto menos ele soubesse a partir daquele momento, melhor.

Sabendo como podia distraí-lo, passou a mão pela sua coxa. Recusou-se a parar até ver que fechava as pálpebras, que a sua respiração se agitava e que esquecia por completo que tinha demonstrado interesse em trabalhar nos clubes de Ira Redman.

2

 

ENQUANTO A MINHA GUITARRA CHORA DOCEMENTE

 

WHILE MY GUITAR GENTLY WEEPS

The Beatles

 

— Vá, meu, tens de te decidir. Não nos vamos embora enquanto não o fizeres.

Tommy levantou o olhar do número da Rolling Stone que estava a ler e olhou com expressão aborrecida para os dois aspirantes a roqueiros que tinha diante de si. Estava a trabalhar há quatro horas e meia, pouco mais de metade do seu turno, e ainda não tinha vendido uma palheta de guitarra. Infelizmente, aqueles dois também não iam comprar nada.

— Elétrica ou acústica? — perguntaram os dois em coro.

Tommy olhou atentamente para uma fotografia das pernas muito longas de Taylor Swift antes de virar a página e dedicar igual atenção a uma fotografia de Beyoncé.

— São as duas igualmente boas — respondeu por fim.

— Isso é o que dizes sempre. — O do gorro de lã olhou para ele com desconfiança.

— E, mesmo assim, continuam a perguntar-mo. — Tommy franziu o sobrolho, perguntando-se quanto tempo insistiriam antes de se irem embora.

— A sério, meu, és o pior vendedor do mundo! — disse o da t-shirt dos Green Day, que talvez se chamasse Ethan, embora Tommy não tivesse a certeza.

Tommy largou a revista.

— Como sabem? Nunca tentaram comprar nada.

Os dois amigos reviraram os olhos, lado a lado.

— A única coisa que te interessa é a comissão?

— És assim tão capitalista?

Tommy encolheu os ombros.

— Quando se deve uma renda, toda a gente é capitalista.

— Mas deves ter alguma preferência — insistiu o do gorro.

Tommy olhou-os e perguntou-se quanto tempo conseguiria continuar a aturá-los. Passavam pela loja pelo menos uma vez por semana e, embora ele agisse sempre como se as perguntas constantes e as palhaçadas deles o irritassem, na maioria dos dias eram o único entretenimento que encontrava no seu trabalho entediante.

Mas a parte da renda era verdade. O que significava que não estava com humor para aguentar vândalos que o faziam perder tempo e que se iam embora sem comprar sequer uma partitura.

Trabalhava à comissão e, se não conseguia vender nada, preferia investir o tempo que passava na loja a folhear exemplares da Rolling Stone e a sonhar com o dia em que a sua cara apareceria na capa, ou a procurar trabalho na Internet: o esforço mínimo em troca do salário mínimo. Parecia-lhe justo.

— Elétrica — disse por fim e surpreendeu-o o silêncio de espanto que se produziu de seguida.

— Sim! — O da t-shirt dos Green Day levantou o punho como se a sua opinião fosse muito importante.

Era um pouco inquietante que o admirassem tanto. Sobretudo porque a sua vida não merecia precisamente admiração.

— Porquê? — perguntou o do gorro, visivelmente ofendido.

Tommy agarrou na guitarra acústica que o rapaz segurava e tocou o início do tema Smoke on the water, dos Deep Purple.

— Ouves isto?

O rapaz assentiu com cautela.

Tommy devolveu-lhe o instrumento e agarrou na guitarra elétrica de doze cordas com que sonhava desde que começara a trabalhar na Farrington’s. A guitarra que talvez fosse sua algum dia se aqueles inúteis tivessem a bondade de comprar algo alguma vez.

Tocou o mesmo trecho enquanto os rapazes se inclinavam para ele.

— Toca mais alto, tem mais corpo, é mais brilhante. Mas é só a minha opinião, não pensem que o que digo é sagrado, nem nada do género.

— Tocas muito bem, meu. Devias pensar em juntar-te à nossa banda.

Tommy riu-se e passou a mão com delicadeza pelo braço da guitarra antes de a devolver ao seu suporte.

— Bom, qual vão comprar? — Voltou a olhá-los.

— Todas! — O da t-shirt dos Green Day sorriu.

