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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

As mulheres da Orquestra Vermelha.
O círculo clandestino que combateu Hitler no coração da Berlim nazi.

Título original: Resistance Women

© 2019, Jennifer Chiaverini

© 2020, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Tradutor: Ana Filipa Velosa

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

 

Desenho da capa: Elsie Lyons

Imagem da capa: Trevillion Images, Alamy Stock Photo y Shuttertstock

1ª edição: Março 2020

 

ISBN: 978-84-9139-455-6

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Créditos

Prólogo

Primeira Parte

Capítulo um

Capítulo dois

Capítulo três

Capítulo quatro

Capítulo cinco

Capítulo 6

Capítulo sete

Capítulo oito

Capítulo nove

Capítulo dez

Capítulo onze

Segunda Parte

Capítulo doze

Capítulo treze

Capítulo catorze

Capítulo quinze

Capítulo dezasseis

Capítulo dezassete

Capítulo dezoito

Capítulo dezanove

Capítulo vinte

Capítulo vinte e um

Capítulo vinte e dois

Capítulo vinte e três

Capítulo vinte e quatro

Terceira Parte

Capítulo vinte e cinco

Capítulo vinte e seis

Capítulo vinte e sete

Capítulo vinte e oito

Capítulo vinte e nove

Capítulo trinta

Capítulo trinta e um

Capítulo trinta e dois

Capítulo trinta e três

Capítulo trinta e quatro

Capítulo trinta e cinco

Capítulo trinta e seis

Capítulo trinta e sete

Capítulo trinta e oito

Capítulo trinta e nove

Capítulo quarenta

Capítulo quarenta e um

Capítulo quarenta e dois

Capítulo quarenta e três

Capítulo quarenta e quatro

Capítulo quarenta e cinco

Capítulo quarenta e seis

Capítulo quarenta e sete

Capítulo quarenta e oito

Capítulo quarenta e nove

Capítulo cinquenta

Capítulo cinquenta e um

Capítulo cinquenta e dois

Capítulo cinquenta e três

Capítulo cinquenta e quatro

Capítulo cinquenta e cinco

Capítulo cinquenta e seis

Capítulo cinquenta e sete

Quarta Parte

Capítulo cinquenta e oito

Capítulo cinquenta e nove

Capítulo sessenta

Capítulo sessenta e um

Capítulo sessenta e dois

Nota da autora

Agradecimentos

Se gostou deste livro…

 

 

 

 

 

 

Para as mulheres da resistência, passadas e presentes.

Prólogo

 

Novembro de 1942

 

Mildred

 

 

 

 

As pesadas portas de ferro abrem-se e, por um momento, Mildred fica de pé, imóvel, a pestanejar à luz do sol, arquejante pela súbita rajada de ar puro e frio que lhe acaricia o rosto e lhe levanta o cabelo. A guarda impele-a na direção do pátio da prisão, com a mão dolorosa e inflexível apertada em redor do seu braço. Outras mulheres envergam a mesma roupa castanho-clara, vestidos sem forma caminham lentamente aos pares à volta do perímetro do quadrado de gravilha. As suas celas no interior da hausgefängnis da sede da Gestapo, na Prinz-Albrecht-Strasse, são tão exíguas que praticamente não conseguem mover-se e, agora, as prisioneiras esticam os braços e erguem os rostos para o céu, como bailarinas, como folhas de outono secas dispersas numa rajada de vento.

Quantas delas jamais voltariam a conhecer maior liberdade do que esta?

— Nada de conversas — lembra-lhe a guarda, empurrando-a para o pátio ao ar livre. Tropeçando, recupera o equilíbrio e começa a trilhar um caminho diagonal entre os dois cantos das paredes altas circundantes, proibida de caminhar com as outras. Fez estes preciosos dez minutos de caminhada todos os dias desde a sua prisão, dois meses antes, e os seus membros rígidos e doridos entram na rotina antes de ela ter consciência disso.

Deliberadamente, mantém a cabeça erguida e dá passos longos e firmes, numa falsa demonstração de força que lhe custa muitíssimo. Perdeu peso e, pelos fios de cabelo que encontra na cama todas as manhãs, sabe que a sua cabeleira loura, outrora luxuriante, se tornou quebradiça e grisalha. A tosse atormenta-a de forma quase constante. Nesse mesmo dia, ao afastar a mão da boca e do nariz, deparou-se com a palma salpicada de sangue. Não há medicamentos disponíveis para pessoas como ela, traidoras do Terceiro Reich. Porém, será correto chamar-lhe traidora, já que é americana?

