hc3918.jpg

 

Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Não te deixarei para trás

Título original: The Woman Left Behind

© 2018, Linda Howington

 

© 2020, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Imagens da capa: Dreamstime.com

 

1ª edição: Janeiro 2020

 

ISBN: 978-84-9139-459-4

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Créditos

Prólogo

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Agradecimentos

Se gostou deste livro…

Prólogo

 

 

 

 

 

A congressista Joan Kingsley andava por sua casa, de noite, em silêncio e às escuras. Não queria acender nenhuma luz, porque, ultimamente, preferia a escuridão. Detestava que o sol brilhasse, que as pessoas se rissem e que os dias passassem. Tinha tanta angústia na alma que a única coisa que podia fazer era continuar a funcionar para cumprir as suas obrigações.

Odiava a casa. Tornara-se demasiado grande. No entanto, não era capaz de se ir embora. Dexter e ela tinham-se apaixonado por aquela casa à primeira vista e tinham feito um grande esforço económico para a comprar, porque, desde o começo, lhes parecera o seu lar. Lá, tinham criado o seu filho e tinham visto como os seus sonhos de riqueza e poder se tornavam realidade. Tinham tido de trabalhar até perder as forças para o conseguir, mas fora lá que tinham planeado quase tudo e que tinham visto como chegava a bom termo.

Porém, sem Dexter, a casa ficara vazia.

Amara-o tanto… Ainda o amava. A morte não acabava com o amor; o amor seguia o seu caminho, mas, em vez de ser uma sensação calorosa e brilhante, transformava-se em dor.

Dexter morrera por culpa dela. Dela e de Axel MacNamara. Odiava aquele filho da mãe com uma ferocidade que se tornava cada vez mais intensa com o passar do tempo. Ainda a vigiava. Seguiam-na e intercetavam e liam todas as suas comunicações. Na verdade, MacNamara pensava que intercetavam e liam todas as suas comunicações, mas, com sorte, o que ele não sabia era o que ia magoá-lo, é claro. Ela própria o planeara assim.

MacNamara pensava que a neutralizara. Obrigara-a a demitir-se do seu cargo de poder, o marido morrera e o seu grupo dentro das GO-Teams fugira do país.

Por enquanto, deixava que continuasse a pensar assim. Devan Hubbert era mais inteligente do que qualquer um outros dos peritos informáticos que MacNamara contratara. Muito mais inteligente. Com tempo e com as ferramentas necessárias, Devan conseguia atravessar qualquer barreira de segurança e entrar em qualquer sistema. E, se a situação o pedisse, era suficientemente flexível para recorrer a tecnologias mais simples. Entrara em contacto com ela uma semana depois de ter saído do país.

Não sabia porquê. Já não tinha poder, não podia aceder a informação secreta ou privilegiada e não tinha influência para vender. Devan estava ali pelo dinheiro, como ela estivera. Manter-se numa situação de poder em Washington D.C era muito caro, mas, para ganhar dinheiro, era preciso estar lá. Dexter já se sentia satisfeito com o que tinham, mas apoiara-a no seu plano de vender informação aos russos e de obter um lucro enorme. Com o dinheiro e o poder suficientes, ela poderia ter chegado à Casa Branca. Que irónico e que amargo que tivesse sido ele a perder a vida, e não ela, por causa daquele plano. O marido só estava a fazer o que sempre fizera: Apoiá-la.

Fosse qual fosse o motivo, Devan não quebrara o contacto com ela e tinha uma ideia para se vingar de MacNamara. Talvez visse uma oportunidade de ganhar mais dinheiro, embora ela não entendesse como. Por muito que a notícia da sua relação com os russos estivesse silenciada por enquanto, o facto de matar MacNamara não ia servir para apagar o que acontecera.

Não importava. E o dinheiro também não. A única coisa que queria era vingar-se de Axel MacNamara pela morte de Dexter e, de passagem, se pudesse levar com ela as suas preciosas GO-Teams, ainda melhor.

De qualquer forma, ele tinha de morrer.

Capítulo 1

 

 

 

 

 

— Todos vocês vão ser transferidos — informou Axel MacNamara, com tensão.

Havia dez empregados de vários departamentos no escritório de MacNamara que, para o escritório do responsável por uma organização, era muito sóbrio e pequeno. Jina Modell não fora das duas primeiras pessoas a chegar à reunião, portanto, as duas cadeiras que havia à frente da secretária já estavam ocupadas e tivera de ficar de pé, como outros sete empregados.

A primeira coisa que sentiu ao ouvir o comunicado de MacNamara foi alívio. Nenhum deles sabia qual era o motivo por que tinham sido convocados para aquela reunião e ela receava que se tratasse de uma demissão, porque os cortes de orçamento estavam na ordem do dia, incluindo nos projetos secretos, pagos com dinheiro que estava muito bem escondido e era quase invisível.

Obviamente, não fora a única que pensara que seria despedida, porque se ouviram suspiros suaves, quase um murmúrio, por toda a sala.

Então, franziu o sobrolho. Trabalhava no departamento de comunicações e gostava realmente do seu trabalho. Gostava do salário e gostava de como os outros se impressionavam quando descobriam o que fazia, pois era muito chocante, até mesmo para Washington, D.C. Além disso, gostava de poder dar um pontapé no rabo dos terroristas sem ter de abandonar o conforto de uma sala de controlo climatizada. O facto de ser transferida talvez não fosse assim tão bom.

— Para onde? — perguntou, depois de uns segundos de silêncio, durante os quais mais ninguém fez aquela pergunta.

MacNamara nem sequer olhou para ela.

— Para as equipas — esclareceu ele. Então, pegou numa folha de papel e leu-a com cara de poucos amigos, como se não gostasse do que escrevera nela, ainda que, certamente, ao ser o responsável pela agência, tivesse sido ele a fazê-lo. — Donnelly, tu vais para a equipa do Kodak. Ervin, tu vais para a do Snowman. Modell, para a do Ace.

