Nujeen
Nujeen

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Nujeen

Título original: Nujeen

© 2016, Christina Lamb e Nujeen Mustafa

© 2016, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutor: Fátima Tomas da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização de HarperCollins Publishers Limited, UK.

Imagem da capa: Chris Floyd

As fotografias provêm da coleção pessoal da família Mustafa, exceto aquelas em que é indicado outro proprietário.

Mapa de Martin Brown

 

ISBN: 978-84-9139-104-3

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Nujeen

Créditos

Sumário

Cita

Mapa

Prólogo. A travessia

 

Primeira parte. PERDER UM PAÍS

1. Estrangeiros na nossa própria terra

2. Os muros de Alepo

3. A rapariga da televisão

4. Dias de Raiva

5. Uma cidade dividida

6. Uma guerra muito nossa

7. E Tudo o Vento Levou

8. Perdoa-me, Síria

 

Segunda parte. A VIAGEM

9. Amplia os teus horizontes

10. À procura de um traficante de pessoas

11. A Rota da Morte

12. Livre como uma pessoa normal

13. Através da Porta Sublime

14. Hungria, abre a porta!

15. O dia mais difícil

16. Sorrisos e lágrimas

17. Obrigada, mamã Merkel

 

Terceira parte. UMA VIDA NORMAL

18. Estrangeiros num país estranho

19. Finalmente, vou para a escola

20. Um Ano Novo assustador

21. Um lugar chamado lar

 

Apêndice. A minha viagem

Agradecimentos

Encarte

 

 

 

 

 

 

Estou a ver a Terra! É tão bonita!

 

Yuri Gagarin, o primeiro homem no espaço, 1961.

Prólogo

A travessia

 

 

Behram, Turquia, 2 de setembro de 2015

 

Da praia víamos a ilha de Lesbos e a Europa. O mar estendia-se para ambos os lados até onde a vista alcançava e não era tumultuoso, mas tranquilo, pintalgado por uma espuma branca e tão leve que parecia dançar sobre as ondas. A ilha, que se erguia sobre o mar como um retângulo rochoso, não parecia muito distante. Mas os barcos insufláveis cinzentos eram pequenos e afundavam-se na água, carregados com o máximo de pessoas que os traficantes conseguissem pôr dentro deles.

Era a primeira vez que via o mar. A primeira vez que fazia todas aquelas coisas. Viajar de avião e de comboio, afastar-me dos meus pais, alojar-me num hotel e, agora, andar de barco! Em Alepo, quase nunca saía do nosso apartamento, no quinto andar.

Os que nos tinham precedido contavam que, num dia de verão como aquele, um barco demorava pouco mais de uma hora a atravessar o estreito. Era um dos pontos mais próximos entre a Turquia e a Grécia, apenas doze quilómetros. O problema era que, com frequência, os motores dos barcos eram baratos e velhos, e faltava-lhes potência para transportar cinquenta ou sessenta pessoas, portanto, a travessia podia durar três ou quatro horas. Nas noites chuvosas, quando as ondas atingiam os três metros de altura e sacudiam os barcos como se fossem brinquedos, às vezes, não chegavam ao outro lado e a viagem cheia de esperança culminava numa sepultura aquática.

A praia não era de areia como eu tinha imaginado, mas de seixos, inviável para a cadeira de rodas. Soubemos que estávamos no lugar adequado, ao ver uma caixa de cartão velha, com as letras Barco Insuflável. Made in China (capacidade máxima, 15 pessoas), ao ver o rasto de pertences espalhados pela costa, como uma espécie de destroços ali deixados pelos refugiados. Havia escovas de dentes, fraldas e pacotes de biscoitos, mochilas abandonadas e imensas peças de roupa e sapatos. Calças de ganga e t-shirts tinham sido descartadas por não caberem no barco, pois os traficantes exigiam que se viajasse com pouca bagagem. Umas sandálias de salto alto cinzentas, com pompons pretos e fofos, algo absurdo para levar naquela viagem. Uma sandália cor-de-rosa de criança, decorada com uma flor de plástico. Uns ténis de menino com luzes nas solas. E um grande urso de peluche cinzento que perdera um olho e do qual devia ter sido muito difícil afastar-se. Todas essas coisas transformavam aquele belo lugar numa lixeira e isso entristeceu-me.