Não tem importância, nem para os seus carcereiros nem para a lei, para quem ela é americana de nascimento e tem dupla nacionalidade através do casamento. Para Adolf Hitler, o facto de ela ser americana tem grande importância ou, pelo menos, advertiram-na disso. E, contudo, a Alemanha é o seu país adotivo, o local de nascimento do seu amado marido. Foi por não conseguir separar-se dele que tinha permanecido em Berlim, mesmo depois de o governo dos Estados Unidos ter avisado os seus cidadãos para que abandonassem o país.

Arvid. Dói-lhe o coração, quando o imagina a definhar numa cela exígua, fria e parcamente iluminada como a sua, algures não muito longe dali, mas impossivelmente para lá do seu alcance. O julgamento dele ainda não aconteceu. Talvez se reencontrem na sala de audiências, eles e todos os seus corajosos e infelizes amigos pertencentes à célula de resistência que os nazis denominam Rote Kapelle, Orquestra Vermelha, pela «música» ilícita que tinham transmitido aos inimigos do Reich. Como era estranho que a Gestapo os tivesse considerado um inimigo tão temível, ao ponto de ser merecedor de um nome tão sinistro, como algo retirado de um romance de espionagem, e, no entanto, entre a sua rede difusa de escritores, professores, economistas, burocratas, empregados de escritório e operários, não havia um único espião profissional.

São pessoas normais, de todos os estratos sociais. A sua querida amiga Greta Kuckhoff cresceu pobre, conseguiu formar-se e está determinada a proporcionar ao seu jovem filho uma vida melhor. Sara Weitz desfrutou de riqueza e privilégios, até os nazis declararem os judeus indesejáveis e os despojarem de todos os direitos civis e humanos. O coração de Mildred sofre quando pensa em Sara e nos outros estudantes no seu círculo: corajosos, determinados, idealistas, com a vida inteira à sua frente , a arriscarem mais do que conseguem realmente compreender. Onde estão eles agora? Dispersos, alguns presos noutro lugar, outros na clandestinidade, outros evadidos em terras distantes. Se, pelo menos, Mildred pudesse recorrer, uma última vez, à ajuda de Martha Dodd… mas Martha regressou aos Estados Unidos, depois de o seu pai ter sido dispensado dos seus deveres de embaixador. Mesmo que Mildred conseguisse, de alguma forma, fazer chegar uma mensagem à sua loquaz e impulsiva amiga, o que é que Martha poderia fazer?

Um ataque de tosse apodera-se dela. Curva-se sobre si própria, agarrando os ombros para se segurar até a aflição áspera passar. Quando consegue, endireita-se, inspira profundamente, ignora o ominoso som dos seus pulmões e retoma o seu caminho diagonal pelo pátio…

E quase para bruscamente de assombro. Outra prisioneira olha-a fixamente, enquanto caminha ao longo da extremidade do pátio prisional, assolada por uma compaixão que é evidente aos olhos de Mildred. A mulher está demasiado pálida e magra para ser nova na prisão; certamente, conhece as consequências sinistras que enfrentará se as guardas a virem a olhar para Mildred com tanta preocupação, depois de ela ter estado em isolamento como advertência para as restantes. A mulher deve sabê-lo, pois desvia rapidamente o olhar. O coração de Mildred afunda-se, só se ergue novamente quando a mulher volta a olhar para trás, de relance, e lhe oferece o mais ténue resquício de um sorriso encorajador.

Mildred sente uma nova força a percorrê-la. É apenas um olhar breve, mas nutre a sua alma faminta. O seu coração bate aceleradamente, enquanto calcula o tempo das suas passadas diagonais e o movimento lento da mulher em redor do pátio. Acelera o passo, não ao ponto de chamar a atenção das guardas, mas o suficiente para que, eventualmente, o seu caminho e o da mulher se cruzem no canto mais afastado do pátio. Entretanto, roubam olhares de soslaio uma à outra, mensagens silenciosas que indicam que não estão sozinhas, que há sempre esperança, que, quando menos se espera, um raio de luz pode atravessar até o céu mais negro.