Continuou a ler, atribuindo-os a diferentes equipas, embora nenhum deles soubesse qual seria a sua função.

«Ace» era o nome de código de operações de Levi Butcher. Ela ouvira o nome, mas não conhecia pessoalmente nenhum dos chefes das equipas. Ace tinha a reputação de ficar com alguns dos trabalhos mais difíceis e… O que teria de fazer na sua equipa?

Jina habituara-se a pensar antes de falar, pois era algo necessário naquele trabalho. Ninguém podia saber o que fazia realmente, nem saber com exatidão onde trabalhava. Daquela vez, refletiu durante um segundo, porque era necessário fazer algumas perguntas e, evidentemente, como todos se sentiam intimidados com MacNamara e a sua fama desagradável, ninguém ia fazê-las.

Levantou a mão. MacNamara viu o movimento e levantou o olhar da lista.

— O que foi? — queixou-se.

— O que vamos fazer nas equipas? — perguntou.

Ficou surpreendido ao voltar a ouvir a voz dela, ao perceber que fora ela que falara antes, em vez de um dos homens. A sua voz era como era. Estava habituada às reações. O que era muito mais interessante era a situação atual. Não tinha informação sobre os outros, mas estava no departamento de comunicações e não tinha nenhum treino para fazer o que as GO-Teams faziam, que era criar o caos a uma escala maciça.

— Chegarei mais rapidamente a essa parte se pararem de me interromper — queixou-se MacNamara.

— Só interrompi uma vez — defendeu-se ela.

— Com esta, duas.

Tinha razão. Jina ficou calada e, depois de um segundo, ele voltou a ler. Depois de todos saberem para que equipa tinham sido transferidos, embora não soubessem que trabalho iam fazer, MacNamara recostou-se na cadeira.

— Vocês conseguiram as pontuações máximas nos testes de perceção espacial e de ação…

Jina mordeu a língua para não perguntar. Que testes? Ela não fizera testes. E, que soubesse, os outros também não.

— Que testes de perceção espacial e de ação?

MacNamara fixou o seu olhar furioso nela e, novamente, fez-se silêncio na pequena sala. Começou a bater com o extremo da caneta na mesa, com rapidez. A sua expressão dava a entender que conhecia lugares onde poderia livrar-se do seu corpo. Certamente, conhecia muitos e usara bastantes.

No entanto, ele disse, com secura:

— Os videojogos da sala de descanso.

Ah! Ouviram-se uns murmúrios apagados pelo escritório. Há vários meses, tinham-lhes instalado uns videojogos de guerra na sala e alguns empregados tinham começado a jogar em todas as pausas e a competir para ver quem obtinha a pontuação máxima. Jina tinha muita prática naquele tipo de jogos. Participara na competição amistosa e ganhara com regularidade. Conseguira aborrecer os rapazes que tanto diziam que as raparigas não tinham jeito para aqueles jogos. Dera-lhes uma lição. Aqueles videojogos eram complicados e muito realistas, muito mais avançados do que qualquer outro produto comercial. Eram incrivelmente sofisticados e, à vista dos factos, incrivelmente secretos também.

Voltou a levantar a mão. Ena, seria a única que sabia falar? Porque é que os outros não faziam perguntas e observações?

MacNamara beliscou a cana do nariz e resmungou, em voz baixa.

— Não estou qualificada para fazer parte de uma equipa — disse. Envergonhava-se de dizer algo tão óbvio, mas era a verdade. Por muito bem posicionada que tivesse ficado no ranking dos videojogos, os membros das GO-Teams eram super-homens. Conseguiam percorrer quilómetros a nadar ou a correr, porque passavam muitas horas a treinar. Tinham uma pontaria muito certeira. Às vezes, trabalhavam com mulheres que eram igualmente qualificadas, mas ela não era uma dessas mulheres. Sabia nadar e corria de vez em quando, mas não era a rainha do desporto.

— Nenhum de vocês está qualificado — respondeu MacNamara. — Todos vão receber treino. E, de todos os modos, não vão participar na parte física das operações.

— Então, o que vamos… — quis perguntar Jina.

— Lembro-vos de que o vosso contrato inclui uma cláusula de confidencialidade. A resposta é a seguinte: Os membros da equipa têm uma grande capacidade de perceção das situações, mas a um preço muito elevado. Perceber que se aproxima um pastor de cabras e calcular o tempo que vai demorar a chegar até eles pode distraí-los do objetivo da missão. Não muito, porque estamos a falar de pessoas suficientemente boas para fazer parte de uma GO-Team, mas, mesmo assim, até um segundo conta. Fizemos milhares de análises e, todas as vezes, o facto de ter um operador in situ dedicado ao movimento, aos tempos e à perceção espacial foi uma grande vantagem. O operador usará um drone controlado por computador para vigiar os arredores. Com essa visão extra, a percentagem de possibilidade de sucesso da missão aumenta em três por cento e o risco de morte de um dos membros da equipa diminui em dois por cento. As mudanças são pequenas, mas muito importantes.

«Sobretudo para os membros que se tornam baixas», pensou Jina, ironicamente.

Muito bem, entendia a importância do que MacNamara estava a dizer-lhes. O que não entendia era o que podia fazer numa situação de combate. Não era atlética, não era intrépida, não era adivinha, portanto, como raios saberia para que direção o pastor de cabras seguiria? Nunca tivera a ambição de ser boa nesse tipo de coisas. Tinha jeito para jogar um videojogo de guerra em particular, era só isso.

Não ia funcionar.

— Isto não vai funcionar — declarou.

MacNamara apoiou a cabeça nas mãos e agarrou o cabelo como se fosse arrancá-lo, ainda que tivesse de admitir que talvez estivesse a pensar em esmagar-lhe o crânio.