Tínhamos passado toda a noite nos olivais, depois de o autocarro dos traficantes nos ter deixado na estrada da falésia. Dali, tivemos de descer a pé por uma encosta até à margem, mais ou menos a um quilómetro e meio de distância. Talvez não pareça ser uma grande distância, mas é um caminho muito longo para ser feito numa cadeira de rodas, por um trilho pedregoso, tendo apenas a minha irmã para a empurrar e com o sol feroz da Grécia a atingir-nos, e o suor a escorrer à frente dos olhos. Havia uma estrada que descia em ziguezague pela encosta, muito mais fácil de percorrer, mas não podíamos ir por aí, pois a polícia turca podia ver-nos e enviar-nos para um centro de detenção ou até mandar-nos de volta a casa.

Estava com duas das minhas quatro irmãs mais velhas: Nahda, que tinha de tomar conta do bebé e de três meninas pequenas, e Nasrine, a minha irmã mais próxima, que cuida sempre de mim e é tão bela como o seu nome, o de uma flor branca que só cresce nos Montes do Curdistão. Éramos acompanhadas por primos, cujos pais, o meu tio e a minha tia, tinham sido mortos a tiro por francoatiradores do Daesh, o Estado Islâmico, quando, em junho, tinham ido a um enterro em Kobane, um dia em que prefiro não pensar.

O caminho estava cheio de buracos e a minha irmã puxava-me de tal forma que estava virada para trás, o que era um aborrecimento, pois só de vez em quando conseguia ter um vislumbre do mar, de um azul vibrante. O azul é a minha cor preferida, porque é a cor do planeta de Deus. Estávamos todos acalorados e de mau humor. A cadeira era demasiado grande para mim e agarrava-me com tanta força aos apoios laterais que me doíam os braços e as nádegas com tantas sacudidelas. Mas não disse nada.

Tal como tinha feito em cada lugar por onde tínhamos passado, fui contando os factos que tinha reunido antes da nossa partida. Entusiasmava-me pensar que, no topo da colina que se erguia sobre nós, se encontrava a antiga cidade de Assos, que tinha um templo em ruínas dedicado à deusa Atena e onde, sobretudo, Aristóteles vivera. Ali fundara uma escola de Filosofia com vista para o mar, para poder observar as marés e refutar a teoria do seu mestre Platão, segundo a qual eram turbulências causadas pelos rios. Depois, os persas atacaram-na e os filósofos tiveram de fugir da cidade. Aristóteles infiltrara-se na Macedónia como precetor do jovem Alexandre Magno. O apóstolo São Paulo também passou por Assos na sua viagem para Lesbos, desde a Síria. Mas, como sempre, as minhas irmãs não pareciam estar muito interessadas.

Desisti de tentar informá-las e dediquei-me a observar as gaivotas, que se divertiam a deixar-se levar pelas correntes térmicas e a fazer piruetas barulhentas no topo de um céu azulíssimo, sem parar uma única vez. Como desejava poder voar! Nem sequer os astronautas têm tanta liberdade.

Nasrine olhava constantemente para o telemóvel Samsung que o nosso irmão Mustafa nos comprara para a viagem, para se certificar de que seguíamos as coordenadas do Google Maps que o traficante nos dera. Mas, quando finalmente chegámos à beira-mar, descobrimos que estávamos no lugar errado. Cada traficante tem o seu próprio «ponto» – usamos tiras de tecido às cores atadas ao pulso, para nos identificar – e aquele não era o nosso.

O lugar acordado não era muito longe se seguíssemos pela costa mas, quando chegámos ao fundo da praia, vimos que havia uma falésia escarpada no meio do caminho. Só podíamos passar a nado porém, obviamente, isso era impossível, no nosso caso. Portanto, tivemos de subir e descer outra colina escarpada, até chegar ao ponto exato da costa. Aquelas colinas eram infernais. Se escorregássemos e caíssemos ao mar, podíamos morrer. Havia tantas rochas que não conseguiam empurrar-me nem puxar-me. Tinham de me levar ao colo. Os meus primos troçavam: «É a rainha, a rainha Nujeen!»

Quando chegámos à praia correta, o sol já estava a pôr-se. Era uma explosão de tons cor-de-rosa e violeta, como se uma das minhas sobrinhas estivesse a colorir o céu com lápis de cera, de várias cores. Do topo dos montes chegava o tinido suave dos guizos das cabras.