Tommy recordou-se de si mesmo com aquela idade: uma mistura fatal de insegurança e atrevimento.

— Sim, assim que venda no eBay a coleção de filmes pornográficos de velhas! — O do gorro riu-se e correu para a porta perseguido pelo seu amigo, cujos insultos não eram, nem pouco mais ou menos, tão bons como o sarcasmo que tinha sofrido.

Tommy viu-os a sair, ouviu o tinido da campainha da porta e alegrou-se por poder ficar por fim sozinho.

E não porque lhe desagradassem os seus clientes: a loja de guitarras vintage Farrington’s era conhecida por atrair uma clientela muito específica obcecada pela música, mas aquele não era precisamente o trabalho com que sonhava quando chegara a Los Angeles. Tinha alguns talentos que, se continuasse assim, se desperdiçariam. Se as coisas não melhorassem, não teria outro remédio senão ir atrás daqueles rapazes e suplicar-lhes que lhe fizessem uma audição.

Além de tocar guitarra, também sabia cantar. Embora isso não importasse a ninguém. A sua última tentativa de conseguir trabalho como cantor fora um completo fracasso. Os mais de cem cartazes que tinha espalhado por toda a cidade (nos quais aparecia vestido com umas calças de ganga gastas de cintura descida e a guitarra sobre o peito nu) só tinham obtido duas respostas: uma de um pervertido que lhe tinha oferecido uma «audição» (o risinho lascivo que acompanhara a chamada fizera-o pensar seriamente em mudar de número de telefone) e outra de um café que tinha música ao vivo. A última parecia promissora, até que o gerente, desdenhando os seus temas originais, se empenhara em que passasse três horas seguidas a tocar versões acústicas dos grandes sucessos de John Mayer. Pelo menos, tinha arranjado uma fã: uma loira de quarenta e tal anos que lhe tinha passado um guardanapo amachucado com o nome do seu hotel e o número do quarto escritos a vermelho, e que lhe tinha piscado um olho ao sair pela porta a rebolar as ancas (não havia outra forma de o descrever), convencida de que iria atrás dela.

Coisa que não fizera.

Embora tivesse de reconhecer que o tinha tentado. Os seis meses que passara em Los Angeles tinham sido deprimentes, e aquela loira era muito bonita. E, além disso, estava em forma, a julgar pelas curvas que o seu vestido justo marcava. Mas, embora agradecesse a sua franqueza, e apesar de certamente ter um corpo paradisíaco, não suportava a ideia de se converter num simples entretenimento para uma mulher enfastiada dos homens da sua idade.

Acima de tudo, Tommy desejava que o levassem a sério.

Fora por isso que atravessara metade do país com todos os seus pertences (uma dúzia de t-shirts, várias calças de ganga velhas, um gira-discos que fora da sua mãe, a sua prezada coleção de discos de vinil, imensos livros de bolso e uma guitarra de seis cordas de segunda mão) metidos no porta-bagagens do seu carro.

Imaginava, claro, que demoraria algum tempo a estabelecer-se, mas aquela penúria de atuações não fazia parte do plano.

Nem o trabalho a vender guitarras, mas, pelo menos, assim podia dizer à sua mãe que trabalhava na «indústria da música».

Virou a página da revista e viu um artigo de página inteira a elogiar os Strypes, uma banda de jovens de dezasseis anos que, pelo visto, ia conquistar o mundo. De repente, perguntou-se se não teria alcançado o momento alto da sua carreira dois anos antes e nem sequer se apercebera.

Quando a porta se abriu, Tommy alegrou-se por ter uma distração, até que viu que era um ricaço que parecia totalmente deslocado entre os pósteres de Jimi Hendrix, Eric Clapton e B. B. King que adornavam as paredes da loja. Certamente, as calças de ganga de marca e a t-shirt dele custavam mais do que Tommy ganhava numa semana. Isso para não falar do casaco de camurça, do relógio de ouro e dos mocassins (provavelmente fabricados à mão em Itália), que certamente custavam mais do que todas as suas posses juntas, incluindo o seu carro.

Um turista com estilo de vida.