— Não, claro — replicou ele, com um rugido. — Como se nós não soubéssemos o que estamos a fazer, como se não tivéssemos estudado todas as possibilidades e os possíveis obstáculos, como se não tivéssemos analisado todos vocês até sabermos mais sobre vocês do que vocês próprios sabem. Pensámos em fazer isto para nos rirmos um bocadinho, para ver até que ponto conseguem deitar tudo a perder.

Não gostava que a analisassem sem saber que estavam a fazê-lo. Por outro lado, sabia que os analistas da empresa eram dos melhores no seu campo, portanto, pelo menos, isso dava-lhe certeza, embora não estivesse muito convencida.

— E se algum de nós não estiver interessado? — perguntou, já que mais ninguém o fazia.

— Então, peguem nas vossas coisas e procurem outro emprego — replicou MacNamara, com um olhar fulminante. — Não quero cobardes. Já contratámos pessoas para ocupar os vossos cargos anteriores.

Finalmente, outro atreveu-se a falar.

— Portanto, se não superarmos o treino ou se formos feridos numa missão, ficamos sem emprego.

— Eu tomo conta dos meus empregados! — exclamou MacNamara. — Se alguém for ferido, receberá o mesmo tratamento do que qualquer outro membro da equipa. Terá assistência médica, uma transferência de cargo, uma pensão… O que for necessário. Este é um trabalho muito difícil. De todas as pessoas que jogaram esses videojogos, vocês foram os dez que conseguiram a pontuação mais alta e eu não estaria a fazer tudo isto se não pensasse que vale a pena correr o risco pelos benefícios que podemos receber. Não vão ver-se envolvidos em combate a menos que alguma coisa corra mal, mas é necessário estarem em forma e que as vossas habilidades em campo estejam o mais capacitadas possível, para que não sejam um estorvo para os operadores da missão. Há mais alguma pergunta? Não. Era o que me parecia. Limpem as vossas antigas secretárias e apareçam amanhã às sete em ponto na cave, com calções, uma t-shirt e calçado especial para atletismo. Vão levar-vos para outra localização e o vosso treino físico começará.

«Treino físico. Oh, meu Deus», pensou Jina. «Terra, engole-me.»

 

 

A carrinha em que iam, uma Ford Transit de quinze lugares, decrépita e enferrujada, parou com um barulho dos travões. Os bancos estavam desgastados e tinham rasgões e havia um buraco no chão através do qual se via o asfalto a passar por baixo deles. O motor queixava-se como um fumador empedernido. Jina não se teria surpreendido se tivessem tido de a empurrar até ao seu destino.

No entanto, a carrinha chegou, não sem muitas rezas e figas. O homem que ia ao seu lado abriu a porta e os dez saíram. O último fechou a porta e, imediatamente, o motorista acelerou e foi-se embora.

Todos olharam à volta.

— Onde raios estamos? — perguntou um dos homens.

«No meio do nada», pensou Jina. Prestara atenção ao caminho e sabia que estavam em alguma parte da Virgínia. A carrinha deixara-os no extremo de um campo grande e aberto, cheio de pilhas de fardos de feno, de paredes de madeira, de cordas grossas com nós, de fileiras de arame farpado e de outros objetos cujo uso não era tão claro, mas que, certamente, estavam destinados à tortura. A deles. Todo o campo estava rodeado por uma pista de terra que entrava no bosque que havia do outro lado. Não era uma pista normal, pois tinha elevações de pedras, colinas e lances de areia e lama. O que não havia era nenhum vestígio de civilização, nem sequer um café.

Apesar de estarem ali há muito pouco tempo, já sentia o pó vermelho do terreno na garganta e no nariz. Na Geórgia, vira muito pó vermelho e não tinha medo, mas também não gostava. Não gostava de terra, não gostava de suar e não gostava nada daquilo.

No entanto, o suor era melhor do que o desemprego, pelo menos, por enquanto. Logo veria o que faria no dia seguinte.

Havia pessoas a mexer-se ao redor numa espécie de caos. Cerca de trinta homens, espalhados pela zona de treino, a fazer coisas que pareciam impossíveis para os seres humanos normais. De repente, ouviu-se uma rajada de tiros e ela olhou à volta com angústia para ver de onde procediam. No entanto, não havia nenhum alvo à vista. O ar encheu-se do cheiro acre de pólvora queimada, portanto, quem disparava devia estar perto. O seu pequeno grupo continuou unido, observando, em silêncio, os outros homens, os que estavam a fazer coisas de um perigo mortal que eles tinham de aprender. E não podiam dizer nada: Ou o faziam ou teriam de começar a procurar outro emprego.

O sol estava muito quente e ela já estava a suar. O pó infernal transformara a sua garganta no Vale da Morte. Finalmente, alguém reparou neles ou decidiu que já os tinham feito esperar o suficiente, porque era duvidoso que alguma coisa escapasse à atenção daqueles homens. Um tipo enorme e forte, com a cabeça rapada e muito moreno por causa do sol, aproximou-se. Usava uma t-shirt verde, encharcada em suor, umas calças caqui e umas botas especiais para o deserto. Estava coberto por uma camada fina de pó, exceto nos lugares onde o suor o transformara em lama. Parecia uma muralha de músculos em movimento. Quando se aproximou, perguntou-lhes:

— Vocês são os novos, não são?

Os dez assentiram em silêncio.

— Eu sou o Baxter — apresentou-se o tipo, sem se incomodar em especificar se era o seu nome próprio ou o seu apelido. — Muito bem, vamos começar como se fossem entrar no exército. Primeiro, vão correr. Precisamos de saber quem está em boa forma física e quem não. Sigam-me.

Começou a correr com um trote relaxado, mexendo-se com uma facilidade surpreendente, tendo em conta como era volumoso. Os dez entreolharam-se hesitantemente e, depois, seguiram-no com ânimo. Jina manteve-se no meio do grupo, tentando não perder a cabeça rapada de Baxter de vista. Não queria chegar em último lugar, mas também não queria ser a primeira para não chamar a atenção. A chave era reservar as forças, porque não sabia o que iam ter de fazer depois.