Passámos a noite num olival. Depois de o sol se pôr, a temperatura caiu bruscamente e, embora Nasrine espalhasse toda a roupa que tínhamos ao meu redor, o chão era muito duro e havia muitas pedras. Eu, no entanto, nunca tinha passado tanto tempo ao ar livre e estava tão cansada que dormi durante quase toda a noite. Não podíamos fazer uma fogueira porque podia atrair a polícia. Algumas pessoas tentaram tapar-se com as caixas de cartão das lanchas. Parecia um daqueles filmes em que um grupo de pessoas vai acampar e acontece algo assustador.

 

 

Comemos torrões de açúcar e Nutella ao pequeno-almoço, o que pode parecer espetacular, mas é nojento quando não se tem outra coisa para comer. Os traficantes tinham-nos assegurado de que sairíamos de manhã bem cedo e, à alvorada, estávamos todos prontos na praia, com os nossos coletes salva-vidas. Tínhamos os telemóveis dentro de balões, para os proteger durante a travessia, um truque que nos tinham ensinado em Esmirna.

Havia outros grupos à espera. Cada um de nós pagara mil e quinhentos dólares, em vez dos mil habituais, para ter uma lancha apenas para a nossa família, mas dava a impressão de que outras pessoas também iam embarcar. Seríamos trinta e oito no total. Vinte e sete adultos e onze crianças. Agora que estávamos ali, já não podíamos fazer nada. Não podíamos voltar atrás e dizia-se que os traficantes usavam facas e aguilhões contra quem mudava de ideias.

O céu estava limpo e, ao vê-lo de perto, percebi que o mar não era só de uma cor, daquele azul uniforme das fotografias e dos meus pensamentos, mas de um tom turquesa brilhante junto à beira-mar e, mais à frente, de um azul profundo que escurecia, até se tornar cinzento e índigo junto da ilha.

Eu só conhecia o mar através dos documentários do National Geographic e, agora, sentia-me como se estivesse a viver um deles, pessoalmente. Estava muito entusiasmada e não entendia porque é que os outros estavam tão nervosos. Para mim, aquela era a maior das aventuras.

Outras crianças corriam pela praia, a apanhar seixos de cores diferentes. Um menino afegão, muito pequeno, deu-me um em forma de pomba, plano e cinzento, com uma nervura de mármore branco que o atravessava. Estava fresco e desgastado pelo mar. Nem sempre me é fácil segurar as coisas porque tenho os dedos muito trôpegos, mas não tencionava soltar aquilo.

Havia pessoas da Síria, como nós, mas também do Iraque, de Marrocos e do Afeganistão, que falavam uma língua que não entendíamos. Alguns contavam as suas histórias, mas a maioria mal falava. Não era preciso. As coisas tinham de estar muito más para se abandonar tudo o que se conhece, o que se construiu num país, para empreender uma viagem tão incerta e perigosa.

Quando amanheceu, vimos os primeiros barcos a sair. Dois zarparam mais ou menos em linha reta, mas outros dois cambaleavam de um lado para o outro. Os barcos não tinham piloto. Os traficantes deixavam que um dos refugiados viajasse por metade de preço ou de graça, se pilotasse a embarcação, mesmo que não tivesse experiência. «É como conduzir uma mota», diziam. O meu tio Ahmed ia pilotar o nosso barco. Deduzi que era a primeira vez que pilotava um barco, visto que nunca tínhamos ido ao mar e ele geria uma loja de telemóveis, mas garantiu-nos que sabia fazê-lo.

Tínhamos ouvido dizer que alguns refugiados aceleram ao máximo para chegar a águas gregas o mais depressa possível e que chegam a queimar o motor. Às vezes, os motores não tinham gasolina suficiente. Se isso acontecesse, a guarda costeira turca podia capturá-los e levá-los de volta. No café Sinbad, em Esmirna, tínhamos conhecido uma família de Alepo, que tinha tentado fazer a travessia seis vezes. Nós não tínhamos dinheiro para tentar outra vez.

Por volta das nove da manhã, o tio Ahmed ligou ao traficante, que lhe disse que tínhamos de esperar até a guarda costeira se ir embora. «Enganámo-nos no traficante», afirmou Nasrine. Preocupava-me que tivessem voltado a enganar-nos.