O bairro de Los Feliz estava cheio deles. Hipsters ricos e com pretensões artísticas que entravam e saíam dos inúmeros cafés, galerias de arte e lojas alternativas da zona esperando poder impregnar-se de um pouco de cultura de rua, para em seguida regressarem ao seu bairro de Beverly Hills e impressionarem os seus amigos contando histórias da sua viagem ao lado mais selvagem da vida.

Tommy franziu o sobrolho e continuou a folhear a revista. O artigo sobre os Strypes pusera-o de mau humor.

Esperar que o cliente completasse a volta da praxe pela loja e inclusive lhe pedisse um cartão (eram recordações fantásticas, demonstravam que se estivera realmente ali!) também estava a pô-lo com um humor de cão.

Mas, ao contrário dos Strypes, aquele tipo passaria pela sua vida sem deixar nenhum rasto. No entanto, todas as bandas que apareciam na revista pareciam escarnecer dele e obrigá-lo a tomar consciência de até que ponto a sua mudança para Los Angeles fora um fracasso.

Pensando que conseguia fazer um pequeno esforço e dirigir a palavra àquele cretino pretensioso que tinha invadido o seu espaço pessoal, dispunha-se a falar quando a voz lhe ficou presa na garganta e deu por si a olhá-lo com os olhos esbugalhados, como uma groupie da pior espécie.

Era Ira.

Ira Redman.

O grande Ira Redman, o proprietário da Unrivaled Nightlife, um dos homens mais bem relacionados de Los Angeles e, casualmente, também o pai de Tommy.

Embora a parte de ser o seu pai fosse na realidade um simples tecnicismo. Ira era mais um dador de esperma do que um pai a sério.

Em primeiro lugar, não tinha a mínima ideia de que Tommy existia.

Mas claro que ele também só descobrira que Ira era o seu pai no dia do seu décimo oitavo aniversário. Até então, acreditara na história que a sua mãe lhe contava: que o seu pai fora um herói de guerra falecido prematuramente. Tinha descoberto a verdade por puro acaso. Mas, ao descobri-la, o seu destino ficara selado. Para consternação da sua mãe (e dos seus avós, da sua ex-namorada e do seu psicólogo), agarrara no dinheiro que tinha poupado para a universidade, acabara o ensino secundário antes do tempo e fora direito a Los Angeles.

Tinha tudo planeado. Primeiro, arranjaria um apartamento fantástico (um pardieiro em Hollywood), em seguida, conseguiria um trabalho alucinante (a Farrington’s deixava muito a desejar nesse aspeto) e, por último, provido de toda a informação que tinha reunido sobre o seu pai graças ao Google, à Wikipédia e a um número antigo da Maxim, procuraria Ira Redman e enfrentá-lo-ia como o jovem independente e promissor que era.

O que não esperava era sentir-se tão intimidado simplesmente por estar perto dele.

Pouco depois de chegar a Los Angeles, tinha procurado e seguido Ira, espiando-o do para-brisas rachado do seu carro, um calhambeque que era o máximo em Tulsa, mas que era tão ofensivo em Los Angeles que até os empregados dos parques de estacionamento sorriam com desdém ao vê-lo. Vira o Cadillac Escalade de Ira, conduzido pelo motorista, a estacionar junto da calçada e vira o seu pai a sair do carro e a entrar num restaurante emanando soberba e aprumo em parte iguais, como se em vez de se alimentar de comida se alimentasse de poder. O matiz de crueldade calculada do olhar severo e penetrante convencera Tommy de imediato de que Ira Redman estava muito longe do seu alcance.

O reencontro sonhado que tinha impulsionado a sua viagem do Oklahoma até à Califórnia evaporara-se entre a poluição de Los Angeles e, ao sair de lá, Tommy jurara a si mesmo lavrar um nome antes de voltar a tentar enfrentar o seu pai.

E, agora, estava ali. Ira Redman, a aspirar oxigénio como se também tivesse um bom pacote de ações na atmosfera.

— Olá… — resmungou Tommy e escondeu as mãos sob o balcão para que Ira não visse como lhe tremiam na presença dele, embora o tremor da sua voz sem dúvida o denunciasse. — Tudo bem?

Era uma pergunta bastante simples, mas Ira decidiu convertê-la num momento de desconforto. Pelo menos para Tommy. Ira pareceu contentar-se em ficar ali de pé, com o olhar fixo nele, como se ponderasse o seu direito a existir.