Aquela era a teoria, mas, na prática, não parava de chocar com os que iam à frente. Além disso, todos eram de maior estatura do que ela e impediam-na de ver o terreno. Cambaleou ao encontrar de repente, por baixo dos pés, uma das elevações de pedra da pista e quase caiu quando o terreno se inclinou com brusquidão. Voltou a cambalear quando entraram num lance de areia tão suave que os pés se afundaram nela. Claro, era por isso que os homens que estavam a treinar ali usavam botas e não ténis de desporto. Os únicos que usavam ténis eram os seus nove colegas e ela, embora MacNamara tivesse dito especificamente que deviam usar calçado especial para atletismo.

Acabara de aprender uma lição: Perguntar às pessoas que faziam aquele tipo de exercício qual era o melhor calçado.

No caso de não ser expulsa do primeiro treino.

«Nem pensar», pensou. Não queria que a atribuíssem a uma GO-Team, mas também não queria falhar. Fora criada no campo, no sudeste da Geórgia, a correr descalça durante a maior parte do ano, portanto, podia estar à altura de uns tipos que só tinham corrido numa pista de desportos ou pelas ruas da cidade.

Depois de cinco minutos, começaram a arder-lhe um pouco os músculos, o coração batia com força e tinha a respiração acelerada. Cinco minutos! Estava em pior forma física do que pensava. Então, os tipos que iam atrás dela perceberam que uma rapariga estava a ganhar-lhes e começaram a esforçar-se mais.

Jina também se esforçou mais, pois queria manter-se no meio do grupo. Isso era a única coisa que tinha de fazer. Não tinha de ganhar a corrida, só fazer o necessário para não chamar a atenção.

De repente, alguém a ultrapassou bruscamente e empurrou-a com um ombro. Ela perdeu o ritmo e, quando o recuperou, já estava no fim do grupo. Entre suspiros, lançou um olhar assassino ao homem que a empurrara. Era Donnelly. Estava no seu departamento e ela achava que o tinham atribuído à equipa de Kodak. Kodak era um tipo afável. Teria escolhido a sua equipa se lhe tivessem dado a oportunidade.

Donnelly era um desgraçado. Jina respirou fundo e acelerou. Ultrapassou alguns dos seus colegas e pôs-se mesmo atrás de Donnelly, de lado. O terreno era tão irregular que era perigoso desviar a atenção da corrida, mas havia coisas que ela não podia deixar passar. Donnelly devia ter sentido a sua presença atrás dele. Lançou-lhe um olhar rápido, por cima do ombro, e ela aproveitou aquele momento de perda de atenção para dar um toquezinho a meio do seu passo. Não lhe fez uma rasteira, porque ela também teria caído, mas o toquezinho foi suficiente para que ele tropeçasse e caísse de frente, mexendo os braços aparatosamente.

Baxter devia ter olhos nas costas, porque, sem se virar, gritou:

— Levanta-te e corre!

Donnelly levantou-se rapidamente e seguiu-os, alguns metros mais atrás. Não havia muitas esperanças de os alcançar, a menos que tivesse reservado forças, coisa que, certamente, não fizera. Olhou para trás rapidamente e viu-o. Estava vermelho e tinha a boca aberta.

Porque raios a empurrara? Nunca lhe fizera nada, não trocara nenhuma palavra com ele. Era verdade que ganhara nos videojogos, mas ganhara a todos, não só a ele. Bom, devia ter pensado nisso como algo pessoal.

Lamentava muito. Era apenas um jogo e ela não teria jogado se soubesse que a poria naquela situação. Preferia estar sentada num edifício com ar condicionado a ter de correr com aquele calor, com os ténis cheios de areia fina que lhe arranhava a pele dos pés e com a boca e os pulmões cheios de pó. Doíam-lhe as pernas. Tinha vontade de vomitar.

Um dos seus colegas, que ela não conhecia, parou, apoiou as mãos nos joelhos e vomitou. Ela respirou fundo para não fazer o mesmo. Não ia vomitar, não ia vomitar, não ia vomitar…

Exatamente quando pensava que teria de vomitar, Baxter levantou um braço.

— Pausa para beber água! — gritou.

Oh, meu Deus! Jina parou e obrigou-se a continuar erguida, enquanto respirava fundo desesperadamente. Estavam todos a ofegar do mesmo modo. Tinha muita vontade de se inclinar para a frente, mas, se o fizesse, podia cair ou vomitar, portanto, olhou para o céu e concentrou-se em não perder as forças nas pernas trémulas.

— Não fiquem aí parados, parvos! — gritou Baxter. — Peguem nas garrafas de água! Hidratem-se!

Água. Havia água. Havia uma geleira grande num banco de madeira. A geleira estava aberta e, no seu interior, havia gelo e garrafas de água. Abriu caminho entre os corpos maiores dos homens e pegou numa garrafa. Tremiam-lhe todos os músculos do corpo. Enquanto tentava desenroscar a rolha, a garrafa caiu ao chão e rodou entre os pés do grupo. Merda! Em vez de tentar recuperá-la, pegou noutra. Agarrou em alguns pedaços de gelo e pô-los na nuca. Imediatamente, sentiu tanto alívio que suspirou. Talvez não vomitasse. Talvez não desmaiasse.

— Patético — queixou-se Baxter, com desagrado. — De certeza que um grupo de tartarugas se mexeria mais depressa do que vocês. Metade parece pronta para desmaiar e só corremos três quilómetros e meio. A outra metade não está muito melhor. Raios, filho, estás a vomitar?

Um instante, pensou Jina, três quilómetros e meio? Só tinham corrido três quilómetros e meio? Em primeiro lugar, um hurra, porque tinham corrido três quilómetros e meio, mas… não deviam ter corrido trinta e cinco? O seu coração e os seus pulmões pensavam que sim. Claramente, Baxter tinha o podómetro avariado.

Enxugou o suor da cara e bebeu mais água. Quando baixou a garrafa, viu algo ameaçador.