E, então, cruzam-se, embora não possam parar tempo suficiente para que as pontas dos dedos cheguem, sequer, a tocar-se.

— Cuida de ti — murmura Mildred, enquanto arrastam os pés na direção uma da outra e, depois, para longe. — Estou na cela 25. Não te esqueças de mim, quando saíres. Chamo-me Mildred Harnack.

«Chamo-me Mildred Harnack», repete silenciosamente para si própria, enquanto dá meia-volta para voltar a atravessar o pátio. Mildred Fish Harnack. Esposa, irmã, tia. Autora, académica, professora. Combatente da resistência. Espia.

«Não te esqueças de mim.»

Primeira Parte

Capítulo um

 

Junho-outubro de 1929

 

Mildred

 

 

 

 

O vento cortante que soprava da água, no local onde o Mar do Norte se encontrava com o Rio Weser, fazia esvoaçar as madeixas da trança de Mildred e levava as lágrimas a aflorarem-lhe aos olhos, mas nada conseguia afastá-la do parapeito do convés superior do SS Berlin, enquanto este se aproximava de Bremerhaven. Dez dias antes, o navio partira de Manhattan rumo à Alemanha (dez longos dias, depois de nove meses solitários afastada do seu amado marido), mas as últimas horas tinham passado com uma lancinante lentidão. Enquanto o navio entrava no porto, perscrutava a multidão reunida no cais em busca do homem que amava, sabendo que, algures no meio dela, ele a esperava para lhe dar as boas-vindas à sua nova pátria.

O apito do navio bramiu sobre a sua cabeça, dois longos sopros; marinheiros e estivadores atiraram cordas e nós habilmente apertados. Expectantes, os passageiros começaram a mover-se, enquanto as rampas eram preparadas para a sua descida. No local onde o cais se encontrava com a costa, uma banda de música tocava uma alegre melodia de boas-vindas; homens envergando as tradicionais lederhosen, coletes bordados e chapéus com penas; mulheres vestidas com dirndls cor-de-rosa e verdes e blusas brancas, com grinaldas de laços e flores no cabelo.

Ouvindo o seu nome a flutuar ao vento por cima da música, Mildred procurou entre a multidão, apertando o corrimão com mais força; e, então, viu-o, o seu amado Arvid, com o cabelo claro cuidadosamente penteado para trás a partir da sua testa larga, os olhos azuis, gentis e inteligentes, atrás dos óculos de armação metálica. Abanou o chapéu em arcos lentos sobre a cabeça, chamando o nome dela, radiante de alegria.

— Arvid! — gritou ela.

Ele devolveu-lhe o aceno e, pouco depois, ela estava em terra e atravessava rapidamente a multidão para mergulhar no seu abraço. Derramava lágrimas de alegria enquanto o beijava, sem reparar nos olhares de soslaio dos passageiros mais reservados e das famílias à sua volta.

— Minha querida esposa — murmurou Arvid, com os lábios a acariciarem o seu ouvido. — É maravilhoso voltar a abraçar-te. És ainda mais encantadora do que eu me lembrava.

Ela sorriu e abraçou-o com força, com uma felicidade demasiado grande para palavras. Se a ausência a tornara mais encantadora aos olhos dele, ele estava ainda mais bonito aos seus.

Quão imensuravelmente adorado ele se tornara para ela desde o dia em que se tinham conhecido, três anos antes. Em março de 1926, pouco depois de Arvid ter chegado à Universidade de Wisconsin com uma prestigiada Bolsa Rockefeller, entrara fortuitamente na aula dela, na sala Bascom Hall, à espera de uma palestra do renomado economista John R. Commons, para se deparar apenas com Mildred a conduzir uma discussão sobre Walt Whitman. Enfeitiçado, sentou-se na última fila e, depois, deixou-se ficar para trás para pedir desculpa pela interrupção, explicando, num inglês cativantemente imperfeito, que tencionava dirigir-se ao Sterling Hall, mas, aparentemente, se perdera. Encantada, Mildred oferecera-se para o acompanhar até ao edifício certo. Conversaram ao longo do caminho e, na despedida, combinaram voltarem a encontrar-se para estudarem juntos. Ela ajudaria Arvid a tornar-se fluente em inglês e ele ajudá-la-ia a melhorar o seu alemão, que ela permitira decair depois de ter estudado os princípios básicos quando era criança, em Milwaukee, a cidade mais alemã das cidades americanas.