«Não te mexas, não desvies primeiro o olhar, não te mostres fraco.» Tommy estava tão concentrado em não reagir que, quando Ira assinalou com um dedo a guitarra que havia atrás dele, o gesto quase lhe passou despercebido.

Estava claro que tinha decidido descansar um pouco, deixar de lado o seu papel de dono do mundo e satisfazer uma fantasia latente: a de ser uma estrela de rock. O que a Tommy lhe parecia muito bem, precisava de vender. Mas nem morto ia permitir que saísse dali com a preciosa guitarra de doze cordas que tinha considerado sua desde que a tinha pendurado ao ombro e tinha tocado o primeiro acorde.

Agarrou de propósito a que estava acima e já a tinha desprendido quando Ira o corrigiu.

— Não, a que está mesmo atrás de ti. A azul-metalizada — disse como se fosse uma ordem. Como se Tommy não tivesse outro remédio senão obedecer a cada um dos seus caprichos.

Era humilhante. Degradante. E Tommy sentiu ainda mais rancor por ele do que já sentia.

— Não está à venda.

Tentou mostrar-lhe outra, mas Ira não se deixou enganar.

Os seus olhos azul-escuros, do mesmo tom que os de Tommy, semicerraram-se enquanto apertava os dentes, como acontecia com ele quando ensaiava uma música que lhe custava a tocar.

— Tudo está à venda. — Observou Tommy com uma intensidade que o fez estremecer. — É só uma questão de negociar o preço.

— Talvez, meu. — Meu? Tinha chamado «meu» a Ira Redman? Antes que tivesse tempo de pensar naquilo, apressou-se a acrescentar: — Mas esta é minha e vai continuar a ser.

Ira fixou nele o seu olhar de aço.

— É pena. Mesmo assim, importas-te que lhe dê uma olhadela?

Tommy hesitou, o que era absurdo, dado que era pouco provável que fosse roubar a guitarra. E, no entanto, custou-lhe imenso passar-lha e ficar ali parado a ver como a segurava entre as mãos, como se esperasse que o seu peso lhe revelasse alguma informação importante. Quando a apoiou contra o peito e adotou uma pose ridícula de pseudoestrela de rock, rindo-se com uma gargalhada cúmplice como se partilhassem uma piada privada, Tommy teve de conter a vontade de vomitar.

Ver Ira a tocar na sua guitarra sonhada fê-lo suar até encharcar a sua t-shirt de Jimmy Page. E a forma de ele a levantar e fingir que a inspecionava minuciosamente quando saltava à vista que não tinha a mínima ideia do que procurar deixava claro que estava a representar um papel.

Mas com que fim?

Era assim que a gente rica se divertia?

— É uma peça maravilhosa. — Devolveu-a a Tommy, que, aliviado por a ver a salvo das suas garras, voltou a apoiá-la contra a parede. — Entendo que queiras mantê-la. Embora não tenha a certeza de que seja tua.

Tommy ficou tenso.

— A tua forma de a agarrar… — Ira apoiou as mãos no balcão, separou os dedos de unhas impecáveis e o seu relógio de ouro brilhou como uma brincadeira cruel, como se dissesse: «Esta é a vida que poderias ter tido, uma vida de privilégios e riqueza em que poderias gozar com aspirantes a estrelas de rock e espezinhar os seus sonhos só por diversão». — Tocas-lhe com demasiada veneração para que seja tua. Não te sentes cómodo com ela. É algo alheio, não faz parte de ti.

Tommy apertou os lábios. Mudou o peso do corpo de um pé para o outro. Não tinha a mínima ideia do que responder, embora não tivesse nenhuma dúvida de que tudo aquilo era um teste que acabava de falhar.

— Tocas nessa guitarra como se fosse uma rapariga que não acreditas que possas ter, não como uma namorada com quem estás habituado a foder. — Ira riu-se, mostrando uma fila de capas de porcelana como soldadinhos brancos reluzentes numa formação perfeita. — Portanto, o que te parece se duplicar o preço que achas que podes pagar por ela?

A sua gargalhada extinguiu-se tão rapidamente como começara.

Amex Black

— Boa tentativa, rapaz. — Dirigiu-se para a porta, com a guitarra pendurada ao ombro. — Talvez pudesses tê-la comprado antes se trabalhasses para mim.