Semicerrou os olhos. Aproximavam-se sete homens que a assustavam. Eram muito grandes, estavam cheios de pó e de suor, tinham muitos músculos e não sorriam. Mexiam-se de uma forma que transmitia poder. Tinham várias armas presas ao corpo, algo que já assustava por si só. Embora aquilo fosse um treino, as facas e as armas de fogo eram reais.

Além disso, estavam concentrados no seu grupo de novos como se fossem leões concentrados numa manada de gnus.

Jina sentiu um formigueiro de alarme na pele. Ficou a olhar para a muralha de músculos que avançava para eles, questionando-se com insegurança o que ia acontecer.

— Eh, meninos — disse aos outros, para os avisar. No entanto, ao olhar em redor, apercebeu-se de que ficara sozinha, de que Baxter levara os seus colegas sem que ela percebesse.

Raios! Rapidamente, deu um passo para o seu grupo, mas não pôde segui-los, porque a muralha de homens enormes já estava a rodeá-la. Sete homens que olhavam para ela fixamente, sem um só sorriso. De repente, sentiu-se muito insignificante e não gostou disso.

O coração acelerou. O seu instinto mais primitivo disse-lhe que estava à mercê de sete predadores e que podia acontecer qualquer coisa, o que sempre acontecera às mulheres, desde antes das cavernas e das tangas. As mulheres inteligentes nunca baixavam a guarda.

Queria uma arma, qualquer arma. Como não a tinha, ergueu os ombros, semicerrou os olhos e observou-os de forma beligerante, esperando que algum deles falasse. Até ao momento, a única coisa que tinham feito fora asfixiá-la com a sua proximidade excessiva e o seu cheiro a suor e testosterona.

Eles eram sete, e ela, uma. Já estava cansada por causa do treino com Baxter. Mesmo que tivesse sido capaz de fugir, qualquer um deles a teria alcançado.

Mas, não, não ia fugir. Eles não iam amedrontá-la.

O maior de todos falou finalmente. Tinha uma voz grave e áspera, como se fizesse gargarejos com rochas.

— Disseram-nos que és a nossa rapariga.

Capítulo 2

 

 

 

 

 

Jina olhou para todos, embora estivesse demasiado nervosa para conseguir ver realmente as suas caras ou para ser capaz de se concentrar em alguma coisa, exceto no facto de serem muito grandes e de a terem rodeado. No entanto, sabia que tinha de agir de uma forma calma e controlada. O instinto também lhe disse que não devia zangar-se com o facto de lhe chamarem «rapariga». Para ganhar uma batalha era preciso ter sentido de oportunidade e aquela não era a oportunidade mais ideal. Era a sua primeira reunião e todos a rodeavam. Provavelmente, sentiam-se um pouco hostis e duvidavam que conseguisse fazer o trabalho. Assim, disse:

— Então, suponho que vocês sejam os meus rapazes.

O tipo maior ficou a olhar para ela fixamente.

— Babe — disse, num tom de surpresa.

Todos ficaram espantados com a sua voz. Era uma voz grave, de fumador, e um pouco rasgada, muito mais sensual do que a sua própria aparência física. Ela tivera de suportar as reações àquela sua voz durante toda a vida. Quando era criança, as pessoas que falavam com ela ao telefone pensavam que estavam a falar com uma mulher adulta.

Outro dos tipos disse:

— Acho que acabou de te dar uma alcunha.

Como? Nem pensar! Ela sabia o que queria dizer. Todos tinham alcunhas, mas ela não queria ser Babe, nem humana, nem porquinho. Queria uma alcunha sofisticada, uma alcunha de rapariga má, para que as pessoas que a ouvissem soubessem que não podiam meter-se em confusões com ela.

— Não pode ser Babe. Não gosto — declarou. — Gosto de Granada, Assassina ou uma coisa dessas.

Ao ouvi-lo, riram-se.

— Lamento muito, mas não podes escolher — indicou o tipo grande.

— Ninguém vai levar-me a sério.

— De qualquer forma, não te levamos a sério — indicou ele, com frieza.

— Talvez ainda não, mas vão fazê-lo — replicou ela e observou-o com cara de poucos amigos.

Voltaram a rir-se. Todos, exceto o tipo grande. Não parecia ter muito sentido de humor. Embora ela também não estivesse a brincar.

— Será o melhor, porque as nossas vidas dependem de fazeres bem o teu trabalho — redarguiu ele. — Por isso, vamos encarregar-nos do teu treino. Já temos tudo pronto.

Oh, oh! Não. Iam acabar com ela. Estavam muito acima das suas possibilidades. Queria continuar a correr no meio de um grupo de novatos, não queria ver-se humilhada por um grupo de tipos com um treino de elite. Talvez pudesse treinar com eles ao fim de seis meses. Apontou vagamente na direção em que os outros se tinham afastado.

— Não, tenho de ficar com o meu grupo — declarou. — Ainda não estou pronta para o vosso nível, a sério.

— Já sabemos — disse o tipo mais pequeno de todos, o que era algo relativo, porque media mais de um metro e oitenta. Tinha a cara tão suja que, certamente, não ia reconhecê-lo quando a lavasse, mas os seus olhos eram azuis e parecia ter duas cicatrizes no meio da testa. — Mas vamos preparar-te muito mais depressa do que o Baxter, porque ele tem de tomar conta de todos e nós só vamos tratar de ti.

Sentiu pânico. Engoliu em seco e disse:

— Estou perdida.

— Não tens ideia — replicou o tipo grande e fez um gesto para que os seguisse. — Vamos começar.

Oh, meu Deus!