Pressupunha-se que não estaríamos tanto tempo ali e depressa tivemos fome e sede, o que era irónico, tendo em conta a quantidade de água que havia à nossa frente. Os meus primos foram procurar água para mim e para as crianças, mas não havia uma gota por perto.

O dia começou a aquecer. Ainda que o traficante tivesse chegado com os barcos para nós e para outros grupos, disse-nos que não podíamos zarpar antes da mudança de turno da guarda costeira. Os homens marroquinos, seminus, começaram a cantar. Quando a tarde chegou, as ondas tornaram-se cada vez mais altas e rebentavam na margem. Ninguém queria zarpar de noite, pois tinham-nos contado que havia piratas que abordavam os barcos com motas aquáticas e roubavam os motores, e os objetos de valor dos refugiados.

Finalmente, por volta das cinco da tarde, avisaram-nos de que a guarda costeira estava a mudar de turno e que podíamos aproveitar para zarpar. Olhei novamente para o mar. Estava a cair uma névoa e o barulho das gaivotas já não me parecia ser tão alegre. Uma sombra escura abatia-se sobre a ilha rochosa. Havia quem chamasse àquela travessia rihlat al-moot, «a rota da morte». Só poderia acontecer uma de duas coisas: ou nos levava à Europa, ou nos engolia. Pela primeira vez, tive medo.

Em casa, costumava ver uma série chamada Brain Games: Teste o seu Cérebro, no canal National Geographic, que mostrava como o cérebro controla sentimentos como o medo ou a angústia. Portanto, tentei respirar fundo e comecei a repetir mentalmente que era forte.

 

Primeira parte

 

 

PERDER UM PAÍS

 

Síria, 1999 a 2014

 

Antes de serem números, estas pessoas são, em primeiro lugar e acima de tudo, seres humanos.

 

Papa Francisco, Lesbos, 16 de abril de 2016

1

Estrangeiros na nossa própria terra

 

 

Não coleciono selos, moedas ou cromos de futebol, coleciono factos. Gosto, acima de tudo, dos factos sobre o espaço e a física e, especialmente, sobre a Teoria das Cordas. E também sobre história e dinastias como a dos Romanov. E sobre personagens controversos, como Howard Hughes ou J. Edgar Hoover.

O meu irmão Mustafa diz que só tenho de ouvir alguma coisa uma vez para a recordar com exatidão. Consigo enumerar todos os Romanov desde o primeiro, o czar Mikhail, até Nicolau II, que foi executado pelos bolcheviques com toda a família, incluindo a filha mais nova, Anastácia. Posso dizer-vos o dia em que a rainha Isabel II de Inglaterra subiu ao trono, o dia do falecimento do pai e o da coroação, assim como as datas dos seus dois aniversários, o verdadeiro e o oficial. Um dia, gostaria de a conhecer e de lhe perguntar como é ser a tetraneta da rainha Vitória e se não é estranho que todos cantem um hino em que se pede a sua salvação.

Também posso dizer que o único animal que não emite sons é a girafa, pois não tem cordas vocais. Antes, era um dos meus factos favoritos, até as pessoas começarem a chamar «Girafa» a Bashar al-Assad, o ditador sírio, porque tem o pescoço muito comprido.

Eis um facto de que ninguém pode gostar: Sabia que, atualmente, uma em cada cento e treze pessoas é um refugiado ou um desalojado que teve de abandonar o seu lar?

Muitos deles tentam fugir de guerras como a que arrasou a Síria, o nosso país, ou a do Iraque, do Afeganistão e da Líbia. Outros fogem de grupos terroristas, como no Paquistão ou Somália, ou da perseguição de regimes mullah, como acontece no Egito ou Irão. E também há os que fogem da ditadura da Gâmbia, do serviço militar obrigatório na Eritreia ou da fome e da pobreza em países africanos que nunca vi no mapa.

Os jornalistas da televisão estão sempre a dizer que a deslocação de pessoas do Médio Oriente, do Norte de África e da Ásia Central, para a Europa, constitui a maior crise de refugiados desde a Segunda Grande Guerra Mundial. Em 2015, chegaram mais de um milhão e duzentos mil à Europa. Eu estava entre eles.