Arvid chegou à sessão de estudo com um bonito ramo de fragrantes gardénias brancas. A aula de línguas, que decorreu enquanto tomavam café num pequeno restaurante na esquina das ruas State e Lake, transformou-se num longo passeio pelo caminho arborizado na margem do Lago Mendota. Enquanto conversavam, numa mistura de inglês e alemão, Mildred descobriu que Arvid concluíra o seu doutoramento em Direito em 1924 e procurava, agora, fazer um segundo doutoramento em Economia. Viera para os Estados Unidos para estudar o movimento operário americano e, tal como ela, estava profundamente preocupado com os direitos dos trabalhadores, das mulheres e crianças e dos pobres. Partilhavam uma paixão por educação e aspiravam a tornar-se professores universitários, embora Mildred também desejasse escrever, não apenas artigos académicos e recensões, mas também romances e poesia.

Um encontro levou a outro, e Mildred rapidamente se apercebeu de que se apaixonara inevitável e completamente por ele. E, em contrapartida, viu-se amada, admirada e respeitada pelo melhor homem que alguma vez conhecera.

Num sábado, 7 de agosto de 1926, dois dias depois de Mildred ter passado nos exames de mestrado, ela e Arvid casaram, numa cerimónia ao ar livre, na quinta de 72 hectares do seu irmão Bob, a cerca de trinta quilómetros a sul da universidade. Durante dois anos, o casal trabalhou, estudou e desfrutou da felicidade própria dos recém-casados em Madison, mas, quando a Bolsa Rockefeller de Arvid terminou, na primavera de 1928, aperceberam-se de que não tinham recursos para que ela o pudesse acompanhar no regresso à Alemanha.

— Vamos analisar outra vez os números — dissera Mildred, estudando as impecáveis colunas de notas e contas, escritas pela mão precisa de Arvid num bloco de notas amarelo, cálculos do rendimento dele e estimativas das suas despesas, ajustadas à excessiva inflação alemã. Quando Arvid sorriu, ironicamente, e lhe entregou o lápis, ela riu-se e acrescentou: — Embora suponha que um aluno de doutoramento em Economia consiga fazer um simples orçamento familiar.

Arvid tirou os óculos e esfregou os olhos cansados.

— Os factos também me angustiam, liebling, mas continuam a ser factos. Eu não consigo sustentar-te como estudante universitário e, dado o estado da economia alemã, não podemos pressupor que vais conseguir encontrar trabalho lá.

Mildred esticou o braço por cima a mesa e agarrou-lhe na mão.

— Então, vou arranjar emprego como professora universitária aqui nos Estados Unidos e vamos poupar até termos dinheiro para estarmos juntos.

Até lá, teriam de viver separados.

Quando Arvid regressou à Alemanha para prosseguir os seus estudos na Universidade de Jena, Mildred tinha-se mudado para Baltimore para ensinar na Goucher College. Os meses tinham transcorrido lentamente, em solidão e saudade, mas, na primavera, Mildred obteve uma bolsa de estudo para uma pós-graduação numa universidade alemã à sua escolha. Com a sua bolsa, somada ao dinheiro que tinham economizado, finalmente conseguiram ter dinheiro para que se juntasse a Arvid em Jena.

Agora, com a viagem transatlântica atrás de si, estavam finalmente juntos (e, se dependesse dela, jamais voltariam a separar-se). Reuniram a sua bagagem e embarcaram no comboio portuário para Bremen, onde Arvid sugeriu um passeio a pé para que ela desentorpecesse as pernas. Mildred tinha dificuldade em desviar os olhos do rosto adorado de que sentira tanta falta e com o qual sonhara durante todos aqueles meses separados, mas a encantadora cidade roubou o seu olhar vezes sem conta. Admirou os edifícios de cumes elevados, em estilo enxaimel, que ladeavam as ruas empedradas e as praças cuidadas e salpicadas pelo sol, com os vasos nas janelas repletos de gerânios vermelhos, peónias brancas e heras verdes. Havia bicicletas por todo o lado, com campainhas que repicavam uma incessante melodia, mas o ocasional automóvel também passava calmamente por eles e, de vez em quando, uma carruagem puxada por cavalos.