 

 

Seis horas depois, Jina estava estendida no chão, a olhar para o céu azul e a pensar que partir algum osso seria melhor do que aquilo. Talvez pudesse fazer uma coisa dessas: Cair e partir as duas pernas, causar um traumatismo craniano ou algo assim. Faria o que fosse preciso para sair daquele inferno. Não gostava de estar suada e suja, mas estava coberta de sujidade. Não gostava de estar prestes a vomitar, mas já vomitara duas vezes à frente dos seus colegas de equipa. Infelizmente, nem sequer vomitando conseguira fazer com que sentissem compaixão. O dos olhos azuis, cuja alcunha era Snake, dissera: «Isso aconteceu a todos.» E o tipo grande, que era Ace, o chefe, dissera: «Levanta-te e mexe o rabo.»

Idiota.

Todos eram uns idiotas, mas ele era o maior idiota de todos, literal e figurativamente. Também era o chefe e olhara para ela como se estivesse à espera que se rendesse e confirmasse a má opinião que tinha dela. Por esse motivo, recusara-se a render-se. Levantara-se e mexera-se. Continuara a corrida que mal avançava, mas que, pelo menos, a fizera mexer-se.

Naquele momento, Ace deu-lhe uma garrafa de água.

— Vá lá, bebe! — ordenou e ela mexeu um braço muito dorido para pegar na garrafa, embora não soubesse como ia beber água assim, deitada de barriga para cima. Talvez devesse entorná-la na cara e sugar algumas gotas.

Não, isso não ia servir. Já se sentia suficientemente mal por ter vomitado à frente deles. Portanto, ia sentar-se e beber a água.

Com um gemido, rodou, pôs-se de costas, pôs o cotovelo esquerdo por baixo do seu corpo e elevou-se até quase se endireitar. Com outro esforço doloroso, conseguiu sentar-se. Abriu a garrafa de água e inclinou-a para beber dois golinhos, porque já aprendera que não devia beber goles grandes. Depois de beber um pouco, lançou um olhar turvo a Ace.

— Odeio-te — declarou. — Odeio-vos a todos. São uns valentões e uns sádicos. Certamente, o vosso passatempo é assustar as crianças no Natal, em vez de no Dia das Bruxas. Todos vocês — repetiu.

Snake sentou-se no chão, ao seu lado.

— Vá lá, vá lá, não sejas assim — replicou, alegremente. — Vamos pôr-te em forma. Vais estar mais em forma do que nunca. Vais conseguir correr e nadar muitos quilómetros…

— Não quero correr nem nadar — queixou-se ela. — Não quero que me doa o corpo quando respiro. Não quero ter terra por baixo das unhas e olha! — exclamou e mostrou a mão. Tinha as unhas cheias de terra e a maioria delas estava partida. Normalmente, não usava as unhas compridas, porque era incómodo para trabalhar com o teclado do computador, portanto, não se importava que estivessem partidas. Mas, a terra… não. Isso, não.

Todos os membros do grupo se sentaram no chão, formando um círculo. Durante as últimas seis horas, aprendera as suas alcunhas e os seus nomes. Ace era Levi Butcher, o chefe da equipa, e um tipo duro. Assustava-a, porque tinha uns olhos escuros e inexpressivos com que olhava para ela fixamente, como se quisesse dissecá-la. Deixara bem claro que não queria que estivesse ali, mas que, como estava, ia pô-la em forma, mesmo que isso acabasse com ela. Não sabia o que ele preferia, se matá-la ou pô-la em forma, mas estava quase certa de que era a primeira opção.

Snake era o médico da equipa e, regra geral, era o mais alegre. Por esse motivo, pensara bem dele ao princípio, mas, depois, tivera de se questionar que tipo de sádico ficava de tão bom humor a fazer outra pessoa sofrer. Quase tinha vontade de lhe dar uma bofetada por fazer com que desconfiasse da alegria dos outros.

Crutch era loiro e calado, mas, a julgar pelo que vira, era o mais propenso a fazer brincadeiras. O seu silêncio era enganoso e, por isso, mantivera-se afastada dele. Não queria ser vítima de uma das suas brincadeiras. Não conseguia suportar esses vandalismos naquele momento. Quase não conseguia suportar andar.

Também havia Boom, que parecia o mais velho de todos eles. Devia ter perto de quarenta anos. Era muito grande e volumoso, mas rápido e muito ágil.

Trapper parecia tão afável como Snake, mas, mais uma vez, aquela era uma impressão enganosa, porque era o francoatirador da equipa, o que significava que tinha muito jeito para matar pessoas. Jina não queria pensar nisso. Sabia o que as GO-Teams faziam, mas não esperava que os seus membros parecessem pessoas tão normais, à exceção da sua condição física de super-homens. Trapper contava piadas, ria-se das brincadeiras e tinha a mesma atitude competitiva do que os outros, com a qual enfrentavam tudo.

Jelly, pelo contrário, era tão jovem que ainda nem devia barbear-se. Também era o mais dado a enfrentar os outros e ficava à parte, com um sorriso de satisfação, se conseguisse fazer com que começasse alguma discussão. Tinha medo de olhar para ele. O que tinham aqueles tipos que conseguiam fazer com que ela suspeitasse da alegria, do sorriso e do bom humor? Aquilo estava mal. Toda a situação era estranha.

O último era Voodoo. Aparentemente, ele estava ainda mais descontente com a sua presença do que o próprio Levi. Não tinha nada para lhe dizer, não lhe dera nenhum conselho nem nenhum ânimo, não interagira com ela. Era como se fosse invisível para ele. Era uma pena não ter sido invisível para os outros.

— Bebe toda a água que conseguires — recomendou Snake. — Assim, não terás tantas dores.

— Não servirá de nada — respondeu ela. — Amanhã, não vou conseguir mexer-me.

— Terás de o fazer — declarou Levi. — Seja como for. Quando estamos numa missão, fazemos o que temos de fazer, por muito que nos doa ou por muito mal que estejamos.

Ótimo. Isso queria dizer que não ia ter um dia livre para recuperar.

— Toma um banho de água quente — continuou Snake. — E, depois, de água fria, com gelo, se conseguires suportá-lo.

O seu olhar de espanto deu-lhes a entender o que sentia, porque alguns desataram a rir-se. Levi e Voodoo, não. Eles ficaram ainda mais sérios.