Odeio mais a palavra «refugiado» do que qualquer outra. Em alemão diz-se Flüchtlinge e parece ser igualmente severo. O que realmente quer dizer é «cidadão de segunda, com um número pintado na mão ou impresso numa pulseira, que todos desejam que se vá embora para qualquer outro lugar».

Foi no ano de 2015 que me transformei num facto, numa estatística, num número. E embora goste muito de factos, não somos números, somos seres humanos e todos temos uma história. Esta é a minha.

 

 

O meu nome é Nujeen, que significa «nova vida», e penso que poderia dizer-se que o meu nascimento foi inesperado. Os meus pais já tinham quatro filhos e quatro filhas e, quando cheguei, no dia de Ano Novo de 1999, vinte e seis anos depois do meu irmão mais velho, Shiar, alguns dos meus irmãos já estavam casados e a mais nova, Nasrine, tinha nove anos. Portanto, todos pensavam que a família já estava completa.

A minha mãe quase faleceu no parto e depois sentia-se tão fraca que foi a minha irmã mais velha, Jamila, que realmente cuidou de mim. Sempre pensei nela como sendo a minha segunda mãe. Ao princípio, a família alegrou-se por haver um bebé em casa, mas eu não parava de chorar. A única coisa que me acalmava era pôr um leitor de cassetes ao meu lado, com a música de Zorba, o Grego. Mas aquilo enervava-os tanto como o meu choro.

Vivíamos em Manbij, uma povoação poeirenta, árida e negligenciada no norte da Síria, não muito longe da fronteira com a Turquia, a cerca de trinta quilómetros a oeste do rio Eufrates e da barragem de Tishrin, que nos fornecia eletricidade.

A minha primeira lembrança é do vestido comprido da minha mãe, um leve e colorido kaftan que lhe chegava aos tornozelos. Também tinha cabelo comprido e chamávamos-lhe ayee, e ao meu pai yaba, que não são palavras árabes. A primeira coisa que devem saber sobre mim é que sou curda. Éramos uma das cinco famílias curdas, numa rua onde a maioria era árabe. Na verdade, eram beduínos, mas olhavam para nós por cima do ombro, por sermos curdos. E chamavam à nossa zona a Colina dos Estrangeiros. Tínhamos de falar a língua deles na escola e nas lojas, e só podíamos falar kurmanyi, a nossa língua, quando estávamos em casa. Isto era muito difícil para os meus pais, que não falavam árabe e eram analfabetos. E também para o meu irmão mais velho, Shiar, que era gozado pelas outras crianças da escola porque não falava árabe.

Manbij é um lugar muito provinciano e rígido no que respeita à religião, portanto, os meus irmãos eram obrigados a ir à mesquita e se ayee quisesse fazer compras no mercado, ela tinha de ir com o meu pai ou com um dos meus irmãos. Somos muçulmanos, mas não assim tão rígidos. No secundário, as minhas irmãs e primas eram as únicas raparigas que não cobriam a cabeça.

A nossa família teve de abandonar as suas terras numa aldeia curda, a sul de Kobane, por causa de uma rixa com uma aldeia vizinha. Os curdos são um povo tribal e a minha família provém da grande tribo, descendente de Kori Beg, o famoso líder da resistência curda, de quem quase se diria que todos os curdos são parentes. Os da aldeia do lado também eram Kori Beg, mas de outro clã. O que aconteceu com eles foi muito antes de eu nascer, mas era uma história que todos conhecíamos. As duas aldeias tinham ovelhas e, um dia, uns jovens pastores da outra aldeia trouxeram o seu rebanho para pastar nos nossos campos e discutiram com os nossos pastores, que também eram jovens. Pouco tempo depois, os nossos parentes foram a um enterro à outra aldeia e, pelo caminho, dois homens de lá deram-lhes um tiro. Os da nossa tribo abriram fogo e mataram um deles. Eles juraram vingar-se e tivemos de fugir. Foi assim que acabámos em Manbij.

As pessoas não sabem muito sobre os curdos. Às vezes, tenho a impressão de que o resto do mundo não sabe absolutamente nada sobre nós. Somos um povo orgulhoso, com a sua língua, cultura e gastronomia, e uma longa história que remonta há dois mil anos, quando somos mencionados pela primeira vez com o nome de «Kurti». Embora sejamos cerca de trinta milhões, nunca tivemos o nosso próprio país. De facto, somos a maior tribo apátrida do mundo.

