POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO

 

FERNANDO PESSOA

 

POESIA

 


Índice
POEMAS COMPLETOS DE ALBERTO CAEIRO
BREVE NOTA SOBRE A OBRA
O GUARDADOR DE REBANHOS
O PASTOR AMOROSO
A água chia no púcaro que elevo à boca
A Criança
A Espantosa Realidade das coisas
A Guerra
A Neve
A Noite Desce
Ah! Querem uma Luz
Assim Como
Criança Desconhecida
Creio
De Longe
Dizes-me
Entre o que Vejo
É Noite
Estas Verdades
É Talvez o Último Dia da Minha Vida
Falas de Civilização
Gozo os Campos
Hoje de Manhã
Não Basta
Navio que Partes
Noite de São João
Nunca Sei
O Espelho
Ontem o Pregador
O que Ouviu os Meus Versos
O Único Mistério do Universo
O Universo
Pouco a Pouco
Pouco me Importa
Primeiro Prenúncio
Pastor do Monte
Quando Tornar a Vir a Primavera
Quando Vier a Primavera
Quando Está Frio
Quando a Erva Crescer
Seja o que For
Se Eu Morrer Novo
Se Depois de Eu Morrer
Se o Homem Fosse
Também Sei Fazer Conjeturas
Todas as Opiniões
Tu, Místico
Um Dia de Chuva
Última Estrela
Uma Gargalhada
Verdade, Mentira
Vive

 

BREVE NOTA SOBRE A OBRA

 

Esta obra reúne o conjunto de poemas dos livros “O Guardador de Rebanhos”, “O Pastor Amoroso” e “Poemas inconjuntos” assinados pelo heterónimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro.

 

Alberto Caeiro foi, como admitiu muitas vezes Fernando Pessoa, um dos seus heterónimos que mais gostava e admirava. Foi criado quando um dia Fernando Pessoa se lembrou de fazer uma partida ao seu confidente, o escritor Mário de Sá-Carneiro, mandando-lhe um poema e dizendo que era de um suposto amigo seu. Quando finalmente pôs a descoberto a mentira disse-lhe por carta: “Quis inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — aproximei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia mais triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpa-me o absurdo da frase: “aparecera em mim o meu mestre” mas foi essa a sensação imediata que tive.”

Em mais detalhes, Fernando Pessoa escreveu que o imaginou como tendo nascido em Lisboa, em 1889 e morrido em 1915, mas que viveu quase toda a sua vida no campo, com uma tia-avó idosa, porque tinha ficado órfão de pais cedo. Era louro, de olhos azuis. Como educação, apenas tinha tirado a instrução primária e não tinha profissão.

Fernando Pessoa diria ainda que, quando escrevia em nome de Caeiro, fazia-o “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever.”

Como poeta, Alberto Caeiro apresenta-se como um simples "guardador de rebanhos" que escreve sobre a natureza e só se importa em ver de forma objetiva e natural a realidade. Ao mesmo tempo despreza e repreende qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão ("pensar é estar doente dos olhos").

É pois um poeta de extrema simplicidade que considera que a sensação é a única realidade e que refletir sobre como as coisas são é entrar num mundo complexo, desnecessário e problemático onde tudo é incerto e obscuro.

Fernando Pessoa chamava-o de o “Mestre Ingénuo” e considerava-o como sendo o melhor dos seus heterónimos.

 

 

 

O GUARDADOR DE REBANHOS

 

I

Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar.

Toda a paz da Natureza sem gente

Vem sentar-se a meu lado.

Mas eu fico triste como um pôr de sol

Para a nossa imaginação,

Quando esfria no fundo da planície

E se sente a noite entrada

Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego

Porque é natural e justa

E é o que deve estar na alma

Quando já pensa que existe

E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos

Para além da curva da estrada,

Os meus pensamentos são contentes.

Só tenho pena de saber que eles são contentes,

Porque, se o não soubesse,

Em vez de serem contentes e tristes,

Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva

Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos

Ser poeta não é uma ambição minha

É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes

Por imaginar, ser cordeirinho

(Ou ser o rebanho todo

Para andar espalhado por toda a encosta

A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,

Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz

E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos

Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,

Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,

Sinto um cajado nas mãos

E vejo um recorte de mim

No cimo dum outeiro,

Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,

Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,

E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz

E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,

Tirando-lhes o chapéu largo

Quando me veem à minha porta

Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.

Saúdo-os e desejo-lhes sol,

E chuva, quando a chuva é precisa,

E que as suas casas tenham

Ao pé duma janela aberta

Uma cadeira predileta

Onde se sentem, lendo os meus versos.

E ao lerem os meus versos pensem

Que sou qualquer coisa natural —

Por exemplo, a árvore antiga

À sombra da qual quando crianças

Se sentavam com um baque, cansados de brincar,

E limpavam o suor da testa quente

Com a manga do bibe riscado.

 

II

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de, vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência não pensar...

 

III

Ao entardecer, debruçado pela janela,

E sabendo de soslaio que há campos em frente,

Leio até me arderem os olhos

O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês

Que andava preso em liberdade pela cidade.

Mas o modo como olhava para as casas,

E o modo como reparava nas ruas,

E a maneira como dava pelas coisas,

É o de quem olha para árvores,

E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando

E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza

Que ele nunca disse bem que tinha,

Mas andava na cidade como quem anda no campo

E triste como esmagar flores em livros