Ela bebeu mais água, tapou a garrafa e levantou-se com esforço.

— Bom, rapazes, foi fantástico — mentira —, mas, a não ser que queiram continuar a matar-me depois de escurecer, tenho de voltar para o meu grupo para ir para casa.

— Boa sorte — disse Levi. — Foram-se embora há uma hora.

Como? Jina virou-se e descobriu, com horror, que o campo de treino estava deserto. Até Baxter se fora embora. Ainda havia alguns carros no estacionamento. Eram sete, portanto, eram os carros dos membros da sua equipa.

— Eu levo-te a casa — ofereceu-se Jelly.

— Não confies nele — avisou Trapper, rapidamente. — Conduz pior do que um adolescente bêbado. Eu levo-te.

Snake suspirou.

— Esquece. Sei que passarias por Nova Iorque porque te pareceria uma coisa muito engraçada. Eu levo-a.

— Eu levo-a — declarou Levi, enquanto se levantava. A sua voz profunda silenciou as gargalhadas e parou imediatamente a discussão. — De qualquer forma, tenho de a pôr ao corrente de algumas coisas.

Não houve mais ofertas nem mais brincadeiras. O chefe falara e ninguém se atreveu a contradizê-lo.

— Vamos — disse-lhe e encaminhou-se para o estacionamento.

Jina seguiu-o com resignação.

Reparou que havia dois tipos de veículos: Três carros desportivos e quatro todo-o-terreno. Esperava que o de Levi fosse um dos desportivos, para poder deixar-se cair no banco sem mais nem menos, mas, é claro, tratava-se de um dos todo-o-terreno, um que poderia ter sido do Darth Vader. Preto, mate e sem brilho. De facto, não havia nada brilhante em todo o veículo. Não havia nada cromado, nem sequer nos pneus, no espelho retrovisor ou nos puxadores das portas.

— Como o encontras na escuridão? — perguntou ela. — Atas-lhe um balão?

— Tenho jeito para encontrar coisas na escuridão — disse ele, sem vestígios de um sorriso. — As portas estão abertas. Entra.

«Entra.» Sim, claro. Jina abriu a porta do passageiro e olhou para o interior. O chão do carro era uns trinta centímetros mais alto do que o de um todo-o-terreno normal. Em qualquer outro dia, teria conseguido entrar sem problemas, mas aquele não era “qualquer outro dia”. Todos os músculos do seu corpo tremiam de fadiga, ao ponto de até andar requerer um esforço supremo.

Levi sentou-se ao volante e observou-a com uma expressão pétrea.

Era uma espécie de teste? Estava à espera que lhe pedisse ajuda? Achava que não conseguia entrar no seu «Vadermóbil» nojento?

Começou a fazer exatamente isso. Talvez, se pedisse ajuda, o chefe a rejeitasse porque não estava qualificada para fazer parte da equipa. MacNamara dissera que, se algum deles não conseguisse suportar as exigências físicas do trabalho, não seria despedido. Se o facto de não entrar no todo-o-terreno de Levi a libertasse daquela tortura física, o mais inteligente da sua parte seria aproveitar a oportunidade.

Contudo, não podia. Render-se não estava no seu ADN. Por muito tentadora que fosse aquela via de escape, tinha de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance ou teria de aceitar que era das que abandonava algo importante quando a situação ficava difícil.

— Deviam ter acabado os tanques quando foste comprar o carro e tiveste de te conformar com isto — resmungou, enquanto se agarrava ao apoio de braços com a mão direita e se esticava para agarrar o puxador da porta. Levantou um pé enquanto lhe tremiam os braços para tentar entrar. Não conseguiu. Os bíceps não suportaram o esforço e ela voltou para o chão.

Darth Vader não disse nada. Esperou, olhando para ela fixamente com os seus olhos impenetráveis.

Olhou por cima do seu ombro, para trás. Os outros seis estavam ali, a observá-la. Mesmo que lhe oferecessem ajuda, não poderia aceitá-la. No entanto, não parecia que tivessem a intenção de o fazer. Não eram amigos e não podia esquecê-lo. Ela estava ali porque a tinham obrigado e tinham-nos obrigado a aceitá-la na equipa. Suspeitava que tinham feito um sorteio e Levi tivera a pior sorte.

A pior sorte, claro! Impulsionou-se para cima.

Santo Deus, ia entrar naquele todo-o-terreno. No entanto, ainda não conseguira levantar o pé o suficiente.

Então, olhou à volta, em busca de um balde, um bloco ou uma… rocha. Havia uma pedra do tamanho do seu punho ao lado do pneu da frente, como se Deus a tivesse posto ali para ver se resistia à tentação de a atirar aos seus torturadores.

— Um momento — disse e arrastou a pedra para si com um pé.

— O que estás a fazer?

— Vou buscar uma pedra. Preciso dela.

— Não atires…

— Vou usá-la para entrar — explicou Jina, com tensão. — Não sejas parvo!

Oh! Ena, certamente, não devia chamar «parvo» ao chefe.

— Desculpa, lamento — acrescentou, enquanto pensava: «Não lamento nada.»

Ele bateu com os dedos no volante, enquanto esperava.

Estava claro que, se não conseguisse entrar com a ajuda da pedra, não ia esperar enquanto procurava outra coisa para a ajudar. Podia pedir a algum outro para a levar, mas, raios, aquilo era um teste. Se chumbasse, não seria porque não se esforçara para tentar passar. Pôs o pé esquerdo na pedra e elevou-se uns cinco centímetros muito valiosos. Voltou a agarrar-se ao carro e, finalmente, conseguiu levantar o pé o suficiente para prender a ponta da sapatilha na beira da porta. Embora lhe tremessem os músculos das pernas e dos braços, o desgraçado continuou ali, a olhar para ela, como se não se importasse se caía do todo-o-terreno e se matava contra o chão, onde, certamente, ele atropelaria o seu cadáver ao sair. Jina cerrou os dentes para não dizer nada de que pudesse arrepender-se e concentrou-se em pôr todas as suas energias no último impulso para cima.