Esperávamos conseguir finalmente a nossa pátria, quando os britânicos e os franceses repartiram o Império Turco derrotado, depois da Primeira Guerra Mundial, tal como os árabes esperavam obter a independência, como lhes fora prometido depois da Rebelião Árabe de 1916. As potências aliadas chegaram a assinar, em 1920, o Tratado de Sèvres, um acordo que reconhecia um Curdistão autónomo.

Mas o novo líder turco, Kemal Atatürk, recusou-se a aceitá-lo e, um pouco depois, descobriu-se petróleo em Mosul que, teoricamente, teria feito parte do Curdistão. E o Tratado não chegou a ser ratificado. De facto, os diplomatas Mark Sykes e Georges Picot, um britânico e o outro francês, já tinham assinado um pacto secreto para dividir o Levante, no Médio Oriente, desenhando uma fatídica linha na areia, desde Kirkuk, no Iraque, até Haifa, em Israel, criando os modernos estados do Iraque, da Síria e do Líbano. Desse modo, os árabes ficaram submetidos ao governo colonial, entre fronteiras que pouco tinham a ver com as suas realidades tribais e étnicas, e os curdos ficaram divididos entre quatro países e nenhum deles nos queria.

Hoje em dia, metade dos curdos vive na Turquia, alguns no Iraque, outros no Irão e cerca de dois milhões na Síria, onde somos a minoria mais numerosa, ou seja, cerca de quinze por cento da população. Embora os nossos dialetos sejam diferentes, consigo sempre distinguir um curdo, seja de onde for. Primeiro pela língua e depois pelo aspeto físico. Alguns vivem em cidades como Istambul, Teerão e Alepo, mas a maioria vive nas montanhas e planaltos onde a Turquia, a Síria, o Iraque e o Irão convergem.

Estamos rodeados de inimigos, portanto, devemos manter-nos fortes. Ahmad-i Khani, o Shakespeare curdo, no século XVII, escreveu que somos como «torres em quatro cantos, rodeando turcos e persas» e que «ambos os lados transformaram o povo curdo no alvo das setas do destino».

Yaba acha que, um dia, haverá um Curdistão. Talvez quando eu for mais velha. «Quem tem história, tem futuro», diz ele sempre.

O curioso é que muitos dos heróis «árabes» mais famosos são realmente curdos e ninguém o admite. Como Saladino, que lutou contra os cruzados e expulsou os europeus de Jerusalém, ou Yusuf al-Azma que, em 1920, comandou as forças sírias que lutavam contra a ocupação francesa e que morreu em combate. Há uma pintura enorme de Saladino e dos seus exércitos árabes na sala de banquetes do palácio de Assad, e imensas praças e estátuas dedicadas a Yusuf al-Azma, mas ninguém diz que eram curdos. Antes pelo contrário, o regime sírio considerava-nos ajanib, «estrangeiros», embora vivêssemos aqui desde antes das Cruzadas. Muitos curdos da Síria não têm cartão de cidadão e, sem esses cartões, não podem comprar propriedades, trabalhar na administração pública, votar nas eleições ou mandar os filhos para o ensino secundário.

Suponho que a Turquia é o pior lugar para se ser curdo. Atatürk lançou uma campanha conhecida como «turquificação» e o estado turco nem sequer reconhece os curdos como povo. Chamam-lhes «turcos montanheses»! A nossa família vive em ambos os lados da fronteira e uma das minhas tias, que vivia na Turquia, contou-nos que nem sequer tinha podido dar um nome curdo ao filho, que tinha tido de lhe chamar Orhan, que é um nome turco. Nasrine foi visitá-la uma vez e contou-nos que não falam curdo e que desligavam o rádio quando ela ouvia música curda.

Eis outro facto sobre os curdos: temos o nosso próprio alfabeto, mas a Turquia não o reconhece e, até há bem pouco tempo, se usássemos as letras Q, W e X, que não existem na língua turca, podíamos ser detidos. Imagine! Ir para a prisão por causa de uma consoante!