— Isto é tão pitoresco — exclamou Mildred, pousando brevemente a cabeça no ombro de Arvid, enquanto caminhavam de braço dado. — E pensar que a Greta tentou baixar as minhas expectativas.

As sobrancelhas de Arvid ergueram-se.

— A Greta Lorke depreciou a sua própria terra natal?

— Não exatamente — disse Mildred, divertida pelo seu instinto de assumir o pior da sua antiga rival académica.

Mildred era leal a Arvid, claro, mas tinha-se afeiçoado muito a Greta depois de se terem conhecido através dos Friday Niters, o famoso grupo do professor Collins que reunia estudantes universitários e docentes que estudavam políticas sociais, económicas e laborais e ajudavam os legisladores do Estado do Wisconsin a redigir leis progressistas. Enquanto Mildred era alta, esbelta e loura, Greta era pequena, curvilínea e de olhos escuros e usava o cabelo castanho-escuro com um corte curto e ondulado em redor do rosto. Tinha as maçãs do rosto salientes e uma boca carnuda feita para sorrisos ternos sedutores, mas uma certa prudência no seu comportamento sugeria que o conflito não era algo invulgar para ela.

— A Greta disse-me, uma vez, que receava que a minha compreensão da Alemanha viesse da tua poesia, de romances e contos de fadas — explicou Mildred. — Avisou-me que a minha perspetiva é romântica e idealística e que eu devia ler jornais alemães para aprender sobre a verdadeira Alemanha, para meu próprio bem.

— Que visão funesta.

— E, no entanto, foi um bom conselho. Porque é que eu não deveria aprender tudo o que pudesse sobre o teu país?

Mildred sabia que a Alemanha não era perfeita, que, tal como os Estados Unidos, se debatia com diversos problemas económicos, políticos e sociais, mas, agora, enquanto explorava Bremen com Arvid, sentia uma intensa sensação de alívio. Greta (a sua querida, inteligente, séria e cética Greta) pintara um retrato demasiado ameaçador do seu país.

Mildred e Arvid deixaram Bremen exatamente quando os sinos da Catedral de São Pedro repicavam o meio-dia. O sol brilhava intensamente num céu azul perfeito, enquanto atravessavam, num reluzente Mercedes creme descapotável que Arvid pedira emprestado a um primo, florestas e terrenos agrícolas, colinas e encantadoras povoações. Durante horas, o magnífico cenário cativou a atenção de Mildred, mas, depois de terem parado para almoçar em Hannover e prosseguido para sudeste, atravessando a Baixa Saxónia, sentiu ondas de apreensão que se erguiam e recuavam com crescente frequência. Embora Arvid nunca se vangloriasse, ela sabia que a sua família distinta era admirada e respeitada em toda a Alemanha, principalmente nos círculos académicos, políticos e religiosos. Eram, nas palavras de Greta, realeza intelectual. Mildred tinha origens muito mais humildes. O seu pai, um bonito, infiel e irresponsável diletante que habitualmente esbanjava o seu salário na pista de corridas, fora, devido à sua natureza, incapaz de manter qualquer emprego durante muito tempo. A mãe de Mildred, uma cientista cristã inteligente e independente, sustentara a família com trabalho doméstico e recebendo hóspedes, mas, apesar dos seus melhores esforços, a família tinha-se mudado todos os anos, antecipando-se a senhorios que exigiam rendas em atraso.

Mildred indagava-se sobre quanto, de tudo isto, Arvid revelara à sua família. Embora tivessem sido indefetivelmente afetuosos e corteses com ela nas suas cartas, Greta advertira-a de que os Harnacks e o seu clã alargado de Bonhoeffers e Dohnányis poderiam recebê-la com gélido desdém.

Ao início da noite, o Mercedes emprestado atravessou as Montanhas Harz e desceu até às colinas do leste de Turíngia. Quando chegaram a Jena, Arvid assinalou a universidade, a praça da cidade e outros pontos de interesse pelos quais passaram no caminho para a sua casa de infância. Por fim, parou junto de uma residência alta e branca, em estilo enxaimel, com portadas pretas e varandas no primeiro e segundo andares que uniam as duas alas perpendiculares. A mãe de Arvid mudara-se com os filhos para esta casa quando Arvid tinha catorze anos, após o suicídio do seu pai. Mildred inspirou profundamente para se acalmar, enquanto Arvid estacionava o carro e desligava o motor.