Bom, talvez a palavra «impulso» fosse demasiado otimista. Na verdade, conseguiu mexer-se um pouco. Nesse momento, escorregou-lhe o pé, mas aterrou num joelho e isso era melhor, mais seguro. Agarrou-se ao extremo mais afastado do banco com a mão esquerda, arrastou-se pelo chão do carro e, dali, conseguiu mexer-se laboriosamente até se sentar no banco.

Os seis homens que estavam em formação de animadoras de claque, a observá-la, começaram a aclamar e aplaudir. Mostrou-lhes o dedo do meio bem esticado e fechou a porta com força. Pôs o cinto e olhou para a frente, em silêncio. Foi a única coisa que pôde fazer para se reprimir e não fazer um gesto obsceno ao homem que estava ao volante.

Ele pôs o carro a trabalhar e meteu a mudança. O som suave do motor chamou a atenção de Jina. Nenhum motor de um carro comercial soava assim. Tendo em conta o aspeto do todo-o-terreno e o som do motor, as modificações que fizera ao veículo, certamente, tinham invalidado o seguro.

Franziu o nariz. O carro cheirava mal. Ou melhor, era Levi Butcher que cheirava mal, a suor, a pó e a testosterona. Depois de cheirar um pouco mais, teve de admitir que ela também contribuía para o mau cheiro. Precisava tanto de tomar um duche como de se deitar!

— Bom, então, sabes onde estás — declarou ele, sem preâmbulos. — Nós não queremos que estejam aqui. Nenhum de nós. E estou a falar de todas as equipas. Não queremos ter de cuidar de principiantes. O pessoal sem uma qualificação adequada pode fazer com que nos matem a todos. E, como és mulher, és uma responsabilidade ainda maior. Carregaram-me contigo porque o Mac pensou que, se há alguma equipa que consegue lidar com essa dificuldade acrescentada, é a nossa.

— Ena! — troçou Jina. — Que honra…

Ao ouvir o seu tom sarcástico, observou-a fixamente.

— Isto não é uma questão de sexismo. Nós trabalhamos muitas vezes com agentes femininos. Mas elas têm treino e querem estar aqui. Tu não cumpres nenhum dos dois requisitos.

Teria gostado de o contradizer, mas não pôde.

— Se alguma vez tiver de escolher entre ti e os meus homens, vou escolher sempre os meus homens. Não penses que vou saltar para a frente de uma bala para te salvar só porque és uma mulher.

— Muito bem, entendido — disse ela. — Não valho nada.

Novamente, lançou-lhe um olhar sombrio e não disse nada que pudesse reconfortá-la.

— Durante uma temporada, não virás connosco. Tens de passar por um treino intensivo, não só o físico que vais fazer connosco, mas a qualificação tecnológica com o drone. Além disso, terás de praticar tiro, salto de paraquedas…

— Eh? Tenho de saltar de paraquedas?

— Algumas vezes, temos de aceder ao ponto da missão de paraquedas. Não vamos preparar uma estrada especial para ti.

— Hum, hum! Não. Não vou atirar-me de um avião.

Falava a sério. A ideia causava-lhe pavor. Não tinha medo de andar de avião, nem das alturas, mas o seu sentido de sobrevivência era demasiado agudo para tentar fazer bungee jumping.

— Vais fazê-lo — declarou ele, num tom que não admitia respostas.

Ela fechou a boca. Naquele momento, não ia discutir, mas isso não significava que tencionasse render-se. Encontraria uma forma de se livrar daquilo, qualquer forma, fosse o que fosse.

— Em alguns dos sítios a que vamos, precisarás de usar lentes de contacto escuras. Tens os olhos demasiado claros. Compra umas e habitua-te a usá-las. E, se não usares algum método anticoncecional de forma habitual, começa a fazê-lo.

Ela continuou calada. Em algumas ocasiões, o silêncio era a melhor resposta. Se ela tomava ou não contracetivos não lhe dizia respeito. Além disso, entendia porque o dissera e não era necessário dar-lhe explicações. Iriam a lugares perigosos e, se a capturassem, sofreria um tratamento atroz, violações incluídas. Sentiu um nó no estômago ao pensar no caminho perigoso que a sua vida estava a seguir e interrogou-se se devia continuar ou não. Talvez devesse afastar-se naquele momento, tendo em conta que não estava completamente convencida do que fazia. Podia ir falar com Alex MacNamara e dizer-lhe que não conseguia fazê-lo, deixar que a despedisse e receber o subsídio de desemprego enquanto procurava outro trabalho.

Não tinha de ficar na zona de Washington D.C. Sempre podia voltar à Geórgia. Lá, tinha a família e teria apoio. Poderia recuperar o estilo de vida tranquilo da sua cidade natal, como se nunca se tivesse ido embora para construir uma vida independente.

No entanto, fora-se embora porque queria pôr-se à prova e encontrara um emprego muito interessante. Tinha um bom salário e fazia uma coisa de que gostava. Isso valia muito a pena.

Desistir?

Como podia desistir? Como podia não tentar?

Uma pessoa sensata desistiria. Não ficaria ali sentada depois de o chefe lhe dizer que todos os outros membros da sua equipa valiam mais do que ela.

Aquela foi a prova confiável de que não era sensata, porque, em vez de lhe dizer que queria desistir, perguntou:

— Tens um dispositivo de seguimento no meu carro ou precisas de saber onde nos encontrámos com o motorista da carrinha esta manhã?

Porque ele não perguntara e, se ia levá-la ao edifício de escritórios, estava confuso. Naquela manhã, tinham-nos enviado para um estacionamento diferente, a certa distância do edifício, para que entrassem na carrinha.

— Pus um localizador ontem à noite — declarou ele, com tensão.

E, para espanto e fúria de Jina, não estava a mentir.