Temos um provérbio: «Os curdos não têm amigos, exceto nas montanhas». Adoramos as montanhas e acreditamos que descendemos das crianças que se esconderam nas montanhas para fugir de Zuhak, um gigante malvado que tinha duas serpentes nos ombros, que tinham de ser alimentadas com os miolos de uma criança todos os dias. Finalmente, um ferreiro esperto chamado Kawa, farto de perder os filhos, começou a dar miolos de ovelha às serpentes e a esconder as crianças, até conseguir formar um exército para matar o gigante.

Os curdos, quando se reúnem, contam sempre histórias. A mais famosa é a de Mem e Zin, uma espécie de Romeu e Julieta dos curdos. Fala de uma ilha governada por um príncipe, que tinha duas irmãs muito belas, que mantinha encarceradas. Uma delas chamava-se Zin. Certo dia, Zin e a irmã fugiram para ir a uma festa, disfarçadas de homens, e conheceram dois bonitos espadachins, um dos quais era Mem. As irmãs e os espadachins apaixonaram-se e aconteceram imensas coisas, mas o principal é que Mem foi preso e assassinado, e Zin morreu de tristeza junto da sepultura do apaixonado. Mesmo depois de mortos, brotou um espinheiro que os mantinha separados. A lenda começa por dizer: «Se houvesse harmonia entre nós, se obedecêssemos a apenas um dos nossos, submeteríamos a vassalagem os árabes turcos e os persas, a todos por igual». E há muitos curdos que dizem que simboliza a nossa luta, para termos uma pátria. Mem representa o povo curdo e Zin o país dos curdos, separados por um destino cruel. Algumas pessoas acreditam que a história é verdadeira e que até há uma sepultura que pode ser visitada.

Cresci a ouvir esta história, mas a verdade é que não gosto dela. É demasiado longa e não acho que seja realista. Prefiro A Bela e o Monstro, porque se baseia em algo bom, em amar alguém por ser como é por dentro, pela sua personalidade e não pelo aspeto físico.

 

 

Antes de envelhecer, deixar de trabalhar e passar o dia a fumar e a queixar-se, por os filhos não irem à mesquita, o meu pai, yaba, era negociante de ovelhas e cabras. Tinha cerca de vinte e cinco hectares de terreno, onde guardava o gado, como o pai dele fizera, e isso até ao meu sétimo avô, que tinha camelos e ovelhas.

Os meus irmãos mais velhos contam que, quando começou, o meu pai só comprava uma cabra por semana, no mercado, aos sábados. E que, na semana seguinte, a vendia noutro lugar, com um pouco de lucro e, com o tempo, teve um rebanho com cerca de duzentas cabras. Imagino que não ganhava muito dinheiro a vender ovelhas, porque a nossa casa só tinha dois quartos e um pátio com uma cozinha, portanto, estávamos todos apertados. Mas, como o meu irmão mais velho, Shiar, mandava dinheiro, construímos outro quarto onde ayee tinha a máquina de costura, com que eu brincava quando ninguém via. Dormia lá com a minha mãe, a não ser que tivéssemos convidados.

Shiar vive na Alemanha e é realizador de cinema. Fez um filme intitulado Walking, sobre um velho louco que caminhava muito, numa aldeia curda, no sul da Turquia. O velho torna-se amigo de um menino pobre que vende pastilhas elásticas mas, então, o exército ocupa a zona onde vivem. O filme causou grande agitação na Turquia, porque o velho curdo esbofeteia um oficial do exército turco e houve quem protestasse por aquilo ser visto no grande ecrã, como se fossem incapazes de distinguir entre um filme e o mundo real!

Nunca conheci Shiar, porque saiu da Síria em 1990, aos dezassete anos, muito antes de eu ter nascido, para evitar alistar-se e ser obrigado a lutar no Iraque, na Guerra do Golfo. Porque, naquela época, ainda éramos aliados dos americanos. A Síria não queria que fôssemos para a universidade ou trabalhássemos na administração pública, mas queria que combatêssemos no seu exército e fizéssemos parte do partido de Baath. Todos os estudantes deviam participar, mas Shiar recusou-se a fazê-lo e conseguiu fugir quando o escoltavam, com outro rapaz, para a sede do partido para se registar. Sonhava ser realizador de cinema, o que é muito estranho pois, quando ele era mais novo, nem sequer tínhamos televisão na nossa casa de Manbij. Só havia um rádio, porque as pessoas religiosas rejeitavam a televisão. Aos doze anos, fez um programa de rádio com uns colegas de turma e, cada vez que tinha oportunidade, escapulia-se para ir ver televisão em casa de um vizinho. De alguma forma, a minha família conseguiu os quatro mil e quinhentos dólares que um passaporte iraquiano falso custava em Damasco, e Shiar foi estudar para Moscovo. Não passou muito tempo na Rússia. Foi para a Holanda, onde obteve asilo político. Não há muitos cineastas curdos, portanto, é famoso dentro da nossa comunidade, mas não devíamos mencionar o seu nome porque o regime não gosta dos filmes dele.