— Vão adorar-te — disse ele, agarrando a sua mão e levando-a até aos lábios.

Ela conseguiu sorrir.

Enquanto ele a acompanhava pelo caminho empedrado até à porta de entrada, o seu coração batia desenfreadamente, ao mesmo tempo que vários homens e mulheres e dois ansiosos rapazinhos saíam apressadamente da casa para os receber. O seu nervosismo desvaneceu-se à medida que eles a abraçavam, sorrindo, cumprimentando-a afetuosamente em alemão e inglês. Enquanto Arvid fazia as apresentações, orgulhoso, Mildred teve uma estranha sensação de reconhecimento quando soube que o jovem bonito que ostentava o mesmo sorriso terno de Arvid era o seu irmão de dezassete anos, Falk. As duas lindas mulheres com olhos azuis familiares e cabelo louro curto eram as suas irmãs, Inge e Angela, e os dois alegres rapazinhos eram os filhos de Inge, Wulf e Claus. Mildred conheceu também vários primos, incluindo um que Arvid mencionara muitas vezes quando recordava a sua casa: Dietrich Bonhoeffer, um pastor luterano, um tipo de óculos, maçãs do rosto redondas e queixo saliente.

Depois, Arvid acompanhou Mildred até ao interior da casa para que conhecesse a sua mãe.

— Minha querida filha — disse a Mutti Clara afetuosamente, num inglês impecável, apertando as mãos de Mildred e dando-lhe dois beijos na cara. Tinha traços fortes e um olhar intenso e sagaz, e usava o seu cabelo claro, já grisalho, apertado num delicado coque. — Ainda és mais bonita do que aquilo que o Arvid descreveu. Bem-vinda à Alemanha. Bem-vinda a casa.

Chamou a família para que se reunisse à volta da mesa de jantar, onde Dietrich os conduziu numa oração. A refeição de bratwurst em molho de vinagre e alcaparra, bolinhos de batata e rolos de couve, com bolo de sementes de papoila para sobremesa, foi deliciosa e reconfortante, depois de um longo dia de viagem. Tudo isto temperado com sorrisos cálidos e gargalhadas, enquanto os membros da família brincavam e se elogiavam uns aos outros, gracejando em grego e em latim, citando Goethe, fazendo questionários a Falk e aos rapazes mais novos sobre o seu trabalho escolar. Mildred ficou maravilhada com o ambiente agradável desta reunião familiar, tão diferente dos seus jantares de infância, marcados pela tensão entre os seus pais, por preocupações com dinheiro e pelas frequentes ausências do pai.

No final de uma noite perfeita, Arvid levou-a para casa: finalmente, um lar partilhado, um apartamento arrendado num edifício na Landgrafenstieg, pequeno, mas com uma disposição inteligente para tirar o máximo proveito do espaço limitado. As janelas da frente ofereciam uma vista esplêndida das montanhas e havia muito espaço nas prateleiras para os novos volumes de livros que esperavam adquirir nos anos vindouros. Após alguns dias em Jena, Mildred e Arvid partiram para uma segunda lua-de-mel na Floresta Negra, onde a solidão da sua longa separação rapidamente se desvaneceu numa recordação distante.

No outono, Mildred começou o seu doutoramento na Universidade de Jena. Mais uma vez, a sua vida era agradavelmente preenchida, com os dias devotados ao estudo e as noites ao seu amado Arvid. Sentia falta da família que deixara na América, mas tinha sido tão bem recebida pelos Harnacks que não podia queixar-se de saudades de casa.

Então, num dia de outono maravilhosamente límpido e vividamente matizado, no final de outubro, Arvid encontrou-a no jardim a estudar à luz do sol vespertina.

— Lamento, liebling — disse soturnamente, entregando-lhe um jornal. — Más notícias da América.

Enquanto passava os olhos pelos títulos, o seu coração desabou. Tinha havido uma quebra na bolsa de valores, que perdera mais de três mil milhões de dólares no decurso de dois dias.

Encheu-se de coragem para perguntar:

— Arvid? — Com a sua formação e experiência académicas, ele saberia tão bem como qualquer pessoa em Wall Street o que isto significava para o seu país.

Ele manteve o olhar fixo no dela e abanou a cabeça. Mildred soube nesse momento que muito pior ainda estava para vir.