Na nossa árvore genealógica só aparecem homens, mas Shiar não aparece, para o caso de alguém nos relacionar com ele e nos causar problemas. Eu não entendia por que motivo as mulheres não podiam constar nela. Ayee era analfabeta. Casou com o meu pai aos treze anos, o que significa que, com a minha idade, já estava casada há quatro anos e tinha um filho. Mas fazia toda a nossa roupa, é capaz de assinalar qualquer país do mundo num mapa e sabe sempre encontrar o caminho de regresso, esteja onde estiver. Além disso, tem muito jeito para somar, portanto, sabia sempre se os comerciantes do bazar estavam a enganá-la. Toda a minha família é boa a matemática, menos eu. O meu avô materno aprendeu a ler na prisão, quando os franceses o detiveram por ter uma pistola, e partilhou a cela com um homem culto. Por isso, ayee queria que estudássemos. Jamila, a mais velha, deixou a escola aos doze anos porque, na nossa tribo, se presume que as meninas não devem estudar, mas sim ficar em casa e dedicarem-se às tarefas domésticas. Mas, depois dela, as minhas outras irmãs (Nahda, Nahra e Nasrine) foram à escola, tal como os rapazes, Shiar, Farhad, Mustafa e Bland. Nós, os curdos, temos um provérbio: «Macho ou fêmea, um leão é sempre um leão.» Yaba dizia que, desde que passassem nos exames, podiam continuar a estudar.

Todas as manhãs, eu sentava-me na soleira da porta para as ver sair, balançando as mochilas, conversando com as amigas. A soleira da porta era o meu lugar favorito, para me sentar a brincar com a lama, para ver as pessoas a ir e vir. Mas, sobretudo, esperava por uma pessoa: o vendedor de salep. Para o caso de não ter provado, o salep é uma espécie de batido de leite espessado com o pó das raízes de orquídeas das montanhas e aromatizado com água de rosas ou canela. Vendem-no em carrinhos de alumínio, é servido num copo e é delicioso. Sabia sempre quando o vendedor de salep vinha, porque o leitor de cassetes do carrinho emitia versículos do Alcorão e não música, como o dos outros vendedores.

Sentia-me sozinha quando todos se iam embora e ficava apenas com yaba, que fumava e passava as contas do rosário, se é que não se ia embora com as ovelhas. No lado direito, entre a nossa casa e a dos nossos vizinhos, que eram o meu tio e os meus primos, havia um cipreste alto e escuro que me assustava muito. E, no nosso terraço, havia sempre gatos e cães de rua, que me davam calafrios porque, se alguma vez viessem atrás de mim, não conseguiria fugir. Não gosto de cães, de gatos ou de qualquer coisa que se mexa depressa. Havia uma família de gatos brancos, com manchas cor de laranja, que bufavam a qualquer pessoa que se aproximasse e eu odiava-os.

Só gostava do terraço nas noites de verão muito quentes, quando dormíamos lá em cima. A escuridão rodeava-nos como uma luva e sentíamos uma brisa limpa, arrefecida pelo vazio do deserto. Adorava deitar-me de costas e ver as estrelas, tantas e tão longínquas, que se estendiam para o infinito como uma passarela resplandecente. Foi durante essas noites que comecei a sonhar com ser astronauta, porque no espaço posso flutuar e não importa que as pernas não funcionem.

O curioso é que, no espaço, não podemos chorar. Devido à ausência de gravidade, se chorarmos como na Terra as lágrimas não caem, acumulam-se nos olhos e formam uma bola líquida, e espalham-se pela cara como uma barba estranha. Portanto, cuidado!